Meu vei, falar desta figura não é fácil, pois nunca fui fã de vilões, mas nem por isso deixo de reconhecer que alguns são necessários para que tenhamos super-heróis incríveis. Muitos desses ‘cabras da peste’ chamam a atenção de qualquer leitor ou espectador.
“Quando o mundo se perder, e nos jornais você vai ver só estupro, guerra, fome e nada mais, ahh, então eu vou mostrar quem sou!...". Pense num contexto apocalíptico e até semelhante ao que está tão próximo de nós, do nosso cotidiano, do dia a dia. Essa música é cantada pelo Coringa na animação Batman: a Piada Mortal (2016) e tem relação direta com a trama do atual filme de Todd Phillips nos cinemas. Mas vamos lá, vou falar da história desse personagem antes de dar qualquer spoiler.
O palhaço vilanesco estreou nos quadrinhos em 1940, na revista nº 1 de Batman. Era um um assaltante de jóias que matava as pessoas de Gothan usando o gás do riso, deixando suas vítimas com o rosto deformado, simulando um sorriso “feio que só a gota!”. No início, a própria DC Comics não achava o personagem interessante: um palhaço, que gargalhava, matava e soltava piadas. Nesta edição, foi sugerido que o Coringa deveria morrer, mas o vilão foi salvo pelo editor Whitney Ellsworth.
Segundo Antônio Luiz Ribeiro, o personagem era chamado de “Galhofeiro” ou “Risonho” (pela empresa Ebal) no Brasil, e só tempos depois a Ebal o batizou de Coringa. A origem do personagem tem controvérsias, pois existem duas versões, uma apresentada pelo ilustrador Jerry Robinson, que inspirou-se pela figura do palhaço de uma carta de baralho. A outra é creditada à dupla criadora de Batman, Bob Kane e Bill Finger, influenciados pelo protagonista do filme O Homem Que Ri (1928), do cineasta expressionista alemão Paul Leni. Ele era interpretado pelo ator alemão naturalizado britânico, Hans Walter Konrad Veidt, comumente conhecido como Conrad Veidt. O filme, baseado na obra de Victor Hugo, fala da história de Gwynplaine, filho de um nobre Inglês que supostamente traiu o Rei James II da Inglaterra. Por isso, o monarca ordenou uma sentença de morte ao seu pai e, também, que o menino sofresse uma cirurgia para desfigurar seu rosto, mostrando um sorriso eterno.
Como já abordamos nas colunas anteriores, na década entre 1950 e 1960, devido ao ‘Comics Code Authority’, tantos os Heróis como os vilões tiveram suas histórias, origens ou características alteradas ou amenizadas. Isso também ocorreu com o palhaço do crime, que ficou menos macabro. Esse é um dos motivos de termos na série de TV do Batman, em 1966, a versão icônica do ator Cesar Romero, interpretando um Coringa esquizofrênico, que tinha um humor infantilizado e gostava de aborrecer o Batman. Os fãs dos quadrinhos não gostavam desta versão, mas era extrapower e divertido de ver, na minha opinião.
Com a censura aos quadrinhos enfraquecendo, em 1973, a dupla Dennis O’Neil e Neal Adams, reapresentam o vilão como conhecemos: o palhaço psicopata, que aniquila suas vítimas por sadismo e quer, de todas as formas, enlouquecer o Cavaleiro das Trevas. Ôh vilão maquiavélico e ‘doindin’ da mulesta!
Entretanto, este personagem de várias facetas e origens chega com outra perspectiva no ano de 1988. Os britânicos Alan Moore (roteirista) e Brian Bolland (desenhista) constroem um Coringa diferente na HQ Batman: A Piada Mortal. O enredo narra a vida de um homem comum, casado, que trabalha em um laboratório químico, mas tem uma paixão e acredita ter talento para fazer as pessoas rirem. Após largar o emprego em busca de seu sonho, sem obter sucesso na comédia, sua vida entra em colapso, com dívidas e outras situações que o forçam a cometer um assalto ao laboratório em que trabalhava, junto com dois comparsas. E será neste local, para que Batman não o pegue, que o cidadão comum com um capuz vermelho se joga em um tanque com um líquido químico, desfigurando seu rosto, mudando seu tom de pele e cabelos, mas também alterando sua personalidade. Nesta HQ o Coringa relata que “basta apenas um dia ruim para você abraçar a loucura e dela nunca mais soltar.”
Daí por diante, o palhaço do crime foi ganhando destaque, transformou-se no principal arqui-inimigo do Batman, praticamente a face do mal do Cavaleiro das Trevas, fazendo sucesso nos quadrinhos, nas animações, nas telonas e nos games. E este palhaço começou a conquistar prêmios, a exemplo dos três Eisner (roteirista, desenhista/arte-finalista e álbum) e quatro Harvey (artista, colorista, edição e álbum), conferidos à HQ A Piada Mortal, em 1989.
O coringa já apareceu em cinco filmes no cinema, já ganhou um Oscar (2009) e, dez anos depois, o Leão de Ouro (2019). Mais uma vez, ele terá sua origem apresentada de maneira distinta na interpretação do ator Joaquin Phoenix no filme “Coringa” (2019), atualmente em cartaz.
Vou tentar não dar muitas informações sobre o filme, para não estragar sua experiência, pois essa película é mais uma obra de arte do que um longa-metragem do universo dos quadrinhos, super-heróis contra seus vilões.
De fato, a versão do cinema retrata um homem simples, na década de 1970, que não tem um salário decente, que sonha em fazer as pessoas rirem, mora com sua mãe, sofre ‘bullying’ de companheiros da firma de comédia, do seu chefe, de jovens arruaceiros das ruas de Gotham e de várias outras pessoas ao seu redor. Além disso, ele tem uma síndrome, uma doença que o deixa constrangido, pois ele não consegue segurar suas risadas em momentos em que fica ansioso ou nervoso. As risadas chamam muita atenção neste filme, pois parece provocar dor no protagonista (e para quem assiste), algo que ele não consegue controlar e que o deixa ofegante, completamente sem forças. Pense numa vida triste que só a gota serena. Dá para traçar paralelos com nossa realidade atual.
Mas uma situação dantesca e violenta o faz pegar uma arma com “um amigo da onça”, e de forma inesperada para ele, o faz cometer um crime que resultará em polêmicas na cidade de Gotham. O caos está virado na cidade e o Arthur Fleck, alter ego do Coringa no filme, passará por provações que o deixarão “em ponto de bala”. Pense, um cabra numa situação de estresse, debilitação mental e armado, só pode dar numa besteira ‘virada no mói de coento’!
Este filme é forte, tem momentos que assustam pela violência brutal, e farão você ficar horrorizado, para, segundos depois, soltar uma gargalhada, como se nós, a sociedade, estivéssemos doente, e na minha opinião, está! Diferente dos quadrinhos, o vilão, na película, usa literalmente uma máscara, e esta vira uma espécie de símbolo, como no filme V de Vingança (2006) e a série La casa de papel (2017). A diferença é que o protagonista, o nosso palhaço, não o faz conscientemente. E esta falta de consciência o torna diferente da versão calculista interpretada por Heath Ledger (2008) em Batman: Cavaleiro das Trevas.
Este Coringa não é calculista, ele é hora excêntrico, hora infantil, pensa em fazer algo, mas não o faz, ou o faz sem pensar. Próximo ao final do filme, ele encarna o vilão que não tem sentimentos em relação a sociedade, não se comove em matar, não tem medo das consequências, (não termino esta frase pra não dar ‘spoiler’).
Seu ápice é bem parecido com a animação que falei lá em cima, surgindo quando as cortinas se abrem num programa de TV, mostrando seu lado sombrio, maquiavélico, psicopata e sádico. São situações dantescas na vida de um cidadão comum que podem levá-lo à loucura e que, tanto na animação como no filme, vemos pelo relato do Coringa, que ‘a Realidade é isso Mesmo’, como também ‘É a Vida”, refrões de músicas executadas tanto na animação quanto no filme. Mas a vida é assim mesmo, capaz de nos deixar loucos???
No final de “Coringa”, percebemos um vilão que parece ter sido o mentor do psicopata Hannibal Lecter, do livro Dragão Vermelho (1981) e que virou filme em 2002. Sem necessidade de armas ou ferramentas, ele usa seu corpo para dilacerar ou sei lá que nome dar a sua ação com qualquer um que cruze seu caminho, seja uma pessoa que o esteja questionando ou tentando ajudá-lo. Acho que ele daria medo até em Darth Vader ou Satan Goss.
O filme é bom e serve para refletirmos, e seu final não aponta para continuações, mas não quer dizer que não possam existir, só os resultados da bilheteria poderão mudar esse contexto.