"Precisamos transformar a ciência em algo concreto para que as pessoas entendam que ela faz sentido no seu dia a dia" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

"Precisamos transformar a ciência em algo concreto para que as pessoas entendam que ela faz sentido no seu dia a dia"

Revista algomais

Marcelo Carneiro Leão, Diretor do Cetene, afirma que o setor empresarial brasileiro não tem cultura de investir em pesquisa e pretende aproximar a ciência da indústria. Ao cunhar a expressão “do paper ao PIB”, defende que a produção científica vá além dos artigos acadêmicos e impacte o cotidiano da sociedade. Nesta entrevista ele também revela seus planos à frente do centro tecnológico.

Quando em outubro do ano passado, o químico e ex-reitor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Marcelo Carneiro Leão assumiu a diretoria do Cetene (Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste), anunciou que atuaria na conexão entre ciência e indústria. Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele analisa a ausência de cultura do setor privado brasileiro em investir na pesquisa, ao contrário de países da Europa e os EUA.

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Com uma carreira marcada pela inovação e pela pesquisa aplicada, Leão também comentou a distância entre a ciência e a sociedade que, para ele, é fruto da formação educacional e do fato de que os resultados dos temas pesquisados, muitas vezes, não se revertem em benefícios concretos para a população. A maioria acaba transformada em artigos para revistas científicas. “É preciso sair do paper para o PIB”, conclama o diretor do Cetene que também aborda as atividades realizadas no centro tecnológico e as perspectivas para ampliar a sua atuação para todo o Nordeste.

Observamos uma distância entre a ciência e a sociedade, algo que ficou evidente na pandemia. Para agravar, uma pesquisa da OCDE revelou que o Brasil é o país onde as pessoas mais acreditam em fake news. Como o senhor avalia essa realidade?

Sobre a crença nas fake news, acho que a primeira questão está nos processos educacionais no País. Primeiro, a ausência deles em algumas situações. Segundo, há uma desconexão do que é de fato a ciência e o que os conceitos científicos trazem para a sociedade. Fomos formados com a preocupação na construção de conceitos, definições, decorar datas, ou seja, um conhecimento desconectado do que poderia trazer de importância para a vida cotidiana. É preciso corrigir esse problema de formação, fazer com que as pessoas compreendam que a ciência, o conhecimento, é uma ferramenta fundamental para que possamos construir uma sociedade melhor, seja no desenvolvimento industrial, médico, enfim, todos os campos da ciência.

Outro aspecto está no nível superior, em relação às pesquisas, à ciência mais aprofundada, que muitas vezes não chegam na ponta para resolver os problemas concretos da sociedade. Quando assumi a reitoria da Universidade Rural, em 2020, criamos o instituto IPÊ (Instituto de Inovação, Pesquisa e Empreendedorismo), cujo lema é tentar trabalhar os projetos e as pesquisas na perspectiva de uma hélice quádrupla, envolvendo o governo, a academia, a iniciativa privada e o terceiro setor.

E o outro eixo, sobre o qual, inclusive, cunhamos a expressão do "paper ao PIB", ou seja, da pesquisa ao PIB, que é concebido num sentido amplo, não somente na questão de geração de renda per capita, mas melhoria de qualidade de vida das pessoas, da sociedade, geração de emprego, de renda etc. Precisamos transformar ciência em algo concreto para que as pessoas entendam que ela faz sentido no seu dia a dia, está presente nas roupas que usam, nos remédios, nos carros. O celular é um exemplo: 60% do iPhone foi desenvolvido com dinheiro público americano, é ciência pura, levou anos de pesquisa, de investimento do estado americano. Depois a Apple comprou a patente. Então, precisamos melhorar o sistema educacional, dar sentido ao conhecimento e integrá-lo às coisas concretas do cotidiano.

Na sua posse, o senhor anunciou que atuaria na conexão entre ciência e indústria. Na verdade, observamos a falta de integração entre academia e o setor empresarial. Como o senhor analisa essa situação?

Existem diferenças entre o Brasil e outros países. Nos Estados Unidos e na Europa, a pesquisa também acontece na iniciativa privada. Lá as indústrias, as grandes empresas, têm centros de pesquisas dentro do seus parques, porque entendem a sua importância para melhoria do produto que fabricam e para a atividade da empresa. No Brasil, não há essa cultura. Hoje mais de 90% da pesquisa brasileira é feita no setor público, fundamentalmente nas universidades federais e estaduais públicas e alguns centros de pesquisa.

O grande desafio é aproximar pesquisas, governo, iniciativa privada e terceiro setor. Vou citar um exemplo de uma pesquisa que desenvolvemos no Cetene sobre o lúpulo, usado em cosméticos e cerveja. Hoje, 90% das cervejeiras brasileiras compram lúpulo da Inglaterra, dos EUA ou da Holanda. Estamos tentando desenvolver um produto que seja adequado ao nosso clima, para que possa ajudar a diminuir tal dependência.

Os pesquisadores me apresentaram a proposta dizendo que haviam publicado em revistas científicas. Mas é preciso sair do paper para o PIB e transferir essa tecnologia para as empresas produtoras. Perguntei se eles haviam conversado com o ecossistema cervejeiro, inclusive, temos aqui a Heineken, a Itaipava. Eles disseram que não. Eu disse, “então, a pesquisa começou errada”.

E isso acontece muito. Os pesquisadores desenvolvem uma pesquisa, alguns geram patentes, mas param por aí. O Brasil avançou, mas parou nas patentes. O País, hoje, é o 13º em produção científica do mundo, mas é apenas o 49º em inovação. Inovação é diferente de invenção. Algo que eu invento e patenteei é invenção, mas inovação, de fato, é quando transformo essa invenção em algo concreto e real que impacta na vida das pessoas e dos animais.

No ecossistema de inovação, é preciso transformar a pesquisa mais básica, que acontece nas instituições públicas, em produto real e, para isso, é necessária a parceria da iniciativa privada, que é quem está lidando com o dia a dia desse produto. Assim, é possível direcionar a pesquisa a fim de encontrar uma solução para o problema da importação de lúpulo. Estamos reformatando a nossa lógica, vamos conversar com o ecossistema, desenvolver um lúpulo e, em seguida, reunir os governos dos estados do Nordeste, cooperativas de pequenos produtores, para os quais o Cetene vai fornecer as mudas de lúpulo. Esse pequeno produtor vai produzir já com a garantia de compra do ecossistema cervejeiro.

Temos recursos humanos para inovar ou a fuga de cérebros ainda é um problema?

Há 30 anos nós não tínhamos – ou tínhamos muito pouco – cérebros em várias áreas. Os poucos, de fato, iam embora. Houve um esforço, no início dos anos 2000, com a ampliação do sistema universitário, das unidades de pesquisa e o número de doutores formados aumentou. Em outros países, a iniciativa privada contrata doutores para seus centros de pesquisa. No Brasil, é muito pouco. Aqui um exemplo é a Baterias Moura que tem um instituto de pesquisa, mas é uma exceção à regra.

Existem áreas em que temos um quantitativo grande de mestres e doutores que não é absorvido. Existem outros setores mais inovadores onde há uma deficiência. O Porto Digital, por exemplo, há algum tempo, tinha 5 mil vagas disponíveis e não preenchidas. Daí, o problema do sistema formativo. Precisamos refundar nosso sistema de formação desde o ensino fundamental, educação básica e educação superior.

Formamos pessoas desconectadas com a identidade desse mundo atual, 90% dos nossos profissionais formados não estão adequados ao mundo contemporâneo e, portanto, não contribuem para esse desenvolvimento. Muito mais do que fuga de cérebros, vejo a inadequação da formação. Outro ponto, conforme mencionei, é aproximar a iniciativa privada e o terceiro setor para absorver esses pesquisadores, numa perspectiva de que eles se formem com a concepção de inovação, do empreendedorismo científico, porque o empreendedorismo não é apenas montar um negócio. A ideia é ter, no seu negócio, profissionais com a compreensão empreendedora, que criem algo. Um profissional empreendedor no sentido da sua capacidade de criatividade, de inovação. Para isso, é necessário adequar o sistema de formação, incluir empreendedorismo e inovação nos currículos das universidades e aproximar governo, academia, iniciativa privada e terceiro setor.

A questão do financiamento também é um desafio?

Sem dinheiro não se faz pesquisa nem inovação. São Paulo, por exemplo, reserva 1% do ICMS líquido para a pesquisa científica. Em Pernambuco, depois de Miguel Arraes, se garantiu 1% também, só que existe uma engenharia contábil em que esse valor cai pela metade. Há também a interação do poder público com a iniciativa privada. Em Pernambuco, há uma lei, um fundo de inovação, em que 2% dos impostos de uma indústria podem ser descontados a partir do desenvolvimento de pesquisas. Ou seja, ao invés de pagar esse imposto, a empresa entrega a um fundo de inovação que, por sua vez, abre editais. É o que a Facepe e outros órgãos fazem para desenvolvimento de pesquisas.

Além disso, hoje no Brasil, avançamos para uma situação que não é tão ruim. No governo anterior, o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico) foi contingenciado. No final do ano, eram liberados R$ 2 bilhões, no máximo. Quando o novo governo assumiu, em 2023, esse valor foi para R$ 9 bilhões, em 2024, foi para R$ 12 bilhões e, este ano, o orçamento para o FNDCT é de R$ 15 bilhões, é onde está acontecendo o recurso para pesquisa.

Para um país não tão rico como o Brasil, que é a oitava economia, há um financiamento razoável. Precisamos sempre de mais dinheiro para fazer mais pesquisa, mas o financiamento não é o problema mais grave hoje. Temos caminhos de financiamento público que talvez precisem ser incrementados com financiamento privado. As empresas têm de entender que precisam aportar pois o processo de pesquisa de desenvolvimento tem um caminho que começa com dinheiro público. É como funciona nos países mais avançados, o Estado financia essa parte inicial, a pesquisa avança e, quando se percebe que vai dar um bom resultado, a iniciativa privada compra esta patente para transformá-la em produtos.

Nessa lógica, talvez seja preciso mais dinheiro público para chegar à invenção e, depois, dinheiro privado para transformar essa invenção em inovação. No Cetene, o orçamento é de R$ 6 milhões ao ano, é muito baixo e precisamos de recursos para comprar insumos, ter uma sobra para manutenção de equipamentos. Então, nossa venda de serviços para a iniciativa privada nos ajuda, pelo menos, a manter nosso parque de laboratórios.

Quais as atividades realizadas pelo Cetene e em que áreas atua?

O Cetene é uma unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. São 17 no Brasil. Sua missão institucional é desenvolver tecnologias estratégicas para o desenvolvimento social e econômico do Nordeste. É colocar a ciência para resolver os principais problemas da região, como as questões climáticas e alimentar. É contribuir com tecnologias estratégicas, por exemplo, construir equipamentos e aparatos para agricultura familiar, para o pequeno e médio produtor que não têm dinheiro para comprar essas tecnologias.

O Cetene surgiu de uma solicitação do ex-governador Miguel Arraes, no primeiro Governo Lula, para que viabilizasse a construção de uma biofábrica em Pernambuco, para contribuir na produção de cana. Hoje, além dessa biofábrica, ele conta com outras áreas como biotecnologia, que é a produção de plantas com clones, nanotecnologia, ou seja, partículas extremamente pequenas, que contribuem na agricultura, no desenvolvimento de implantes dentários, em células fotovoltaicas. Outra área é a computação científica.

Na sua concepção, o Cetene passou a ser um grande laboratório multiusuário para o Nordeste inteiro, com equipamentos de ponta. Hoje, há equipamentos na área de microscopia que ninguém tem na região. O objetivo é ser um grande laboratório, uma grande central analítica, um complexo de análise que dê suporte à pesquisa, seja pública ou privada. O Cetene é um local onde universidades, institutos do Nordeste e empresas privadas podem utilizar-se dos equipamentos para fazer suas análises de pesquisa e desenvolvimento.

Uma das primeiras ações que implementei é o match day, que é um dia de reunião com as empresas para apresentarem suas demandas e nós apresentamos o potencial para contribuir nessa solução, algumas dessas deram match e foram desenvolvidas. Outra ação forte nessa questão do empreendedorismo científico é o fomento ao ecossistema das startups deep tech. Assim que assumi o Cetene, criei a Incuba Science, que é uma incubadora de base científica e tecnológica, vamos abrir um edital para que as deep techs que queiram ser incubadas no Cetene passem a usar nossa infraestrutura de equipamentos, laboratórios, computadores.

E o que são essas deep techs?

São startups que precisam de um ferramental e um conjunto de pessoas muito mais amplo para resolver problemas maiores, não pontuais. Por exemplo, temos uma startup deep tech que desenvolveu uma boia para pequenos produtores de tilápia e camarão. O problema dessa produção é o custo de energia para ligar e desligar o aerador, pois é preciso ter uma quantidade de oxigênio dissolvido na água para o peixe.

O grande produtor compra uma boia importada que custa R$ 60 mil, tem três sensores, afere PH, temperatura, oxigênio dissolvido e liga e desliga o aerador na hora ideal. Já o pequeno produtor não tem, porque não consegue comprar. Essa startup que vai ser incubada no Cetene desenvolveu uma boia utilizando inteligência artificial para simular a quantidade de oxigênio com a precisão de mais de 90%. Foram feitos testes e o valor dessa boia cai para cerca de R$ 5 mil. Inclusive, o CPRH já fechou um convênio com o Cetene para aquisição de 90 boias para distribuir em Pernambuco e monitorar a qualidade da água em vários locais.

Quais seus principais desafios e planos à frente do Cetene?

Quando eu cheguei, o Cetene era muito endógeno, funcionava para desenvolvimento de pesquisas mais pontuais para produzir o paper e formar alunos de mestrado e doutorado. Conversei com basicamente todos os reitores e reitoras do Nordeste e metade não conhecia o Cetene, a outra metade conhecia, mas nunca tinha interagido com ele.

Então, esse é um dos grandes desafios, primeiro ampliá-lo para o Nordeste inteiro interagir. O modelo de negócio do nosso serviço especializado precisa ser atrativo, ter um preço menor que outros players, mas não muito barato, porque precisa ser sustentável. Trabalhamos algumas áreas de energias renováveis, estamos com projetos de uma fábrica-escola solar e tentando encaminhar uma fábrica de Biochar, que é um material plantado junto à semente e tem capacidade de absorver água e manter a saúde hídrica do solo por mais tempo. Ele é feito a partir da queima de folhas e restos de alimentos.

O Brasil é um país extremamente desindustrializado, o que é um problema. Mesmo sendo um país fantástico para produção de energia renovável, como hidrogênio verde, se não tem uma indústria que produz equipamentos para se apropriar dessas novas energias, vamos continuar sendo exportadores de commodities. Exportamos hoje minério de ferro, soja, vamos passar a exportar hidrogênio verde para a Europa e EUA. Precisamos desenvolver manufatura verde, equipamentos que se adaptem a essa nova realidade, e o Cetene entra nessa questão.

Os planos são levar o Cetene para todo o Nordeste, colocá-lo na hélice quádrupla (governo, academia, iniciativa privada e terceiro setor), aumentar o empreendedorismo científico com a questão da Incuba Science, contribuir com a formação de pessoas, por meio do Berçário de Empreendedores, que é outro projeto nosso junto com a Occa, uma organização social de Olinda.

Boa parte do que fazemos hoje eu trouxe da universidade, onde juntei inovação, pesquisa e empreendedorismo no mesmo lugar. E o mesmo conceito estou levando para o Cetene, estou chamando de um hub de inovação empreendedora. O país que não entrar nesse ecossistema vai ser secundário. Tenho medo de o Brasil continuar sendo basicamente exportador de commodities e não produtor de ciência e tecnologia.

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