“Quero personagens que me transformem” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“Quero personagens que me transformem”

Revista algomais

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Foi de malas prontas para São Paulo que Hermila Guedes conversou com Cláudia Santos e Rafael Dantas em pleno Aeroporto dos Guararapes para falar da vida e da carreira. Assídua da ponte aérea entre o Recife e a capital paulista, a atriz não abre mão de morar em Pernambuco, embora saiba que muitas oportunidades da área artística se concentram no Sudeste. Conhecida por interpretar papéis densos, ela explica como escolhe seus personagens, fala da admiração por Laura Cardoso e elogia a qualidade do cinema local.

Como foi viver no Sertão na infância e a mudança para Olinda?
Foi uma infância como todas as outras de uma menina de interior, rodeada de uma família muito grande e feliz, de muitas mulheres. Num momento da vida, meu pai foi assassinado, ele era policial, e minha mãe, que tinha muita vontade de morar no Recife quando solteira, resolveu que aquele era o momento de ir. Até para dar mais chances para a gente na questão de estudos. Viemos eu, minha mãe e minha irmã. Fomos para Olinda porque era mais barato para morar. Passei minha adolescência lá. Conhecia alguns amigos que faziam teatro e que me levaram para conhecer essa arte na casa de um grande ator chamado João Ferreira. Ele montava peças com jovens não atores na casa dele, com recursos próprios, por amor. Depois a gente tentava pautas em teatros das cidades. Fiz muita peça no teatro de Paulista e no Varadouro. Mas não pensava em seguir a carreira artística. Fiz turismo na época e era muito tímida. Acreditava que fazendo teatro, talvez, me desse uma desenvoltura melhor em lidar com o público. Eu pretendia ser agente de turismo. Só que, por ironia do destino, rolou um teste com Adelina Pontual para um curta-metragem e passei. Era a época da retomada do cinema pernambucano, Cláudio Assis estava fazendo Texas Hotel, Marcelo Gomes veio com Clandestina Felicidade e eu conheci essas pessoas. Depois, surgiu o convite para fazer Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, o primeiro longa dele. A partir daí conheci o Karim Aïnouz e fui fazer o Céu de Suely. Em seguida, fiz um trabalho na televisão e nunca mais consegui fazer outra coisa a não ser, ser atriz.

Você chegou a trabalhar com turismo?
Cheguei a estagiar numa agência. Fiz outras coisas também, fui promotora, aquelas que fazem divulgação de produtos de empresas, fiz letras na universidade, mas não cheguei a concluir porque não consegui conciliar o curso com a carreira.

Você ganhou prêmios desde o primeiro trabalho. Isso trouxe facilidades?
No filme O Pedido, de Adelina Pontual, recebi alguns prêmios, no Festival de Fortaleza e no Cine PE. Depois desses prêmios eu pensei: nossa vai aparecer milhões de trabalhos! Não apareceu (risos). Mas fiz network, conheci uma turma legal, que foi me levando para fazer testes e terminou que fiz outras coisas. Mas demorou um pouquinho, não foi exatamente como eu pensei que ia ser.

Você fez papéis muito densos. Como você escolhe os personagens?
Tive sorte por ter surgido trabalhos maravilhosos para mim. Mas também escolho personagens que me desafiam como atriz. Como não estudei artes cênicas, a minha escola é o trabalho, a maneira como sou conduzida pelos diretores é onde aprendo. Escolho personagens que me desafiam como profissional e como pessoa, que me transformam, que possam acrescentar e com os quais eu possa aprender muita coisa.

A personagem do Céu de Suely foi um divisor de águas?
Sim, foi bem especial. Foi o primeiro longa em que fui protagonista – depois teve o Verônica (Era Uma Vez Eu, Verônica). As pessoas me diziam: “depois do Céu de Suely sua vida vai ser diferente, se prepara”. Depois que o filme foi lançado, fiquei um ano esperando esse momento, numa ansiedade. Aí, fui fazer coisas bem diferentes, não queria fazer teatro, mas um curso de depilação, de cabeleireira, pra não ficar com a carga da expectativa do que iria acontecer, para tirar o meu foco dessa ansiedade.

Mas aí surgiram novas oportunidades…
Depois que o filme foi lançado, ganhei alguns prêmios e o filme também, tanto fora como aqui no Brasil. Nessa época, Ricardo Waddington procurava uma atriz para fazer Elis Regina, na série de TV Por toda a Minha Vida. Fiz um teste na Globo – imagina pela primeira vez na minha vida! Eu estava muito nervosa e não me achava nada parecida com a Elis. Lembro que estava fazendo teste com Júlio Andrade, que é um ator maravilhoso. Normalmente nos testes da Globo há uma equipe enorme te assistindo e o Ricardo percebeu que eu fiquei um pouco intimidada com a quantidade de pessoas, e tirou todo mundo do meu campo de visão. Fiz o teste só eu e o Júlio e acho que, por isso, consegui passar.

Apesar de todo esse tempo atuando com papéis fortes você continua tímida?
Sim. Eu sei que para um ator, o exercício do teatro é importantíssimo, mas para mim é mais difícil, porque tem plateia, entende? Faço parte de um grupo no Recife chamado Coletivo Angu de Teatro. A gente vai fazer 15 anos de história, é um grupo que já tem uma base forte e é muito admirado na cena pernambucana, mas ainda assim o teatro me intimida muito.

Passada mais de uma década da retomada, como você vê hoje o cinema pernambucano?
Ainda bem que continua com a mesma força de quando a gente começou, com muita vontade de fazer acontecer. Na época a gente não sabia no que ia dar e, de repente, a gente vira referência nacional do cinema brasileiro. E a chegada de diretores mais novos, como Gabriel Mascaro e Marcelo Lordelo, trouxe novos olhares sobre a nossa história, nossos personagens e deu uma nova identidade aos filmes.

Como o Sul Sudeste encara o cinema pernambucano?
Acho que com muito respeito, inclusive, acho que a gente tem aberto portas e quebrado algumas fronteiras por causa da qualidade do nosso cinema, não só da equipe técnica e direção, mas também dos atores. Hoje a gente tem a chance de exercitar um tipo de atuação que a gente não tinha, uma outra linguagem. Os atores aqui têm oportunidades, a gente está podendo fazer trabalhos fora daqui por causa desse olhar e dessa referência que se tem do cinema pernambucano.

Você mora no Recife. Qual a relação sua com Pernambuco?
Quando morava no interior, eu sempre vinha nas férias para o Recife a passeio e, como tenho vitiligo, me consultava com um dermatologista daqui e fazia o tratamento. Naquela época era muito difícil conseguir remédio e bons médicos que entendessem essa doença. Por isso, minha mãe me trazia para o Recife. Ela morou e estudou aqui quando era solteira, era uma vontade dela vir para cá. Por causa disso ela fez me apaixonar por essa cidade também. Sou apaixonada tanto por Olinda, como pelo Recife, onde moro há cinco anos. Confesso que resisto muito a sair daqui porque gosto da nossa cultura e do nosso povo, que é muito mais acolhedor, mais guerreiro. As pessoas aqui não esperam, fazem. Lembro de quando comecei a fazer cinema, as pessoas tinham muita garra, ganhávamos pouco, não sabíamos no que o trabalho ia dar. Já trabalhei sem ganhar nada em algumas ocasiões, mas a vontade era imensa pra fazer com que aquilo acontecesse e desse certo.

Você está na ponte aérea Recife- São Paulo. Como conciliar viagens e família?
Tenho três meninas, que já estudam. Na época da primeira filha, Celina, minha mãe era a babá, então era muito mais fácil levá-la aonde eu fosse. Ela só veio a entrar na escola aos 3 anos para poder me acompanhar nos trabalhos na época. Mas, agora, não dá para levar todas, então eu vou sozinha.

O que você tem feito ultimamente?
Filhas! (gargalhadas) Passei um tempo fazendo filhas e parei um pouco de trabalhar. Veio a gravidez de Stela, emendei com a gravidez de Helena, uma diferença de dois anos. Consegui fazer alguns trabalhos com Stela aqui na cidade e uma série para a Globo, chamada Segunda Dama, com a Heloísa Périssé, mas era um trabalho de dois meses. Com Helena, consegui fazer o Fim do Mundo, uma série para o Canal Brasil, com direção de Hilton Lacerda, junto com Jesuíta Barbosa, em que passei 15 dias. Foram trabalhos pequenos que deram para conciliar com a maternidade. Agora que elas estão mais crescidas, estou voltando ao mercado, fazendo testes, voltando a trabalhar. Agora estou na série Assédio, com direção de Amora Mautner, numa plataforma diferente da Globo voltada para assinantes, como a Netflix. Depois de um ano ela vai para o canal aberto. Então, estou abrindo as minhas portas agora.

Quem é a sua referência como atriz?
Laura Cardoso. Vejo muita verdade e alma no trabalho dela, uma paixão que ela tem em fazer cada personagem. Pra mim, a arte chegou por acaso, mas ela não só me proporciona ser uma grande profissional, mas também ser uma pessoa diferente do que eu poderia ser. O tempo todo estou exercitando os meus eus, as minhas possibilidades de como posso ser como ser humano. Acho que Laura Cardoso leva o trabalho dela assim também. É quase como uma filosofia, uma religião, é uma questão mais de espiritualidade, de transformar seu ser em vez de só pensar na fama, no dinheiro. Escolho minhas personagens a partir disso também, eu tenho que me apaixonar por elas antes de fazer, senão não consigo.

Quais as principais dificuldades enfrentadas nas produções?
O que mais dificulta a produção cinematográfica e televisiva é que elas são caras. O que mais dificulta a gente hoje é não saber se aquele trabalho vai acontecer, porque muito do que a gente faz depende do dinheiro do Estado. Isso dificulta muito as pessoas que fazem produções autorais, independentes, que querem realizar um trabalho e, às vezes, não conseguem porque não sabem se terão ou não essa possibilidade financeira. Ao mesmo tempo vejo também uma mudança. As produções estão colocando atores novos para trabalhar, porque só aquela cara tradicional, aquele estigma, não está dando mais conta. Então as produções estão diversificando mais o que mostrar, o que fazer e como fazer também. É um momento de crise, mas tem também uma transformação. A gente sempre dá um jeito para que as coisas possam acontecer e isso muda, e vira uma outra coisa. A crise tem atrapalhado, mas tem ajudado também. Tira você da zona de conforto.

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