*Por Rafael Dantas
A República instalada em 1824 no coração do Nordeste brasileiro não teve vida longa. Em menos de seis meses, o governo foi derrotado e os líderes fugiram ou foram presos. O maior ícone, Frei Caneca, foi julgado e fuzilado perto do Forte das Cinco Pontas. A queda dos revolucionários derramou sangue, sonhos e deixou sequelas políticas e econômicas. Algumas estão sendo enfrentadas ainda hoje.
O primeiro impacto da vitória de Dom Pedro I sobre os confederados foi a dissolução de uma forte classe política e intelectual engajada na então província. O presidente da Confederação do Equador, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, conseguiu fugir para a Inglaterra. Frei Caneca, foi preso, condenado e morto. As demais lideranças tiveram destinos parecidos.
A força que irrompeu em 1817, na Revolução Pernambucana, e em 1821, na Convenção de Beberibe, e que voltou a abalar Dom Pedro I em 1824, ficaria contida após essa derrota. O próximo movimento de grande proporção no Estado aconteceria apenas quase 25 anos depois, na Revolução Praieira. Os ideais libertários e mais avançados que circulavam na colônia foram abafados.
“Com a repressão do governo central ao movimento da Confederação do Equador, vários personagens foram silenciados. No entanto, devemos considerar que foi um momento muito importante, não apenas para a história em Pernambuco, mas para a história do Brasil. Dom Pedro I consegue impor sua força nas províncias da região, no entanto, não foi suficiente para pacificar todas elas. Outros movimentos revolucionários foram surgindo, resultado, inclusive, das contestações que tinham como base liberdade e igualdade. Contestando as formas de governo e a própria repressão do governo central”, ressalta o professor de história da Universidade de Pernambuco, Carlos André Silva de Moura.
Os ideais, muito sofisticados para a época, ficaram como um legado da revolução. Para isso foi fundamental o papel exercido pela imprensa, antes e durante o período da Confederação do Equador. “Os jornais como Typhis Pernambucano, coordenado por Frei Caneca, foram fundamentais para a divulgação das ideias de liberdade que foram construídas”.
Seja pela imprensa ou pela habilidade retórica e de articulação dos seus líderes, essa revolução conseguiu também ter uma adesão popular. Um fato que contribuiu para a permanência dessas ideias, mesmo diante de um governo autoritário que se instalou. “A Confederação do Equador extrapolou outros movimentos anteriores, pois passou de uma simples conspiração. Concretamente, a Confederação decretou um processo de independência, também com a participação popular, que foi marcante. Além disso, os próprios questionamentos sobre a condição dos escravizados, anos depois, vai levar à criação de vários movimentos abolicionistas. Não só em Pernambuco, mas em diversas partes do Brasil”, analisa Carlos André.
Ao derrotar os revolucionários pernambucanos com o exército imperial, Dom Pedro I conseguiu consolidar também a mais centralizadora Constituição, que foi imposta em 1824. Era justamente ela um dos motivos que contribuiu para a explosão da revolução. Para o historiador Flávio Cabral, professor da Unicap, essa Carta, que foi a mais longeva de toda a história do Brasil, deixou um legado perverso para o País. Ela só viria ser derrubada em 1891, já no período republicano, após o longo governo de Dom Pedro II.
“Ficamos amordaçados, aceitando goela abaixo a imposição de um déspota. Era uma Constituição arbitrária que tem uma invenção maquiavélica, como dizia Frei Caneca, que era o Poder Moderador. O imperador poderia interferir em todos os poderes”, afirmou o Flávio Cabral.
A centralização do poder no governo central é um “legado” dessa derrota pernambucana. Contestada pela Confederação do Equador, que defendia claramente uma posição federalista, como nos Estados Unidos, a força concentrada da governança brasileira não foi abandonada. Os debates promovidos pelo ex- governador Eduardo Campos, que defendiam uma revisão do Pacto Federativo, quase 200 anos depois daquela revolução, permanecem ainda por serem resolvidos.
Inicialmente pela capital do Império no Rio de Janeiro e atualmente em Brasília, a concentração de poder no governo e nos poderes legislativos centrais é um fato. Uma expressão que exemplifica a dificuldade dos governos locais diante desse cenário é das marchas dos prefeitos com o “pires na mão” em direção ao Planalto. A busca de recursos para tocar a gestão dos municípios passou também a ser das emendas parlamentares. Seja do Governo Federal, da Câmara ou do Senado, estão na capital as decisões sobre o destino da maior parte dos recursos arrecadados no País.
O relatório publicado neste ano pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) exemplifica a continuidade do problema da concentração de poder. “O início deste ano nas prefeituras municipais é marcado, dentre outras atividades, pela preocupação com a situação fiscal, posto que ao menos metade dos municípios do País encerrou o ano de 2023 com déficit primário”, alertou o comunicado sobre as expectativas das contas municipais em 2024. Um problema de lá do Século 19 que, em outras nuances, permanece presente no Século 21.
Além da centralização administrativa e econômica do Império, o “Poder Moderador”, criado por Dom Pedro I na Constituição de 1824, com frequência é evocado pela extrema direita brasileira atualmente. Na leitura contemporânea dos grupos que atentam contra a democracia, o “Poder Moderador” que, no passado, pertenceu ao imperador, seria hoje de competência dos militares. Portanto, outro fantasma que sobreviveu com a derrota da Confederação do Equador.
PARA ALÉM DA CENTRALIZAÇÃO POLÍTICA
A manutenção do poder pelo Império contribuiu também para a estabilidade de muitas mazelas sociais do País, como a escravidão e mesmo a desigualdade na análise de Flávio Cabral. “O Império manteve o pobre no mesmo lugar, os povos originários sem condições, além da continuidade da escravidão. Muitas ‘heranças’ que temos hoje são frutos desse conservadorismo que se manteve com a Constituição de 1824. É bom lembrar que ela foi a que mais durou no Brasil”, afirmou o historiador. “O País teve muitas chances de mudança, mas desperdiçou um bocado delas”.
A vitória de Dom Pedro, na avaliação de Flávio Cabral, promove uma conservação social do País. “Houve uma independência, mas sem mortificar as estruturas da propriedade, do latifúndio, da escravidão e não se promoveu uma revolução educacional. Foi um modelo antigo demais, de atraso profundo. Um pensamento de País muito divergente daquele proposto nas revoluções de 1817 e 1824, que foram rechaçados bruscamente com a morte dos seus líderes”.
O fim da escravidão estava no debate promovido pelos revolucionários de 1824. Era um tema delicado pois parte dos liberais de então não eram favoráveis. Esse rompimento com o regime escravocrata ficaria para depois, mas estava na pauta da Confederação do Equador. A derrocada do movimento contribuiu para a continuidade do regime de escravidão por inacreditáveis mais de 60 anos.
REDUÇÃO GEOGRÁFICA
Uma das represálias mais pragmáticas contra a província rebelde de Pernambuco foi a amputação do seu território. Em 1817 já havia perdido a Comarca das Alagoas. Em 1824 foi a vez da perda da Comarca do São Francisco, inicialmente para Minas Gerais e depois para a Bahia.
O prejuízo para os pernambucanos não foi pequeno. A província que iniciou aquele século com 278 mil quilômetros quadrados foi reduzida aos atuais 98 mil quilômetros quadrados. Em dois cortes, o Estado diminui de um tamanho semelhante ao Equador e maior do que a Nova Zelândia para ficar menor do que a Coréia do Sul. No desenho anterior à perda das comarcas, Pernambuco fazia fronteira, inclusive, com Minas Gerais e Goiás. O extremo do seu território estaria a menos de 200 quilômetros de Brasília.
“Por decisão de Dom Pedro I, Pernambuco perdeu a antiga Comarca do São Francisco, que correspondia a 60% do seu território”, destacou Laurentino Gomes no livro 1822. Fazendo uma citação direta de Barbosa Lima Sobrinho, o autor destaca que “A mutilação obedeceu apenas a motivos políticos, ao desejo de evitar que chegassem até Minas Gerais os pruridos revolucionários”.
A escolha da Bahia para receber em definitivo a Comarca do São Francisco é vista pelos historiadores como um benefício pelo fato de a província ter um histórico de maior alinhamento com o Império. “Pernambuco saiu perdendo e quem ganhou foi a Bahia, que sempre ficou ao lado dos governos centrais”, destacou o historiador George Cabral.
Essa região, por sinal, abriga uma das grandes áreas produtivas do agronegócio brasileiro, com a produção de soja no oeste baiano. Um dos municípios que lidera o PIB da agropecuária brasileiro, São Desidério, fica localizado nessa região. A cidade é uma grande produtora de itens como algodão, soja e milho.
A comarca ceifada de Pernambuco após 1824, por sinal, ainda hoje defende a independência da Bahia para a constituição do Estado do Rio São Francisco. A proposta do plebiscito foi do deputado pernambucano Gonzaga Patriota. O projeto previa um novo Estado que abarcaria 35 municípios baianos. Apesar de haver uma bandeira e um brasão do Estado do Rio São Francisco, o pleito não avançou.
CONCENTRAÇÃO ECONÔMICA NO SUDESTE
A derrota da Confederação do Equador representou também a consolidação do movimento que levou o protagonismo econômico do Nordeste para o Sudeste. Enquanto Pernambuco teve um papel econômico central nos primeiros séculos após o descobrimento do Brasil – principalmente com a produção de açúcar – a opção da família real, em 1808, de levar a capital para o Rio de Janeiro induz uma inversão de papéis.
O arquiteto e urbanista Francisco Cunha e o historiador Carlos Cavalcanti, no curso Recife Passo a Passo – A Saga Histórica da Capital mais Antiga do País, destacaram que a escolha de Dom João VI promoveu uma inflexão histórica no Brasil. A decisão de mudar a sede, deixando Salvador, foi um passo importante para o processo de enfraquecimento econômico do Nordeste.
Durante esse período das lutas revolucionárias, o Recife ainda era uma das cidades mais importantes do País, chamada de terceira capital. Posto que vem a perder nas décadas seguintes. “Esse século é lembrado pelas várias tentativas do Recife em deter a ascensão do Sudeste. A cidade se move para fazer reformas políticas liberais e propor reformas sociais. O liberalismo, exacerbado em revoluções, no entanto, cobrou um preço altíssimo a Pernambuco e ao Recife”, avalia Francisco Cunha.
Além de concentrar os investimentos no Sudeste, a derrota dos pernambucanos fez o Estado ter uma conta maior a pagar. A historiadora Socorro Ferraz, professora emérita da Universidade Federal de Pernambuco, destaca que os impactos locais foram para além da penalidade territorial. “Desde o Império há uma política de não desenvolver esta região, provavelmente por causa da sublevação quase permanente dela. Com a derrota das revoluções, houve uma perda significativa de Pernambuco em relação ao Sudeste durante o Império, que tomou todo o século 19”, avalia a historiadora Socorro Ferraz.
Mesmo dentro da região Nordeste há uma diferença no tratamento entre as províncias, com prejuízos para a mais rebelde e revolucionária. Socorro Ferraz explica que Pernambuco foi penalizado nos tributos que eram pagos ao Império em razão da sua força política. “A província de Pernambuco apresentou um modelo para o País que não foi aceito. A Bahia, que tinha uma elite que aceitava a política do Império, recebia de volta 50% dos impostos que arrecadava. Pernambuco recebia apenas 30%. Essa diferença na questão dos impostos é muito significativa”.
O processo de reversão do protagonismo do País em direção ao Sudeste não foi abrupto, mas lento e contínuo, aprofundando-se no Século 20. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas, a participação média da economia do Nordeste entre 2002 e 2020 foi de apenas 13,6% do PIB do Brasil. Pernambuco, que já foi a província mais próspera, possui apenas 2,5% do PIB nacional. Enquanto isso, a participação do Sudeste circula entre 52% e 53% segundo dados do IBGE.
A MORTE E A MEMÓRIA DE FREI CANECA
A Confederação do Equador deixou um herói como legado para Pernambuco. “Ele é um panteão da nacionalidade do Brasil, está no mesmo patamar que outros personagens históricos que também participaram de movimentos revolucionários”, apontou Carlos André Silva de Moura.
Mesmo sem ser o presidente da província, Frei Caneca foi o líder que deixou uma marca mais relevante dessas revoluções. Era intelectual, um excelente comunicador, mas chegou a pegar em armas também para defender a Confederação do Equador. Com a derrocada do movimento, ele conduziu um grupo até o Ceará, na expectativa de encontrar com os revolucionários que lá também resistiam ao Império. A empreitada pela região adiou, mas não evitou a queda da revolução. Após o julgamento no Recife, a execução de Frei Caneca compõe um dos episódios mais emblemáticos da história do País.
Nelson Werneck Sodré escreveu que em 13 de janeiro de 1825, Frei Caneca “apareceu diante da tropa que o esperava, e calmo, caminhou entre as alas até a Igreja do Terço”. Lá retiraram suas vestes sacerdotais, na ocasião em que ele “resignado e tranquilo durante a cena hedionda” caminhou sem sinal de temor até o largo onde se levantou o altar para que ele fosse enforcado. Nesse momento, o carrasco se recusou a prosseguir sua execução. O ajudante e os presos de igual modo se negam a consumar o ato. Decidiu-se então pelo fuzilamento. “A primeira descarga abateu-o e iluminou-lhe o caminho para a história”. No local da sua morte, nas proximidades do Forte das Cinco Pontas, há um busto do líder revolucionário perseguido pelo Império.
Há um forte pensamento entre os historiadores de que o reconhecimento da contribuição de Frei Caneca à história do Brasil ainda é por demais insuficiente diante da sua estatura intelectual e política. As comparações com Tiradentes, que foi constituído como um herói nacional, são quase inevitáveis e críticas.
“Frei Caneca é uma figura muito rica como personagem histórico. Ele tem origem popular. Sujeito da teoria para prática. Ele escreve muito sobre política, com textos primorosos em que se percebe uma erudição impressionante para sua época e para o lugar onde ele viveu, que era a periferia da periferia. Mas ele não era só do gabinete. Na hora que foi preciso, foi para a linha de frente de batalha. Então, é um personagem infinitamente mais rico e mais denso do que aquele que foi escolhido para ser o herói da República que foi Tiradentes”, avaliou o historiador George Cabral.
O historiador considera que Frei Caneca é um personagem que mesmo Pernambuco e o Recife não homenagearam ainda da forma como deveria. Ele sugere que deveríamos ter um grande memorial dedicado ao seu herói, com uma bela estátua e um centro de produção e divulgação de saberes históricos. “As homenagens que Frei Caneca tem em Pernambuco ainda são muito tímidas diante da grandeza da sua personalidade histórica”.
A Confederação do Equador é um dos maiores episódios da bravura dos pernambucanos na construção da história do País. Deixou como legado um herói ainda a ser mais conhecido pela população e muitas ideias para a construção do Brasil. Várias se consolidaram, outras ainda permanecem como desafio. Sua morte suspendeu provisoriamente as lutas federalistas e republicanas, mas não as suplantou. Como ele mesmo disse: “Quem bebe da minha ‘caneca’ tem sede de liberdade!”
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)