Comissão da Verdade, consultor da Unesco, José Paulo Cavalcanti Filho conta sempre boas histórias dos lugares onde passou. O talento para perceber o inusitado no cotidiano talvez tenha sido um dos motivos que o levou a ser escritor. Nesta conversa, ele conta sobre sua trajetória e a experiência de transpor seus livros para a telinha, um deles é a biografia de Fernando Pessoa.
Qual a lembrança que senhor tem da infância no Recife?
A vida não é estrada reta, onde você anda sempre em frente sabendo aonde vai chegar. É um cordão sem ponta, em que você, em algum momento, volta para a raiz. No começo você quer conhecer lugares, depois quer só voltar aos lugares que mais gostou. No começo você quer conhecer sons, no fim quer só ouvir a música que gosta. Por exemplo, uma vez por ano faço com minha mulher uma viagem culinária com pelo interior da França. Mas, num determinado momento da vida começo a gostar de tanajura, de bode guisado. Isso não é comida da minha infância, porque sou urbano, mas da infância de meu pai e do meu avó, que são de Ipojuca. Para falar do começo você tem que falar da raiz que está antes, que você herda. Mas passei uma infância como a de qualquer pessoa que nasceu no Recife. Sempre morei em Boa Viagem. Tenho uma irmã que foi campeã sul-americana de natação. Nadávamos mar adentro, até não vermos a praia, só os cocurutos dos edifícios. Hoje apenas doidos fariam isso. Você vai e volta sem uma perna por causa dos tubarões.
Sempre quis ser advogado?
Queria ser maestro na infância, depois decidi ser diplomata. Aí aprendi várias línguas. Aos 15 anos – idade em que você é um idiota absoluto – queria ser filósofo. Mas com 15 anos você quer ser o maior filósofo do Ocidente de todos os tempos. Eu só lia filosofia. Aí começaram a aparecer textos em grego antigo, aí eu me danei a estudar grego antigo. Fiz vestibular para filosofia, passei, assisti a uma aula. Em seguida, levantei-me, me despedi da classe, avisei que não ia voltar. Fiz vestibular para Direito na Católica, porque meu pai havia ensinado lá. Depois fui proibido de estudar pelo regime militar, porque eu era presidente do diretório acadêmico. Em seguida ganhei uma bolsa para Harvard, mas não passei muito tempo lá porque, no ano seguinte, me deixaram estudar e voltei para cá.
Quando o senhor voltou?
Em 1970. Fui para a Universidade Federal, me formei e queria ensinar. Foram abertos oito concursos para a Federal, eu me inscrevi em todos. Mas aí o SNI (Serviço Nacional de Informação) cancelou os concursos. Virei advogado por acaso, porque queria ser acadêmico. Trinta anos depois, em 1985, Fernando Lyra (ministro da Justiça do governo Sarney), que eu não conhecia, me convidou para ser seu secretário geral. Ele disse: “não entendo nada de direito, vou fazer política. Meu secretário geral tem que entender de direito e me prometer não se meter em política. E vai ser você”. Aí eu disse: Fernando, eu não quero. Ele respondeu: “se quisesse, eu não lhe convidava”. Insisti: eu não tenho tempo. Ele retrucou: “se você fosse um desocupado, eu não lhe convidava”. Em seguida falei: rapaz, vou perder muito dinheiro. E ele devolveu: “o problema são os que entram aqui querendo ganhar muito dinheiro”. Então coloquei: você fala muito grosso e eu não levo carão nem de meu pai. Se você falar grosso comigo eu lhe dou uma bolacha e vou-me embora. Ele respondeu: “Não. Você me dá uma banana e diz que me dá uma semana para escolher seu sucessor”. Achei engraçado e pensei: não vou brigar com esse homem nunca! (risos)
E como foi?
Fui ministro da Justiça por uns meses, entre 1985 e 1986. Prometi nunca me meter em política. Não me meti. Ele prometeu não se meter no meu trabalho, não se meteu. O que tenhamos feito de bom e ruim é obra coletiva. Foi um momento único participar do desabrochar da democracia. Liberamos livros, filmes e músicas censurados. Uma vez entrou uma baixinha com cara de japonesa na minha sala. Sem pedir licença. E disse: “o que o senhor tem contra o meu filho da puta?” Assustado, eu disse que não tinha nada. Ela continuou: “o senhor sabe a diferença entre o meu filme passar às 21h30 e às 23h30 na Globo?” Não, respondi. E aí ela explicou: “às 21h30 eu ganho dinheiro, às 23h30 vou à falência. Eu preciso mutilar a obra para tirar esse palavrão para passar o filme às 21h30. Não quero mutilar, mas não quero ir à falência”. Era Tizuka Yamasaki e o filme era Gaijin. Liguei para a censura e pedi liberar o “filho da puta” da Tizuka. (risos).
Como foi participar da Comissão da Verdade?
Não deveria ter participado. Estava em Gravatá e me liga um cidadão da Casa Civil e pergunta se eu gostaria de participar da Comissão da Verdade. Eu disse não. Ele insistiu: “Mas tem tanta gente que quer”. Eu disse: ótimo. Tem 500 petistas querendo entrar, coloque qualquer um. Ele respondeu: “O que é que eu digo para a senhora presidente?” Respondi: Diga que eu não quero. No outro dia ele ligou: “Ela mandou trocar a pergunta: se ela lhe nomear você renuncia?” Eu disse que não renunciaria.
Por que não quis participar?
Houve 41 países que fizeram comissão. Nenhum deles fez um relatório além de um ano e meio da transição. Nós fizemos 30 anos depois. E bem ou mal, a transição estava feita, negociada por Tancredo Neves.
Há especialistas defensores de que crimes de tortura são imprescritíveis.
A critica mais recorrente é que a Lei de Anistia foi feita por um Congresso garroteado, que atendeu a pressão dos militares. Só que existem duas Leis de Anistia, uma de 1979 e outra de 1985, quando já estávamos no governo de Tancredo, que acabou sendo de Sarney. Quem votou foi o Congresso que derrotou Maluf e elegeu Tancredo. Não tinha nenhum militar fazendo pressão.
Alguma história dos desaparecidos chamou sua atenção?
Naquela época os militares também erravam. Quando o torturado morria, eles trocavam seu nome e o enterravam como indigente na cova rasa. Mas, no caso de um professor do Maranhão, enterraram com o nome dele mesmo, mas numa ala do cemitério onde não havia covas. O que eles não sabiam é que o coveiro, no final do dia, tinha que fazer um relatório do que realizou. No documento oficial do enterro foi documentado que o professor foi enterrado numa determinada cova, mas a caderneta do coveiro informava o lugar certo. Ao enterrar eles plantaram uma árvore em cima da cova. Isto porque a raiz das árvores adora o potássio do osso, elas comem o osso para se alimentar. Só que eles plantaram o piti, árvore do cerrado, cuja raiz desce apenas meio metro na terra e se espalha pelos lados para pegar a pouca água da chuva. Aí o corpo ficou protegido. Até sua camisa ficou intacta. Ouro caso foi o de uma senhora que foi diagnosticada com câncer e tinha dois meses de vida. Ela disse ao médico que tinha a missão de enterrar seu filho, desaparecido no Araguaia. O médico lembrou que ela teria pouco tempo de vida. Ela respondeu: “Você não está entendendo. Não vou morrer enquanto não enterrar meu filho”. Cinco anos depois, encontramos o corpo dele e lhe devolvemos. O velório foi uma festa. Quando enterrou o filho, a mãe pediu a palavra: “esse é o dia mais feliz da minha vida. Cumpri minha missão. Quando eu partir ficarei ao lado dele e ficaremos juntos para a eternidade”. Foi para casa, jantou com a família. À noite, pela primeira vez, depois de anos, deva ter dormido em paz, e não acordou. Esses casos pessoais é onde explode a natureza humana. Isso me fascinou.
Por isso escreveu Somente a Verdade?
O livro conta casos extraordinários, ocorridos em nosso escritório de advocacia. Se não escrevesse, acabariam esquecidos. Especial, nele, é que se revela, em sua majestade inteira, os Sanchos e os Quixotes que somos. São histórias em que se pode quase tocar a natureza humana. Trocando nomes e situações para evitar que os atores possam vir a ser reconhecidos. Agora, vai virar minissérie. Assinei contrato com pessoas que trabalham com a Globo.
Há outras biografias de Fernando Pessoa, por que escrever mais uma?
Um dia estava na editora Record e disse que o livro que eu gostaria de ler de Pessoa não existia. Gostaria de saber, por exemplo, sobre o poema Tabacaria: havia uma tabacaria de verdade que ele frequentava? Quem são os personagens do poema? Eles existiram? O editor disse: então faça que a gente publica. Passei 10 anos escrevendo, fui 30 vezes a Portugal. Não trabalhei menos de quatro horas por dia. Ao término, a editora disse que o livro estava bom, mas muito gordo (800 páginas) e ficaria muito caro. Venderia mil exemplares. Seis meses depois de impresso, foram vendidos 50 mil. Está em 10 países, é o livro de Pessoa mais traduzido no mundo. A novidade é que vai virar série de TV dirigida por Marcelo Tas. Terá 4 episódios, de 53 minutos. Depois vai virar 16 episódios para o Netlfix de 9 minutos.
Como será?
Vou reproduzir com Tas o que aconteceu comigo. Começa na casa em que Pessoa nasceu. Há um poema, de Alberto Caieiro que diz: O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha Aldeia/ porque o Tejo não é o rio que corre pela minha Aldeia. Qual é o rio que corre pela aldeia de Caieiro? O Tejo. Como é que o Tejo não é mais belo que o Tejo? É porque são dois: o Tejo rio e o Tejo pessoal do autor que está em contato com ele. Os autores interpretam que essa aldeia é Lisboa. Ora, pensei, naquele tempo as crianças eram alfabetizadas em casa pela mãe, não havia escola primária. O menino que não vai para escola, que vive no quarto e no quintal, a aldeia dele não é Lisboa, mas a casa dele. Para esse pensamento estar certo, Pessoa teria que ver o rio da casa dele. Vou ao quintal da casa dele, mas de lá não se vê o Tejo. Subo as escadas para ir a seu quarto. Cheguei na janela, de onde dava para ver uma faixa grande do Tejo. Estive lá ao meio-dia, vi o sol espelhado o rio na cor de ouro. Pessoa diz: o meu rio/ é lá que o sol se reflete. Em outro poema fala: ó sino da minha aldeia, dolente em tarde calma /cada sua badalada/soa dentro de minh’alma. Bem, se a aldeia dele é o seu quarto, tem que ter um sino lá. Vimos no mapa que a igreja mais perto da casa dele está a 200 metros. É a que ele foi batizado. Mas será que dá para ouvir o sino do quarto? Fomos lá e perguntamos ao padre se Pessoa havia sido batizado ali. Ele confirma. Perguntamos onde estava o sino. E supresa: é a única igreja do mundo em que o sino está na parte de trás do templo. Vamos andando adentro da igreja, subimos uma escada e Marcelo me diz: “olha lá o quarto de Pessoa!” Eu estou reproduzindo no filme experiências sensoriais que aconteceram comigo.