O sociólogo pernambucano antecipou debates da atualidade sobre temas como ecologia, globalização, o valor cultural da gastronomia e a urbanização
*Por Rafael Dantas
Autor de mais de 80 publicações que explicam o Brasil e o Nordeste, Gilberto Freyre completaria neste mês 125 anos. O Mestre de Apipucos teve uma trajetória intelectual marcada por antecipações de debates que em nossos dias seguem na agenda pública do País. As discussões ecológicas, os desafios do desenvolvimento urbano, a questão racial, entre tantas outras, estiveram em seus livros e artigos. Análises que mobilizam pesquisadores de vários lugares do mundo e que seguem contribuindo para o pensamento crítico no Brasil, mesmo muitas décadas após sua escrita.
O mais famoso livro de Freyre, Casa Grande & Senzala, foi escrito quando ele era ainda um jovem pesquisador com pouco mais de 30 anos. Ele deixou outros clássicos que confundem os admiradores da sua obra sobre o mais apreciado, como Nordeste, Açúcar e Sobrados e Mucambos. Até a sua terceira idade, o sociólogo publicou vorazmente. Além dos livros, seu pensamento estava impresso em jornais, com destaque para o Diario de Pernambuco, onde escreveu por décadas. Fernando Freyre Filho, presidente da Fundação Gilberto Freyre, revela que, além das publicações que o avô fez em vida, ele deixou ainda quase uma dezena a ser publicada após a sua morte. Além disso, a fundação tem lançado coletâneas e versões em quadrinhos dos seus clássicos.

Porém, mais que volumosa, a obra de Gilberto Freyre tratava de temáticas que explodiriam no debate público anos e até décadas depois. A pauta ecológica, que está diariamente nos jornais brasileiros e mundiais, era assunto dos artigos e publicações do sociólogo, mesmo na primeira fase da sua longa vida de escritor.
Contrapondo-se a uma visão de precariedade e diminuição da região, que ainda está em desconstrução no País, em Nordeste (1937), Gilberto Freyre não nega os desafios da seca mas reivindica o reconhecimento dos valores naturais locais e reafirma o papel econômico do setor sucroalcooleiro para o País. Mais que isso, aponta um olhar muito peculiar da posição regional como berço da história nacional. “Porque através daqueles dias mais difíceis de nação da civilização portuguesa nos trópicos, a terra que primeiro prendeu os luso-brasileiros, em luta com outros conquistadores, foi essa de barro avermelhado ou escuro. Foi a base física, não simplesmente de uma economia ou de uma civilização regional, mas de uma nacionalidade inteira”.
Além do olhar para o valor do solo massapê, o sociólogo discute questões ambientais e, especialmente, de trabalho do homem que movia a economia da época. Ele não alivia as críticas às péssimas condições de trabalho, de moradia e de alimentação. Chega a afirmar em Nordeste que as condições da jornada laboral de sua época representavam “talvez um trabalho mais penoso do que no tempo da escravidão. Porque os senhores de terras de cana e os armazenários de açúcar dispõem hoje de menor número de trabalhadores para o esforço agrícola”
Quase 100 anos depois, é difícil não fazer pontes entre esses debates, circunscritos aos trabalhadores braçais da época, com discussões contemporâneas relacionadas à qualidade de vida profissional, redução de jornadas, burnout, entre outras pautas econômicas e laborais.
Mencionando vários pesquisadores da época, Freyre descreve teorias que afirmam que o menor desenvolvimento físico e até produtivo do homem na época tinha relação com aspectos como má saúde pública, má alimentação, má dormida, entre outros. Ao mencionar trabalhos de médicos brasileiros do Século 19, o sociólogo chega a relacionar os problemas de saúde da população com a destruição das matas e a falta de cuidado na conservação dos animais.
A diretora executiva da Fundação Gilberto Freyre, Jamille Barbosa, destaca que o Mestre de Apipucos teve uma contribuição relevante sobre a ecologia, especialmente nas relações do homem com a natureza. “Ele tratou de uma ecologia mais humana. Não é aquele conceito de meio ambiente sacralizado, idealizado. Ele queria realmente estudar esse meio ambiente que é afetado pelo homem e esse homem que é afetado pelo meio ambiente. De que forma esse meio ambiente condicionou a forma do ser humano de estar, de se alimentar, de conviver. Isso é muito presente na obra de Gilberto. Bem como da forma que esse homem vai afetando negativamente esse meio ambiente”, afirmou Jamille.
Mais do que escrever e refletir sobre o convívio harmônico com a natureza, ele vivenciou isso no seu sítio em Apipucos, que abriga a Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre. Toda a área verde no entorno da residência é vista pela pesquisadora como uma forma do sociólogo colocar em prática o que ele defendia nos livros e artigos. Em um momento que o mundo se volta para a adaptação às mudanças climáticas e discute o impacto do ser humano no meio ambiente, muitas reflexões e preocupações do pensador pernambucano permanecem atuais.
Pesquisador da obra de Freyre, Anco Márcio Tenório Vieira, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, aponta dois pioneirismos da obra do pensador pernambucano. “O primeiro, é um tema que perpassa toda a obra de Freyre e que foi relevada ao seu tempo, mas que hoje, na nossa contemporaneidade, é a principal pauta destas primeiras décadas do Século 21: a ecologia e a economia autossustentável. Freyre foi um crítico contumaz do modelo de progresso que orientou e vinha orientando o mundo ocidental e ocidentalizado e um defensor incansável da economia autossustentável, de soluções ecológicas no campo urbanístico, da arquitetura e da construção civil, da moda, da produção de alimentos, da industrialização”.
O segundo pioneirismo destacado pelo docente da UFPE diz respeito ao conceito de regionalismo. “Freyre vai pensar o Brasil a partir das regiões, das suas especificidades sociais, econômicas, culturais, religiosas, ecológicas etc. Freyre vai assentar o seu conceito de regionalismos em cima da tríada Tradição, Região, Modernidade; Tradição, Região, Modernismo; ou Tradição, Região, Modernização”.

Anco Márcio explica que, para Freyre, a tradição era o conjunto de experiências sociais, estéticas e culturais originadas das influências lusas, ibéricas, africanas e ameríndias. Essas influências se miscigenaram e se transformaram ao longo do tempo, dando origem a novas expressões culturais e moldando a identidade sociocultural do Brasil. Já em relação às regiões, ele valorizava o que havia de mais relevante nessas mesmas experiências sociais, estéticas e culturais dentro de cada unidade federativa do País.
“Ou seja, a tradição não é somente o que firma a unidade brasileira — a exemplo da língua, das crenças religiosas, das raízes musicais, das bases alimentares etc. —, mas também o que urde o presente de cada região com o seu passado, o que religa esse passado com o presente e, por sua vez, a partir de uma reflexão crítica, quais caminhos deverão ser traçados para se delinear o futuro do Brasil e das suas regiões”, afirmou o professor da UFPE.
A partir dessas reflexões, Freyre entende que o Brasil não é um país homogêneo mas, sim, um equilíbrio dinâmico entre tradição e região, unidade e diversidade, onde uma não exclui a outra, mas se complementam. A tradição representa a herança cultural miscigenada do País, enquanto a região destaca suas particularidades locais. “Por meio desse diálogo crítico é que se calçaria a construção de um Brasil moderno. Ambos são pautas atuais e que, aplicadas hoje, mudariam o nosso modo de pensar o desenvolvimento da sociedade brasileira”, considera o pesquisador.

DISCUSSÃO URBANA EM GILBERTO FREYRE
Chegamos em 2025 numa intensa discussão no Recife sobre o avanço dos investimentos em parques urbanos e da busca por ampliar a quantidade de áreas verdes por habitante na capital. A necessidade de mais arborização e mesmo do desenho de novas estratégias de adaptação das cidades aos efeitos extremos das mudanças climáticas estão na pauta do dia. Para uma parte da sociedade interessada em uma dieta mais saudável e sustentável, temas como agroecologia e a busca por circuitos curtos alimentares também ganham relevância.
“Estamos discutindo hoje muito as praças. Na década de 20, no movimento regionalista, Gilberto Freyre lançou, junto com o Congresso Regionalista, o Dia da Árvore. Ele escreveu vários artigos sobre isso”, destacou Jamille. “Ele falava dos jardins públicos, das praças, não só por uma questão ambiental, mas também pensando no convívio humano. Para ele, um playground, em uma praça, era um local de encontro”.
Temas relacionados à discussão “rurbana” (um neologismo que une rural e urbano) proposta da obra de Gilberto Freyre ganha força nos seus escritos. O sociólogo pernambucano propunha a criação de cidades que preservassem a harmonia entre as características do rural e do urbano. Ele era um crítico da urbanização desenfreada vivida pelo Brasil há mais de 50 anos, que permanece ainda muito atual.
O Brasil e o mundo discutem a sustentabilidade das cidades, bem como a preservação do seu patrimônio natural e cultural. Várias são as pesquisas acadêmicas que associam a maior qualidade de vida ao acesso aos espaços verdes e a práticas mais associadas ao universo rural, como o plantio e a jardinagem.
Ainda em relação à urbanização, o sociólogo criticava a arquitetura tradicional portuguesa no Recife. “Há um olhar futurista dele que estava presente em todas as áreas que ele se predisponha a analisar. Ele fez críticas arquitetônicas em cima do padrão construtivo europeu nos trópicos. Ele era arquiteto? Não. Mas, ele já conseguia perceber que o modelo em vigor naquela altura traria consequências significativas para as moradias nos trópicos”, analisa Fernando Freyre Filho.
Mais que a arquitetura e o planejamento urbano, Freyre mergulhou em temas muito diversos. O papel da gastronomia na identidade nacional, os efeitos socioculturais dos ciclos econômicos, o potencial turístico do Nordeste e, até, as assombrações no Recife são apenas alguns deles, que expressam por onde caminharam os pensamentos do escritor.
“Gilberto Freyre foi um pioneiro da interdisciplinaridade entre nós, privilegiando estudos sobre temas como família, casamento, culinária, moradia, sexualidade, crenças, entre outros. Contudo, a atual formação monodisciplinar de muitos cientistas sociais não permite apreciar seu pioneirismo em focar a intimidade e o cotidiano como espaços de contradições e permanências na vida de um povo”, declarou a historiadora Mary del Priore.
Especialmente sobre a gastronomia, Maria Letícia Monteiro Cavalcanti, já na introdução do seu livro Gilberto Freyre e as aventuras do paladar, ressalta que logo o escritor percebeu a necessidade de preservar as tradições regionais, que estavam ameaçadas pelo modernismo que avançava em Pernambuco. “Gilberto Freyre usou a culinária como fonte para seus estudos. Ou temas de escritos, em si mesmo. E tão importante era, para ele, que dizia: ‘uma cozinha em crise, significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”.
Seu interesse pela culinária vinha de longe, desde os desenhos infantis, e permeou toda a sua vida e obra. Ao reconhecer o valor cultural da gastronomia, Freyre antecipou a importância que hoje a sociedade atribui a esse aspecto, não apenas como elemento de identidade mas, também, como um poderoso atrativo turístico e um símbolo da preservação das tradições regionais.
A MESTIÇAGEM PRECURSORA DA GLOBALIZAÇÃO
A historiadora Mary Del Priore destaca que assuntos discutidos pelo sociólogo, como o despotismo e o mandonismo, seguem presentes na sociedade brasileira e a análise dos seus pensamentos nessas pautas merece atenção. Porém, é sobre a mestiçagem a temática que ela considera fundamental das reflexões de Freyre. “Considero fundamentais seus estudos sobre o pardo e o mestiço, que desconstroem a falácia de que o Brasil é negro e branco, como nos EUA. De acordo com o último Censo do IBGE de 2022, os pardos representam 45,3% da população. Gilberto Freyre pioneiramente narrou a história da mobilidade social desse povo 'junto e misturado'", afirmou a historiadora.
Mary Del Priore amplia a discussão da mestiçagem presente na sociedade brasileira, ao associá-la ao fenômeno contemporâneo da globalização. “A globalização, o capitalismo e as migrações Sul-Norte transformaram os países que, no Século 16, colonizaram o Oriente e as Américas. Embora hoje tentem fechar fronteiras e erguer muros, é tarde demais: as novas gerações de imigrantes estão mestiçando a Europa e a América do Norte. Essa diversidade é evidente nos esportes, na mídia, nas Forças Armadas, nas artes, na política e nas academias. Há 'morenos', café-créme, mixed-blood, mestizos, misticci, mischling. Eles consomem alimentos estrangeiros, dançam ritmos variados, vestem-se e se penteiam inspirados pelo Outro, adotam costumes e crenças antes desconhecidos por seus avós. Essa miscigenação, pioneiramente descrita por Gilberto Freyre, é hoje chamada de globalização”.

Ela, inclusive critica, as linhas de pensamento que consideram a mestiçagem como “estupro”. Mary avalia que esse raciocínio estaria ignorando os estudos de milhares de historiadores. “A mestiçagem ficou evidente desde 1872, quando o primeiro censo do Império registrou mais pardos (mestiços) do que brancos. As mestiçagens biológicas e culturais são fatos históricos indiscutíveis e continuam a moldar o mundo, não podendo ser ignoradas”. No cenário nacional, ela é critica ao modelo binário, adotado pelo Ipea nos anos 1990, que classifica os brasileiros entre “brancos” e “negros”. Ela considerou a decisão absurda e defendeu que o Brasil nunca foi uma nação birracial.
HABILIDADE DE REUNIR PENSADORES E DE ESCREVER DE FORMA CLARA
Ao tratar sobre os debates do Século 20 que o Mestre de Apipucos travou, o geógrafo Manuel Correia de Andrade analisou o escritor na obra Gilberto Freyre e os Grandes Desafios do Século XX. Um dos destaques é dado à obra Nordeste. Para a produção dessa obra, o sociólogo reuniu no centenário do Diario de Pernambuco grandes pensadores do Estado e de outros locais do País na época para aprofundar os assuntos estratégicos para a região.
“Este livro se constituiu no principal documento publicado na década de 1920 sobre a vida nordestina, pernambucana principalmente; ele representa um testemunho do que pensavam os regionalistas da região”, apontou Manuel Correia de Andrade.
Essa mesma característica de reunir pensadores se manifestou nos Seminários de Tropicologia, que aconteciam na Fundação Joaquim Nabuco. Encontros que deixaram um grande conjunto de publicações das conferências e do registro de debates importantes unindo estudiosos de diversas áreas.
Essa capacidade de reunir pessoas será uma inspiração para o Seminário que marcará os 125 anos do sociólogo e que deve acontecer no segundo semestre. “Percebemos que Gilberto Freyre foi sempre um grande agregador de pessoas em torno de temas. Então, o seminário deste ano vai tratar desse potencial de agregar pessoas em torno de ações”, explica Jamille.
Além de reunir intelectuais, Freyre tinha uma escrita muito apreciada e metodologias bem inovadoras de produção intelectual. Mary Del Priore o considera um “imenso estilista da palavra, introdutor de poesia e humor em seus textos. Gilberto Freyre é autor de um livro irresistível não apenas pela riqueza de informações e documentos, mas também pela beleza de sua escrita. Já em 1933, ele antecipou abordagens que só se tornaram populares a partir dos anos 1980: a antropologia histórica e a história da vida privada. Ao aproximar a antropologia social e cultural da história, da literatura e das artes, inaugurou uma nova categoria de saber”, elogiou.
Gilberto Freyre permanece uma referência fundamental para a compreensão do Brasil e de suas dinâmicas sociais, culturais e ambientais. Seu olhar pioneiro sobre temas como mestiçagem, ecologia, urbanização e identidade nacional segue provocando reflexões e embasando debates contemporâneos. Motivo que atrai pesquisadores de vários lugares do mundo para estudá-lo. Ao unir novas técnicas acadêmicas, sensibilidade literária e uma abordagem interdisciplinar, ele antecipou discussões que ainda moldam o pensamento crítico no País. Muitos escritos que guardam contribuições relevantes para os desafios do Século 21.
Fundação Gilberto Freyre prepara as celebrações dos 125 Anos do autor
Em 2025, a Fundação Gilberto Freyre se prepara para homenagear os 125 anos de nascimento do escritor. Além de eventos, estão nos planos o lançamento de novos livros. No dia 15 de março, a fundação dará início às comemorações com um evento especial para a premiação do concurso nacional de ensaios que reconhecerá o melhor trabalho da edição anterior. Este evento marca o início de um ano repleto de atividades dedicadas à reflexão sobre o legado de Gilberto Freyre.
Entre as iniciativas planejadas, destaca-se um seminário programado para o segundo semestre que abordará temas centrais da obra de Freyre e sua capacidade de reunir pessoas em torno de ideias transformadoras. A fundação também está finalizando parcerias para lançar dois novos títulos relacionados à sua obra, que serão disponibilizados ao público em 2025. Há outras ações nos planos que devem ser anunciadas ao longo do ano.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)