*Por Rafael Dantas
Como se inicia um novo país? Os quadros heróicos e hinos de louvor aos revolucionários não dão conta do trabalho de organização de um estado. Opositores, pressões militares e econômicas, reconhecimento internacional… A Confederação do Equador, proclamada há 200 anos em Pernambuco, na sua breve trajetória encampou muitas dessas batalhas nos quase cinco meses que permaneceu de pé. O movimento, que teve entre seus principais expoentes o religioso e intelectual Frei Caneca e o governador Manoel de Carvalho Paes Andrade, expõe os desafios de quem decide construir um novo caminho contra o sistema vigente.
A revolução, que pela segunda vez separava Pernambuco do restante do País, não era uma simples revolta contra um mau governo nacional. Havia um conjunto de ideias republicanas e de autonomia local que sedimentaram o caminho revolucionário. Não havia um consenso sobre propostas como a da abolição da escravatura, mas era uma pauta que também circulava na época.
NARRATIVAS, DEBATE PÚBLICO E IDEAIS REVOLUCIONÁRIOS
Se hoje os debates nas redes sociais – inclusive recheados de fake news – formam o que chamamos de opinião pública e induzem a direção das decisões políticas, na época um dos intelectuais que moveu as ideias foi Frei Caneca. Líder religioso, soube usar seus espaços eclesiásticos e também a imprensa para questionar os caminhos do Império e propor novas alternativas.
Em seu emblemático jornal Tiphys Pernambucano, que circulou até agosto de 1824 (durante o governo revolucionário) e em outros escritos, Caneca deixou registrado o pensamento que se tornou o combustível dos dias da revolução. Um semestre antes da proclamação da Confederação do Equador, o frei descrevia que o País estava com uma "uma nau destroçada pela fúria oceânica” e que carecia da ajuda decidida e abnegada de todos os seus filhos. Para ter ideia da consciência do seu papel, Frei Caneca escreveu em uma de suas cartas, em 1823, que “é um dever do cidadão, que escreve, dirigir a opinião pública e levá-la como pela mão no verdadeiro fim da felicidade social”.
Na primeira edição após a proclamação da Confederação, que circulou em 8 de julho daquele ano, Caneca celebra o passo dado pelos revolucionários, antecipa a resposta que viria do Império mas de, antemão, já compartilha com seus leitores a aceitação internacional da queda da unidade nacional. O redator contava que jornais da Argentina, do Uruguai e da Inglaterra já previam a queda do governo.
Se a segurança pública é um dos temas que atormentam os brasileiros do Século 21, durante o Império, a decisão de Dom Pedro de retirar as tropas de Pernambuco inflamou os revolucionários. Diante de um iminente ataque da Corte Portuguesa, Dom Pedro I deslocou sua presença militar do Recife para defendê-lo no Rio de Janeiro. Isso não passou ileso pelas páginas no Thypis Pernambucano.
Frei Caneca denunciou que o imperador teve forças para causar muitas hostilidades aos pernambucanos em tempos de paz, gastando muito dinheiro e só trazendo prejuízos à província e “agora que vê os perigos iminentes, trata unicamente de sua pessoa, desampara-nos, entrega-nos a nossos recursos, energia e valor!. (...) Os defensores são para o tempo dos perigos, e se não servem para esses, menos para os de paz e tranquilidade. Não queremos defensores de mostrar e sim de defender”.
O jornalista Luiz do Nascimento escreveu no artigo O Jornalismo Pernambucano ao Tempo da Independência (no Diário de Pernambuco, em 1972) que o “Thypis foi o órgão oficial da Confederação do Equador e o valoroso Frei Caneca só largou a pena depois da 29ª edição, para juntar-se às tropas de Manoel de Carvalho Paes de Andrade, terminando [fechando o jornal], dada a derrota do movimento”.
ESFORÇOS NA SEGURANÇA
Enquanto Frei Caneca incendiava os pernambucanos contra o imperador, logo após a proclamação, o governador Paes de Andrade lança um manifesto para tornar a revolução conhecida da população e começa os esforços de defesa. As preocupações com a segurança eram justamente da vinda de embarcações portuguesas para o Recife e, na sequência, dos embates do Império contra a Confederação do Equador.
“Em 1824 já era possível imprimir documentos que eram espalhados pelas ruas, colados nos muros e nos postes. Dessa maneira, as pessoas liam e discutiam esses papéis que tiveram uma circulação formidável”, afirma o historiador Flávio Cabral, professor da graduação e pós-graduação da Unicap. “Antigamente se fazia essa comunicação muito verbalmente também e por manuscritos. Mesmo as figuras escravizadas e as mulheres da época tomavam conhecimento dos temas debatidos por meio desses manifestos e pelos boatos”.
Se a comunicação da revolução estava em ordem, a organização das forças militares era um desafio. Embora tenha arregimentado muitos apoiadores, a Confederação do Equador tinha opositores também entre as lideranças políticas locais. Logo, parte dos chefes militares locais aderiram à revolução, enquanto a outra parte ficou ao lado do Império.
“Manoel de Carvalho tem apoio de parte das elites. Mas havia uma outra parte que foi alijada do poder, que é a de Francisco Paes Barreto, o Morgado do Cabo. Então há um choque dessas elites. O presidente da Confederação do Equador teve apoio do Batalhão dos Henrique, por exemplo, e de outras milícias locais que tenta- ram se organizar para conter a contrarrevolução”, afirmou Bruno Câmara, professor da Universidade de Pernambuco, em Garanhuns.
A defesa contrária à revolução, no entanto, vinha de uma estrutura do Império que se fortaleceu nos anos anteriores de 1824. “As tropas imperiais, vale lembrar, passaram por uma reformulação após a Independência de 1822, e se tornaram extremamente fortes. Essas tropas descem em Alagoas e vão marchando, junto a tropas do Morgado do Cabo, até o Recife. Elas têm várias escaramuças. Foi essa força que debelou várias revoltas contra o Império, após o período regencial”.
A ameaça do avanço imperial fez Frei Caneca clamar, no Thypis Pernambucano de 5 de agosto de 1824, pela participação popular para pegar em armas. “Quando a pátria está em perigo, todo cidadão é soldado. (...) todos deveriam se adestrar nas armas para rebater o inimigo agressor”.
CONSTITUIÇÃO PROVISÓRIA E OS DEBATES CONSTITUCIONAIS
O novo governo não poderia seguir com a Constituição de 1824, que havia sido imposta por Dom Pedro I e que previa o Poder Moderador, por exemplo. A Confederação do Equador adota naquele momento uma adaptação da Constituição da Colômbia, republicana e considerada muito avançada para a época.
“Os intelectuais dessa época tinham conhecimento do que se passava na América. A corrente federalista que surgiu em 1824 é a norte-americana, tanto que Paes de Andrade defendia a adoção do sistema de governo dos Estados Unidos. A Constituição da Colômbia serviria de modelo na época, por ser mais moderna e mais interessante socialmente”, explica o historiador e professor da Unicap, Flávio Cabral.
A perspectiva era com a consolidação do novo regime construir uma nova Constituição considerando as regionalidades de cada província. Essa perspectiva de federalismo era uma das grandes forças dos ideais que vigoravam naquele momento. “Mas seria necessário construir uma legislação que considerasse o nosso regionalismo, pois o Brasil é plural. As lideranças entendiam ser preciso uma Constituição em defesa das liberdades, mas que tivesse também um olhar para essa pluralidade e para as questões regionais. Aí, percebe-se que eles não estão pensando em Pernambuco, não era um separatismo, mas um modelo de projeto para o Brasil”, completou Flávio.
Apesar desse documento não ter chegado a ser construído em uma Assembleia Constituinte, visto que muito rapidamente os esforços são na defesa do regime, Frei Caneca tratou de um esboço para a lei. Em seu jornal, ele publicou em algumas edições de 1824 partes do que ele chamou de “Bases para a Formação do Pacto Social”.
Entre os artigos de destaque estão, por exemplo, a questão da igualdade que, para Caneca, “consiste em que cada um possa gozar dos mesmos direitos”, além da liberdade de manifestação de pensamento e de imprensa. No artigo 19, o religioso escreveu um item que deve ter feito os escravistas terem ficado de cabelo em pé: o revolucionário defendeu que todo homem “não pode vender-se, nem ser vendido. A sua pessoa não é uma propriedade alienável”.
A AGENDA DA ESCRAVIDÃO EM 1824
O fim da escravidão esteve em discussão no conjunto de ideais da revolução, porém foi deixado para um segundo momento. Não era unanimidade, especialmente entre os líderes que possuíam escravos. Havia liberais que não eram tão liberais assim entre os revolucionários.
Como não existia um consenso e se temiam as repercussões econômicas do fim da escravidão, o tema delicadíssimo para o novo governo não avançou, segundo Flávio Cabral. “Havia um pensamento contrário à escravidão em 1824, mas o problema são os grupos dominantes que, mesmo fazendo parte dos revolucionários, recuavam nesse assunto. Perder propriedade é uma coisa que eles não estavam dispostos. São liberais, mas têm seus limites. Deixaram para tratar da escravidão posteriormente. Mas essa pauta fez com que muitos passassem para o outro lado, pois os projetos políticos do imperador não previam questões relativas ao fim da escravidão. Eles garantiam as propriedades, as benesses e o conservadorismo”.
O historiador George Cabral, professor da UFPE, destaca que era muito complicado falar da libertação em lugares onde até 50% da população chegava a ser composta por pessoas negras escravizadas. “Manoel Carvalho Paes de Andrade proíbe o tráfico negreiro para as províncias que faziam parte da Confederação. Mas por que a escravidão não foi abolida na revolução? Isso estava no ar. A opção por Pedro I passa muito por isso. A queda da revolução não foi apenas pela repressão do Rio de Janeiro, mas a contrarrevolução teve seu papel”.
A autonomia provincial poderia até ser apreciada pelos senhores de engenho, segundo George Cabral, mas a igualdade das raças era considerada um aspecto muito radical das ideias revolucionárias que os repeliram. “A adesão ao Império do Brasil passa muito por essa perspectiva da permanência da escravidão e do tráfico. Não por acaso, quando o Império começa a desmontar a escravidão, com muito atraso, a monarquia começa a entrar em crise também. Um ano e meio depois da abolição, vem a República”.
INDÍGENAS EM 1824
Na Confederação do Equador, os povos indígenas apresentaram posicionamentos diversos e complexos, refletindo suas experiências locais em relação às lideranças políticas do País e da província, de acordo com a historiadora Mariana Dantas, professora da UFRPE. Em Pernambuco e Alagoas, os indígenas dos aldeamentos de Barreiros e Jacuípe se aliaram às forças de repressão contra os confederados. Eles desempenharam um forte papel militar, ajudando a evitar que os revolucionários recebessem apoio externo, especialmente pelos portos na região da fronteira.
“Quando falamos de povos indígenas, tratamos de uma ampla diversidade cultural e de identidades. Então, não se pode falar que havia o povo indígena, mas havia vários povos indígenas. Dependendo das circunstâncias locais, dependendo das experiências deles mesmos, o posicionamento vai ser diferente em relação à revolução”, afirma a pesquisadora da UFRPE.
Os indígenas de Cimbres, na região de Pesqueira, por exemplo, assumiram um posicionamento ainda mais distinto ao defende- rem a volta de Dom João VI, de Portugal. Ao se oporem tanto aos confederados quanto às forças de repressão brasileiras, eles revelaram uma postura política bem peculiar. Esta defesa não foi um simples alinhamento monarquista, mas sim uma estratégia de preservação de suas terras e dos direitos garantidos no período colonial. A historiadora considera que a complexidade de suas motivações ilustra que eles estavam profundamente engajados e informados sobre o contexto político da época.
"O governo confederado, por exemplo, não fez uma tentativa de negociação com esses povos, de aproximação ou de troca. Então, com as mudanças todas dessa época, de maneira muito geral e resumida, eles entenderam que era mais importante defender o regime político em que eles viam a manutenção das terras coletivas", explica Mariana Dantas. "Eles vão interpretar aquele contexto político de revolta nesse processo de formação do Estado Nacional Brasileiro, enquanto que a experiência que eles tinham estava relacionada ao monarca português que havia concedido aquelas terras ainda no período colonial."
A diversidade de posicionamentos dos povos indígenas durante a revolução exemplifica a importância de considerar experiências dos diversos grupos que vivem no País. A defesa das terras coletivas foi uma motivação central para muitos indígenas, que interpretaram o contexto político de acordo com suas necessidades. Enquanto isso, no Ceará, província que também aderiu à confederação, os indígenas se posicionaram ao lado dos revolucionários por motivações locais.
APERTO NA ECONOMIA
Se os altos impostos incomodavam os pernambucanos antes da proclamação da Confederação do Equador, após o movimento ser debelado é o bloqueio do Império que dificulta a vida nos estados confederados. O Recife, por exemplo, que tinha uma economia internacionalizada com a exportação e importação, perde os canais de escoamento dos seus produtos pelo porto, gerando dificuldades imensas para o novo governo gerir. “Com o porto bloqueado, vivemos uma crise na economia, que nem recebia, nem poderia enviar mercadorias. A população tinha que se virar com o que a província produzia”, conta Flávio Cabral.
Além disso, mesmo na província havia os municípios que não eram confederados. “Muitas cidades do interior, na região da Mata Sul, como Cabo de Santo Agostinho, e no Agreste permaneceram fiéis ao imperador. A província estava dividida, com o espírito mais autonomista, pelas cidades do norte, como Igarassu e Goiana”.
Teobaldo Machado, no livro As Insurreições Liberais em Goiana, registra que os goianenses, a exemplo do que fizeram em 1817 e 1821, aderiram à revolução e lideraram o movimento no norte da província de Pernambuco e até no sul da Paraíba. “Os revolucionários goianenses, após a instalação da república confederada na vila, foram implantar as ideias revolucionárias nas vilas paraibanas, onde mantinham uma certa prevalência política e econômica”.
Quanto mais dependente da economia açucareira para exportação, maiores eram as dificuldades para atravessar o período do bloqueio econômico. Os municípios que tinham outras atividades, como algodão, conseguiram lidar com um pouco menos de pressão nesse momento de depender da produção local. Uma diferença dessa e de revoluções anteriores é que os senhores de engenho, a “bancada rural” da época, mesmo em Goiana, foram desde o primeiro momento favoráveis às forças do imperador.
Enquanto a pressão econômica apertava de um lado, do outro, o poderio militar local seria insuficiente para garantir a resistência. Além das tropas imperiais, dos contrarrevolucionários locais e também dos indígenas, o império ainda trouxe mercenários estrangeiros para reforçar o embate contra os confederados. Para evitar um derramamento de sangue, a habilidosa escritora inglesa Maria Graham, que estava de passagem em Pernambuco, se reúne com Paes de Andrade. A pedido do Lord Cochrane, almirante que bloqueava com a sua esquadra o Porto do Recife, ela age como uma mediadora entre o império e os revolucionários.
Graham tenta convencer o líder local a se render, com algumas propostas duvidosas de anistia oferecidas pelo almirante. Apesar da forte habilidade da inglesa junto ao republicano, que ela descreve uma pessoa notável e que falava bem o idioma inglês, um acordo não foi fechado. O sonho da república é desmantelado mesmo pela via militar.
Os 150 dias de governo revolucionário de 1824 não foram fáceis. A repressão foi dura e seus líderes foram mortos ou fugiram para outros países, como o caso de Paes de Andrade. O fuzilamento de Frei Caneca e a retirada da Comarca de São Francisco de Pernambuco são os ícones do final desse movimento, que deixou um legado ainda não resolvido que discutiremos na terceira reportagem da série sobre a Confederação do Equador.
*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)