Em 1821, aproximadamente 11 meses antes do Grito do Ipiranga, Pernambuco expulsava o último governador português de suas terras e ficava independente de Portugal. O movimento revolucionário, que começou pela Junta de Goiana e se encerra com a assinatura da Convenção de Beberibe é pouquíssimo conhecido e de difícil compreensão da maioria da população. A Revolução de 1821, que foi tema de capa da última edição da Algomais, volta a ser destaque hoje nesta entrevista concedida ao jornalista Rafael Dantas, pelo historiador George Cabral. O presidnete do Instituto Histórico de Olinda conta os fatores motivadores desse movimento e os seus efeitos até mesmo na consolidação no movimento de independência do Brasil.
Quais os principais motivadores que levaram a formação da Junta de Goiana e, posteriormente, a Convenção de Beberibe?
Pernambuco sofreu uma brutal repressão após a Revolução de 1817. Havia um profundo descontentamento entre os pernambucanos com o governador enviado pelo rei Dom João VI para a província, o general Luiz do Rego. Existem numerosos testemunhos de atos autoritários e violentos do general português. Nem as obras que ele realizou na província, principalmente estradas, foram suficientes para granjear a simpatia dos pernambucanos. Quando a notícia da Revolução do Porto chegou a Pernambuco, em outubro de 1820, os pernambucanos começaram a se articular para eleger um governo local, pois essa era a determinação das Cortes Constitucionais que se reuniram em Lisboa. O general Luiz do Rego não acatou de imediato as ordens vindas de Lisboa, preferindo aguardar o posicionamento do rei (que estava no Rio de Janeiro) e, ao mesmo tempo, tentando manter o controle sobre a província. Quando finalmente criou uma junta de governo, o general se colocou como presidente e não abriu mão do poder. As Cortes ordenaram também a libertação dos revolucionários pernambucanos de 1817 que estavam presos havia quase quatro anos em Salvador. Quando eles chegaram a Pernambuco, em maio de 1821, as pressões sobre o general aumentaram. Em julho de 1821 ele foi vítima de uma tentativa de assassinato no Recife, conseguindo escapar com vida. Foi então ordenada a prisão de dezenas de pernambucanos, sendo 40 deles enviados a Lisboa. Em agosto de 1821, Felipe Mena Calado da Fonseca e Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque arregimentaram tropas e apoios nos vários engenhos e vilas da região da mata norte da província (Paudalho, Nazaré, Tracunhaém, Limoeiro e Goiana). Essas tropas se reuniram em Goiana e, em 29 de agosto de 1821, elegeram uma junta governativa provisória e constitucional. Partiram de Goiana em direção ao Recife exigindo a retirada imediata do general Luiz do Rego. Os pernambucanos ansiavam profundamente para ter o direito de constituir um governo localmente eleito, com bases constitucionais e ao mesmo tempo, expulsar o governador e os militares portugueses que eram a personificação da opressão do absolutismo da monarquia portuguesa.
Além da assinatura da convenção, o que de fato aconteceu neste bairro que é da periferia do Recife? Por que os revoltosos escolheram esse local e não avançaram mais para o centro do Recife?
As terras hoje compreendidas no bairro de Beberibe começaram a ser ocupadas com o cultivo de cana-de-açúcar desde o século XVI, quando foram doadas como sesmaria dada por Duarte Coelho a Diogo Gonçalves. A povoação originou-se de um engenho fundado na margem direita do rio. Em meados do século XVIII as edificações originais do velho engenho não mais existiam, mas a área continuava habitada e uma nova capela começou a ser erigida e foi dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Em 1850, frei Caetano de Messina reedificou a capelinha que deu origem a atual igreja. A área do entorno da povoação também serviu como fornecedora de madeiras para Olinda e Recife. Em 1821, o povoado ainda pertencia ao território de Olinda. A junta de Goiana distribuiu suas tropas formando um cerco ao Recife que começava em Rio Doce (Olinda) até Afogados (ao sul do Recife). Era essencial privar o Recife dos mantimentos que chegavam pelos caminhos que conectavam o interior com o litoral. A povoação de Beberibe ficava mais ou menos no centro dessa linha de cerco, sendo um local estratégico, portanto.
Chegou a ter alguma batalha nesta região ou era mais um ponto de apoio do movimento?
Ocorreram combates nos arredores de Olinda (Fragoso) e em Afogados. Enquanto estava em Beberibe, a Junta recebeu a visita de um capitão de navio inglês que necessitava adquirir víveres para o seu barco. Sua esposa, Maria Graham, o acompanhou na ida até Beberibe e deixou um relato sobre o episódio.
Houve uma participação popular ou foi uma articulação mais restrita às elites? É verdade que o exército chegou a reunir algumas dezenas de milhares de “soldados”?
Os acontecimentos de 1821 contaram com mobilização popular, embora nem sempre os participantes tivessem plena consciência das bandeiras que defendiam. A ideia de constitucionalismo começava a se expandir pelo mundo ocidental a partir das experiências revolucionárias dos EUA e da França. Ao mesmo tempo, começavam a surgir as nações independente no que antes havia sido a América Espanhola. A transformação do súdito em cidadão era algo que era muito pouco compreendido naquele momento (de fato, a compreensão das responsabilidades da cidadania até hoje ainda não foi plenamente alcançada em nosso país até hoje, duzentos anos depois). Logo, ocorreram mobilizações puxadas pelos senhores de engenho e pelos agentes políticos que tinham condições de arregimentar o apoio dos que faziam parte de suas redes clientelares.
Existem alguns registros que falam de um “exército de milicianos”. Como funcionava?
O termo “milícia” naquele momento não tinha o significado nefasto que adquiriu nos últimos anos no Brasil. As milícias eram as tropas complementares formadas por todos os homens maiores de 16 anos e menores de 60 que podiam ser mobilizadas em casos especiais (como uma invasão externa ou um levante de escravizados). Essas milicias tinham os homens mais ricos das localidades como seus oficiais. Eles muitas vezes eram responsáveis por armar e alimentar os soldados destas milícias. No caso de Goiana, ocorre uma mobilização dessas “tropas” comandadas por senhores de engenhos.
Pernambuco ficou independente de Portugal quase um ano antes do restante do País e Gervásio Pires é eleito após a queda de Luís Barreto. Nesse aspecto há duas questões. Se Gervásio não era um dos líderes do movimento de Goiana, que articulações ele fez para ser eleito?
Gervásio Pires atuou como negociador na Convenção de Beberibe. Ele foi um dos enviados pelo General Luís do Rego. Era um dos mais importantes homens de negócio da praça do Recife e filho de pai português (também ligado ao comércio). Podemos dizer que Gervásio transitava entre os grupos envolvidos na contenda. Era comerciante, mas nascido no Brasil. Era filho de português, mas havia participado na Revolução de 1817. Passou quase 4 anos preso na Bahia junto com outros revolucionários de 1817. Talvez por todas essas particularidades e por sua capacidade de articulação política, tenha sido alçado à presidência da junta eleita em 26/10/1821, após a Convenção de Beberibe (05/10/1821). Os historiadores apontam que, apesar de sempre abrir amplo diálogo para a resolução das questões apresentadas à junta, era Gervásio o seu membro mais proeminente e influente. Ele redigiu pessoalmente a maior parte das proclamações e correspondências da Junta. Sua defesa permanente é a da ordem constitucional, algo que ainda não era bem compreendido pela população naquele momento (de fato, até hoje continua não sendo bem entendido). Importante salientar que a Junta de Gervásio não tinha nenhum membro ligado ao mundo dos engenhos, e isso causou ressentimentos, principalmente entre os líderes do movimento de Goiana.
E, por que tendo se separado de Portugal, mantém-se conectado com o restante do País, diferente de 1817 e 1824?
O desejo de Gervásio era que a autonomia política e administrativa de Pernambuco ficasse garantida em um texto constitucional respeitado pelos poderes. Nesse sentido, relutou em aderir ao chamado do príncipe Pedro de Alcântara (futuro Pedro I), porque acreditava que as Cortes de Lisboa poderiam garantir uma melhor situação de autonomia para Pernambuco. Essa percepção de Gervásio foi vista pelos seus críticos como uma forma de indecisão, ou mesmo de covardia. Depois de quase um ano de governo, em agosto de 1822, ficou claro para Gervásio que as Cortes de Lisboa pretendiam anular os avanços concedidos ao Brasil durante a presença de Dom João VI, o que significava reduzir o papel das províncias brasileiras a meras colônias novamente. Ele então aderiu ao Rio de Janeiro, mas já era tarde demais. A incompreensão sobre o jogo político que se desenhava na triangulação Lisboa – Recife – Rio de Janeiro e os ressentimentos de senhores de engenho e parte das tropas levaram à deposição da Junta de Gervásio em setembro de 1822.
Que importância esse episódio em Pernambuco teria para a Independência do Brasil, um ano após?
A adesão de Pernambuco ao Rio de Janeiro (e logo ao Império do Brasil) foi essencial para o êxito do projeto emancipacionista de Dom Pedro I. Havia uma consciência muito clara, tanto nas Cortes de Lisboa, quanto nos círculos políticos próximos ao Príncipe Regente no Rio de Janeiro de que Pernambuco era a província chave para que as províncias do norte, como eram chamadas na época (ou seja, da Bahia para cima), optassem por se unir ao Brasil ou não. Havia várias possibilidades sobre a mesa: manter-se unido a Portugal, aderir ao Rio de Janeiro pela independência do Brasil, ou, o que seria mais radical e era desejado por muitos pernambucanos, proclamar a independência tanto do Rio como de Lisboa, dando origem a um terceiro estado soberano com uma forma republicana de governo.
Há algum paralelo que podemos fazer com aquele contexto político e o atual? Como o questionamento de governos autoritários e a própria questão do papel do governo central e dos estados?
Em 1821 a discussão mais importante, na minha opinião não, nem a questão da independência, mas a questão do estabelecimento de uma ordem constitucional, que era um sistema de governar as pessoas, de governar as coletividades, era algo que estava se se propagando pelo mundo ocidental naquele momento. Existiam experiências antigas, as raízes mais antigas remontam lá pra Inglaterra do século 13, com a carta magna. Mas uma vivência mais sistemática e mais difundida de governos de base constitucional só começam a aparecer no final do século 18, com a independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. Então era ainda um experimento e se a gente for observar o tempo que a gente tem de governos constitucionais, vamos falar em torno de duzentos e cinquenta anos, com a história da humanidade toda a gente vai ver que é algo bem recente. É algo muito mais recente, por exemplo, do que as as formas de organização religiosas que continuam ainda existindo, algumas com mais de dois mil anos de de existência. Então, naquele momento, a discussão sobre o estabelecimento de sociedades governadas por ordem constitucional, se opondo ao que era o antigo regime onde a lei não era geral pra todo mundo, a lei era feita acordo com o nível social de cada pessoa. A lei era uma para o nobre e era outra para o plebeu, era outra para o clero, o que se pretende com a ordem constitucional é que a lei seja uma só pra todos e que os governantes e os juízes tenham limites claros, impostos pela lei na hora de realizar os seus atos. Então, isso era absolutamente novo e muito desafiador. Até hoje no Brasil essa consciência do que é um regime constitucional não está ainda totalmente sedimentada. Da mesma forma que a parte da maior parte da população naquele momento não compreendia o que era uma ordem constitucional, hoje também há uma dificuldade muito grande das pessoas entenderem a importância da constituição, de defenderem a obediência a constituição e de compreenderem, sobretudo, essa divisão proposta pelos pensadores do iluminismo de que deve existir uma divisão dos poderes. Os três poderes são autônomos, são independentes, devem ser harmônicos e trabalharem conjuntamente pelo bem do país, pelo bem da sociedade. Uma outra questão aberta ainda, desde aquele momento, é o o pacto federativo, o equilíbrio entre as partes componentes do país. Nós vamos ter ao longo da história do Brasil independente um viés muito mais centralista do que na prática federalista, embora a gente se chame República Federativa. Mas essa tendência de centralização, que é algo que está no olho do furacão da discussão em 1821, ela avançou um pouco na Constituição de 1989 com um chamado, vamos dizer assim, dos municípios para a governança de forma mais efetiva. Um certa limitação, uma certa partilha de algumas atribuições do Governo Federal com os outros entes federados. Mas ainda há um desequilíbrio importante e sobretudo um desequilíbrio entre os entes federativos. Ainda há um maior peso político e um maior direcionamento de recursos para determinados entes da federação. Essa autonomia efetiva dos e uma situação de investimento efetivo, distribuído e equilibrado é algo ainda que não foi realmente consolidado dentro do nosso país. Então são essas as duas questões que eu penso que a gente pode relacionar mais diretamente, a discussão de 1821 com os nossos dias: é o estabelecimento de uma sociedade de base constitucional com a participação dos cidadãos. Os cidadãos são pessoas que tem que se envolver na governança porque é esse o papel que uma ordem constitucional coloca para aqueles que compõem a vida do País. Não esperar que alguém resolva, que alguém solucione os problemas. Os problemas serão solucionados quando todos nós participamos das questões nacionais. E outro eixo importante é a questão da federação, do pacto federativo, do equilíbrio entre os entes e da prevenção às desigualdades regionais.
.
.
*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)
**Publicada originalmente em 25 de agosto de 2021