No próximo dia 19 de outubro, o Museu da Abolição recebe a exposição coletiva Os da Minha Rua: Poéticas de R/existência de Artistas afro-brasileiros, que reúne a produção visual de dez artistas negras e negros contemporâneos – Ana Lira (PE), Dalton Paula (GO), Edson Barrus (PE), Izidoro Cavalcanti (PE), José Barbosa (PE), Maré de Matos (MG/PE), Moisés Patrício (SP), Priscila Rezende (MG), Renata Felinto (SP/CE), Rosana Paulino (SP). A mostra, que conta com o patrocínio do Funcultura e tem curadoria de Joana D´Arc, levanta importantes questões sobre a cultura africana e a cultura afro-brasileira e questionamentos em relação ao lugar da negra e do negro na sociedade brasileira. Além da exposição, cujo título faz referência a obra do escritor angolano Ondjaki, o projeto comporta a realizaç&at ilde;o de uma oficina/performance, ministrada por Moisés Patrício entre 16 e 19 de outubro, e de um curso realizado por Rosana Paulino, no sábado dia 20.
A concepção da exposição surgiu em 2016 quando a professora e pesquisadora Joana D´Arc Souza Lima realizava uma pesquisa sobre arte africana e começou a se confrontar com a ausência do corpo negro nas exposições, nos acervos, nas escolas, nos museus, na academia. E essa ausência apontava para uma presença enorme do epistemicídio das culturas e das histórias dos negros e negras no Brasil, e sobretudo para o preconceito velado que existe em nossa sociedade. Nesse momento ela se aproximou de Rosana Paulino que, além de artista negra, é também pesquisadora e ativista do movimento negro. “Foi a partir desse estudo e dessa aproximação com a arte negra, e de um diálogo intenso com Rosana, que pensei em trazer para o Recife essa exposição. Escolhi artistas contemporâneos negros e negras, que trabalham em diferentes dimensõe s das questões que subjazem ao tema da cultura africana e da cultura afro-brasileira, passando pela mitologia Uoruba, pelas religiosidades afro-brasileiras, pela crítica social, pela oralidade e ancestralidade, para ocupar esse espaço museológico”, explica Joana, destacando que assim seria possível mostrar os impasses e tensões em relação à ausência de visibilidade que esses sujeitos sofrem.
Rosana Paulino expõe trabalhos que dialogam com sua vasta produção ligada às questões sociais, étnicas e de gênero. A posição da mulher negra na sociedade brasileira e os diversos tipos de violência sofridos por esta população decorrente do racismo e das marcas deixadas pela escravidão são elementos centrais na sua poética. A pesquisadora também ministrará o minicurso, no sábado dia 20, intitulado Arte Afro-brasileira: Novos Lugares, Novas Falas que discutirá a produção artística qualificada como africana e afro-brasileira.
Moisés Patrício vai apresentar fotografias da série Aceita?, nas quais tenta quebrar o preconceito existente contra o Candomblé no Brasil. Além disso, o artista comanda uma oficina de quatro dias sobre Processos de criação em rituais de performance negra. Aberta ao público em geral, mas com maior apelo aos artistas, a proposta é circular e criar percursos no entorno do Museu da Abolição e a partir dessas vivências conceber performances que tragam elementos da cultura afro-brasileira, em especial do candomblé.
O artista Dalton Paula apresenta duas fotos da série fotográfica Cor da Pele e outra imagem de Corpo Receptivo – todas trazem o corpo negro do artista como protagonista. Ele exibe também o vídeo O batedor de bolsa, performance em que novamente seu corpo negro é ressignificado junto aos outros elementos ali postos (uma bolsa feminina preta, um cassetete policial, uma calça social marrom, uma botina bege e uma venda preta nos olhos).
Edson Barrus traz ao Recife a obra Cão Mulato, um lambe-lambe que confronta os discursos puristas, ensinando numa bula como produzir um cão vira-lata geneticamente. O lambe-lambe é parte de um projeto intitulado, Base Central Cão Mulato, desenvolvido pelo artista: o artista toca em questões de um mundo de espaços e indivíduos híbridos. O artista busca meios para dar concretude e visualidade ao que considera a idéia-síntese de Brasil: o Cão Mulato, o cachorro sincrético, o vira-lata tirado do lixo e ungido a raça nacional. “O artista se coloca no papel de um cientista e liquidifica, com mordacidade, ideias de pureza de raça e de evolução genética através do uso da tecnologia. Tomando o cão mulato por símbolo de brasilidade, enxerga o país – assim como o seu próprio trabalho – como um espaço mesti&cced il;o, transacional e para sempre in progress”, escreveu Moacir dos Anjos. Ele também apresenta o vídeo Formigas Urbanas que reflete sobre a presença do corpo híbrido, mestiço, negro de brasileiros em condição informal nos grandes centros urbanos.
A pernambucana Ana Lira, que há tempos vem desenvolvendo trabalhos de forte cunho político e investido nas ações colaborativas, a exemplo da obra Letreiro, que desenvolveu como site specific, no projeto comissionado para a exposição Agora Somos Todxs Negrxs da Associação Cultural VídeoBrasil, em São Paulo. Agora, a artista vai realizar uma proposta de vivência performática objetivando articular uma dinâmica de compartilhamento e escuta sobre invisibilidade como ferramenta de poder. Em que cenários estar nas entrelinhas pode nos ajudar a fortalecer as articulações coletivas?, esse será o questionamento básico da vivência, com duração de 60 minutos. A artista vai propor para nove pessoas presentes, entre o público, dinâmicas de ancestralidade e micro-política, cujos saberes compartilhados circularã o entre silêncios. Além disso, vai exibir uma série de carimbos intitulado, Saia Livre. Um trabalho que pede a participação do visitante. Saia Livre é um poema elaborado a partir de uma provocação feita para a edição #11 da revista de teatro Trema cujo tema era Censura. A proposição consistia em debater atos de cerceamento às artes no atual cenário do país. Pensando no contexto das expressões culturais de matriz africana e das festas populares em Pernambuco, uma das formas de construir um silenciamento lento vem sendo por meio da redução ou da interrupção de financiamento dos grupos, agremiações e cortejos de maracatus e escolas de samba dos bairros populares das cidades. Estamos atravessando outra fase semelhante agora e como resposta elaborarei um poema para livre circulação – que pode ser veiculado inteiro o u em pedaços, como quem entrega pistas. O poema foi dividido em seis carimbos e vai circulando de acordo com os tamanhos de papel que encontramos no caminho. Ele também está sendo materializado em um estandarte para ações futuras em cortejos populares.
Já Maré de Matos trará um trabalho igualmente político, porém mais ligado às questões da memória e da ancestralidade. Artista visual e poeta, mineira do Vale do Rio Doce, sua terra foi habitada pelos índios botocudos que resistiram por décadas ao domínio dos colonizadores. A artista articula trabalhos em pintura e costura, interferência em madeira, poesia expandida, arte relacional, intervenções poéticas urbanas, ações e fotografias. No Museu da Abolição a artista prepara uma instalação intitulada Rio Doce. Pretende discutir a maior tragédia ambiental do Brasil, protagonizada pela mineradora Samarco, em 2015, em Minas Gerais. A representação e visualidade de práticas exploratórias históricas que desembocaram no evento ocorrido, possibilita evidenciar o que é naturalizado, mas tamb&eac ute;m oculto: a relação extrativista como legado colonial instaurado no seio do estado. “Como mineira, do Vale do Rio Doce, a narrativa evidencia que minha memória é atravessada e por vezes confundida com a prática da exploração”. A instalação se constrói a partir do mote do poema:
mariana mar de lama murmura socorro
o trauma tiraniza o sentido da fala e cala
minha cidade nos baixos noticiários
nasci no vale do doce rio engolido pela lama
no estado eternamente seduzido e colonizado
meus conterrâneos choram areia longe de casa
meu desejo insistente não enche o rio
ouro água metal trinca de três metros trilho
você fornece querosene pra sede do meu povo
meu coração por cem anos morto e nada no jornal
o barro rouba de novo a memória de minha cidade
piedade em português insiste muito valadares
o poder mata os bichos que moram na água doce
o passado, esse porta retrato descascado por terra
tsunami de escombros narram desagradáveis fatos
o terror tece os fios do lençol onde mora a máquina
a potência come quieto a história do brasil colônia
o presente é esta sinagoga vazia em pleno sétimo dia
O pernambucano Izidoro Cavalcante apresentará dois trabalhos inéditos, feitos para a exposição. Sonho Guardado em Branco, um objeto composto por uma cama de campanha, pintada de branco (tinta automotiva) dentro uma camada de algodão branco que forma uma matéria convidativa para o gesto de pegar, mas todo o objeto estará encerrado em uma caixa de acrílico. O artista vai realizar uma performance no dia da abertura da exposição. “Vou colocar meu corpo como objeto de resistência dando continuidade Sonho Guardado em Branco (cama), disponibilizarei uma quantia de cem camisas brancas de algodão, todas empilhadas, em cima das outras, dobradas como se vende nas lojas. Usarei meu corpo nu, sentado, e, com rapidez utilizarei da troca da camisa. Uma forma de falar da troca de pele, para ser aceito na sociedade branca”, conta. O registro da performance será exibido durante os dois meses que a exposição estiver aberta ao público.
Já o artista José Barbosa vai expor dois entalhes em madeira, manufatura que remete aos fazeres artísticos da arte africana, e três pinturas que trazem repertórios das temáticas da representação do negro e da negra e das culturas afro-brasileiras presentes no carnaval de Olinda. O artista, radicado na cidade, integrou a Oficina da Ribeira durante os anos 1960 e aprendeu muito jovem a trabalhar com o entalhe da madeira. Os oratórios feitos pelo artista que, ao mesmo tempo, recolocam as questões da arte sacra ou da arte barroca no Brasil, feita pelas mãos dos africanos em situação de trabalho escravo ou de artífices negros brasileiros, no período colonial. Como não eram reconhecidos com artistas, boa parte dessa produção barroca não tem assinatura. José Barbosa mantém diálogo estreito com essa visualidade. Além dos orat& oacute;rios, também foi escolhida uma peça em objeto intitulado por Totem, trabalhado em madeira policromada.
Renata Felinto traz a obra Embalando Mateus ao som de um hardcore (2017), num trocadilho com o ditado popular (bastante machista) “quem pariu Mateus que o embale”, na qual ela reflete sobre a maternidade sozinha. A série é composta por vários trabalhos produzidos em linguagens diversas. A essas composições a artista adicionou frases ditas por mulheres que criam seus filhos sozinhas. Esta série visa refletir sobre a maternidade romantizada vendida socialmente, com a potente ajuda das mídias do audiovisual, em contraposição à maternidade real, especialmente a maternidade sozinha real, que se caracteriza pela pouca ou nenhuma presença do genitor que, por motivos de irresponsabilidade, de distância, de ausência, de conivência da sociedade, dentre outros, não se faz presente com o mesmo peso na criação da/s criança/s, seja do ponto de vista da form ação humana, seja do ponto de vista da sobrevivência e suprimento de necessidades materiais básicas.
Por fim, Priscila Rezende virá ao Recife, no Dia da Consciência Negra, dia 20 de novembro, para realizar uma performance nos jardins do Museu. A proposta é que durante esta semana comemorativa uma série de atividades movimente o espaço. Já está programada a participação de jovens poetas da cena pernambucana, que tem se destacado nacionalmente, como Adelaide dos Santos, que faz parte do Recital Boca do Trombone. Outro artista convidado pela curadoria é Ypiranga Filho, apresentando a escultura gigante, em ferro, de Ogum, que compõe uma série de trabalhos do artista sobre os orixás, vai compor a mostra.
Os da Minha Rua: Poéticas de R/existência de Artistas afro-brasileiros l
Artistas: Ana Lira (PE), Dalton Paula (GO), Edson Barrus (PE), Izidoro Cavalcanti (PE), José Barbosa (PE), Maré de Matos (MG/PE), Moisés Patrício (SP), Priscila Rezende (MG), Renata Felinto (SP/CE), Rosana Paulino (SP).
Curadoria: Joana D´Arc
Abertura: 19 de outubro, 19h
Museu da Abolição
Endereço: R. Benfica, 1150 – Madalena
Segunda a sexta, das 9h às 17.
Sábado, das 13h às 17h
Até 16 de dezembro