Chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Oswaldo Cruz, Demetrius Montenegro diz que, graças à vacina, a Covid deixou de ser uma doença grave, mas apresenta grande capacidade de transmissão. Ele também avalia a possibilidade de aumentar os casos de dengue hemorrágica em Pernambuco, as perspectivas da nova vacina contra a dengue e as chances de ocorrer uma nova pandemia.
Dados compilados por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) e da Unesp (Universidade Estadual Paulista) revelam que o Brasil contabilizou 57.713 casos de Covid-19 nas três primeiras semanas de 2025, o maior registro dos últimos 10 meses. O número representa um aumento de 151% nos diagnósticos da doença em comparação com as três últimas semanas do mês passado que somaram 23.018 infecções. Mas de acordo com o infectologista Demetrius Montenegro, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Oswaldo Cruz, esse aumento ainda é bem menor do que foi registrado no período do final de 2023 para o início de 2024.
Nesta entrevista a Cláudia Santos, Montenegro, que também é infectologista do Hospital Português, explica que o SARS-CoV-2, o vírus da Covid, tem uma capacidade de transmissão muito grande mas, graças à vacina, a maioria dos casos não apresenta gravidade. Ele também analisou a possibilidade de aumentar a prevalência do sorotipo 3 da dengue em Pernambuco, o que provocaria um aumento de casos com sintomas graves, como a hemorragia. O infectologista abordou ainda o impacto das mudanças climáticas no aumento das infecções e não descartou a hipótese de o mundo enfrentar outra pandemia.
![coronavirus](https://algomais.com/wp-content/uploads/2025/02/coronavirus.jpg)
No verão, o número de casos de algumas viroses tende a aumentar. Por que isso acontece?
Alguns vírus têm um comportamento sazonal. Ou seja, dependendo da época ou estação do ano, determinado vírus pode ter uma circulação maior. A característica da sazonalidade do vírus da Influenza é vir principalmente em épocas mais chuvosas ou na época de inverno, porque favorece a aglomeração das pessoas. Há, por exemplo, um vírus respiratório que acomete muito crianças no período de abril a maio.
No caso do SARS-CoV-2, que é o vírus da Covid, em duas épocas do ano, mais ou menos, haverá um aumento do número de casos. Estamos observando que, em época de férias, aglomeração e confraternizações, a transmissão dos vírus aumenta. Em janeiro de 2024, também houve um aumento dos casos de Covid, como em janeiro de 2025. No entanto, este ano, o aumento ainda é um número bem menor do que foi o período do final de 2023 para o início de 2024. Ou seja, o vírus da Covid mudou muito sua genética. Antes, era um vírus devastador, muito grave, agora, com essas novas variantes, ele se transformou num vírus que tem uma capacidade de transmissão muito maior, porém uma gravidade menor. Vírus respiratórios podem circular ao longo do ano todo mas, em alguns períodos, pode aumentar sua transmissão.
Então a capacidade de transmissão do vírus da Covid é maior que a da Influenza?
Sim. Na influenza, mesmo que as pessoas não se isolem em casa, às vezes, apenas uma ou duas pessoas se contaminam, mas, na Covid, muito mais gente vai se contaminar. Outra diferença é que a vacina da gripe tem uma eficácia maior para proteger contra a doença. Então, a grande vantagem da vacina da Covid não é a pessoa não pegar a doença, lógico que diminui a chance de contaminação, mas o grande ganho é prevenir a evolução para casos mais graves. Por isso, a história da Covid hoje é outra, passamos de um conto de terror para praticamente um conto de fadas, a realidade hoje é totalmente diferente.
Nas regiões Sul e Sudeste, principalmente no litoral, há relatos de contaminação por norovírus, que causa sintomas como diarreia. O número foi maior que nos anos anteriores. No Nordeste, também houve aumento dos casos?
Existem vírus cuja característica é de transmissão respiratória e causam doenças respiratórias, e outros que podem até ter transmissão respiratória mas seu local de proliferação é o trato gastrointestinal, causando doenças gastrointestinais e também podem ser transmitidos por meio da ingestão de alimentos contaminados. Esse tipo de vírus é realmente mais comum nesta época do verão, como aconteceu no litoral do Sudeste, principalmente de São Paulo onde houve uma epidemia desse vírus. Ou seja, há relação com a água contaminada, praia contaminada, principalmente nessas grandes cidades, onde, por mais que haja cuidados, é mais comum a água do mar ser contaminada pelo esgoto.
Então, as pessoas podem adoecer e também transmitir. Já aqui no Nordeste, não observamos. Se houve, foram casos bem pontuais de diarreia, mas que não se caracterizavam como uma transmissão viral em massa, como uma epidemia. Ficou restrito realmente no Sul e Sudeste.
Além das vacinas, há alguma forma de prevenção contra essas infecções, tanto as respiratórias quanto as do trato gastrointestinal?
Sim, o afastamento social. Não me refiro ao isolamento, que tem o estigma da doença infecciosa como a Covid no momento crítico quando a pessoa tinha que ficar trancada no quarto. Mas o recomendado é você se afastar de outras pessoas, principalmente no ambiente de trabalho, ou usar máscaras. É sabedoria dos povos orientais que, antes mesmo da existência do vírus da Covid, usam máscaras quando estão com sintomas respiratórios.
Isso já seria uma quebra muito grande da transmissão. Associado a isso, a vacina vem se mostrando, cada vez mais, a grande ferramenta e foi o que girou a chave em relação à pandemia. E não só a pandemia da Covid mas, também, a pandemia do H1N1 que foi uma variante da Influenza totalmente desconhecida do nosso sistema imunológico e, assim como a Covid, pegou o mundo desprotegido. Rapidamente, quando a população começou a se vacinar, o número de casos diminuiu. Então, a vacina é fundamental, assim como a lavagem das mãos e aquela etiqueta respiratória de cobrir o nariz ao espirrar para diminuir a quantidade de partículas e do vírus no ambiente e nas superfícies.
Em relação à Covid, os testes de farmácia são válidos ou o recomendável é fazer em laboratório?
Eles são válidos e ajudaram muito quando começaram a se popularizar. O único problema do teste de farmácia é o modo como, muitas vezes, é aplicado. Se não fizer bem-feito, o resultado pode ser um falso negativo. Então, quando a gente está num período com a grande positividade da Covid, se o teste for negativo, dependendo das condições, o ideal é pedir para repetir o teste.
Na época do ano em que o número de casos é menor, a gente já considera realmente como negativo. Ou seja, até a interpretação do teste é importante para se ter uma noção de como está a epidemiologia do vírus em determinado momento. E é interessante a população ficar sabendo que existe monitoramento das doenças virais respiratórias.
E como esse monitoramento é feito?
Esse monitoramento é coordenado pelo Ministério da Saúde, mas cada Estado e, principalmente, cada capital ou grande cidade do interior tem unidades sentinelas. Isso é feito por amostragem. Então, quando as pessoas chegam nessa unidade sentinela com um quadro respiratório, mesmo sendo um quadro respiratório leve, é feita uma pesquisa, não só de Influenza e Covid, mas de uma série de vírus, inclusive o Vírus Sincicial Respiratório (VSR) e o Metapneumovírus. Dessa forma, a epidemiologia tem uma noção de quais vírus estão mais frequentemente circulando naquele período.
É a partir daí que se acende o sinal de alerta, “opa, o número de casos de Covid aqui está aumentando ou o número de Influenza está aumentando”. Isso é muito interessante, principalmente neste momento em que as pessoas estão assustadas com o surgimento de novos vírus. Recentemente, o aumento do número de casos do Metapneumovírus, na China, assustou o mundo, porque é um nome bem estranho, mas não é um novo vírus. É um vírus conhecido, que já circula mundialmente e que, da mesma forma que outros, vai ter o seu momento de esquecimento e momentos em que pode aumentar o número de casos. Foram isolados alguns casos aqui em Pernambuco, mas nada que se se configure como uma situação preocupante. É um vírus respiratório, não há medicação para ser feita, não tem nenhum antiviral que vai impedir, e os cuidados que as pessoas têm que ter são os mesmos para qualquer virose respiratória.
Existe alguma forma de melhorar o sistema imunológico, principalmente nesse período de Carnaval, para que os foliões não adoeçam com a “tradicional” gripe após reinado de Momo?
Não existe como melhorar o sistema imunológico. Ele é uma das situações mais complexas no nosso organismo. Você pode ter uma queda parcial das suas defesas, mas não é uma situação que vai colocá-la em risco, como é o caso de quem toma medicação que baixa propositalmente o sistema imunológico para evitar o avanço de uma doença que está sendo tratada, como câncer, ou evitar rejeição após transplante de órgãos.
Então, se a pessoa tem alguma doença crônica, como diabetes, ou se, por exemplo, tem HIV e não toma o antiretroviral, aí sim é uma situação de preocupação. Mas, fora isso, o que você pode ter é uma alteração do sistema imunológico que vai ser totalmente irrisória diante de um contexto. Então, se você ficar no Carnaval tomando sol o dia todo, vai haver uma alteração no seu sistema imunológico mas não é isso que vai facilitar você pegar uma virose. A aglomeração é o principal fator.
Então, se não estamos numa pandemia que requer isolamento social, é melhor brincar o Carnaval sem preocupações, não é (risos)?
Eu mesmo não perco meu Carnaval pensando em não pegar uma virose depois (risos).
Este ano, em alguns estados, houve um aumento de casos de dengue do sorotipo 3, considerado um dos mais graves. Isso tem ocorrido também em Pernambuco? Por que esse vírus é tão danoso?
O aumento do número de casos, no verão, ocorre principalmente por causa do calor e das chuvas. As altas temperaturas dessa época do ano facilitam o desenvolvimento do ovo de Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue e de outras arboviroses. O sorotipo 3 está começando a surgir numa prevalência maior, tanto que, ano passado, explodiram casos de dengue em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro.
No Nordeste, não houve uma explosão, houve aumento do número de casos, mas não chegou ao absurdo que foi na região Sudeste. Pesquisadores da Fiocruz acreditam que pode acontecer isso no Nordeste neste período de calor, principalmente em fevereiro e março. Espero que não, que a gente consiga passar essa temporada de calor sem esse aumento.
Sobre a gravidade da dengue do sorotipo 3, ela não se refere ao vírus em si, é principalmente porque nosso sistema imune que já foi exposto a outros sorotipos, está muito sensível e vai ser ainda mais ativado causando complicações como hemorragia e hipotensão. Ou seja, a população que já teve contato com o sorotipo 1 e 2, entra em contato com mais um sorotipo e este vírus vai ativando o sistema imunológico.
O número de casos de dengue pode aumentar, mesmo que muita gente já tenha sido contaminada?
Sim. É importante observar que muita gente já teve, mas tem muita gente, muitas crianças e adolescentes, que ainda não tiveram, ou seja, uma população predisposta. O que vem acontecendo hoje, no Brasil, é o que já acontece no Sudeste da Ásia. Enquanto o Brasil começou a reviver a dengue na década de 80, lá foi desde as décadas de 40 e 50, tanto é que a população mais acometida de dengue, nessa região do globo, é de crianças e adolescentes, porque não têm as defesas, os adultos já se contaminaram. Por isso que o público prioritário para receber a vacina distribuída no posto de saúde são crianças e adolescentes.
Como está a situação das vacinas da dengue quanto à disponibilidade e à procura nos postos de saúde? E qual é a perspectiva da vacina produzida pelo Instituto Butantan?
No ano passado, quando houve a compra, a prioridade foi aumentando com a faixa etária. Aumentou-se a faixa etária, porque as pessoas não iam se vacinar, justamente porque não havia procura. Em relação à vacina do Butantan, a recomendação é ainda prospectiva, estamos aguardando a liberação da Anvisa. Essa vacina tem a grande vantagem de proteger contra os quatro sorotipos da dengue e ela não precisa ser feita em duas doses, uma dose já imuniza. Então, para o programa de saúde pública, isso é muito melhor, pois é mais fácil fazer a vacinação em massa com uma dose só, do que com duas doses, como a do laboratório japonês Takeda Pharma. Uma boa parte das pessoas toma a primeira dose e não quer tomar a segunda.
Como estão os estudos sobre a chikungunya?
Há relatos de pessoas que ficaram com sequelas ou desenvolveram um outro tipo de doença. Na chikungunya, o vírus tem uma atração pelos tecidos das articulações, principalmente se esse tecido já tiver algum tipo de lesão. Por isso, nas pessoas mais velhas que já têm algum tipo de artrose e artrite, piora o processo inflamatório dessas lesões, quando já não existe mais o vírus. Então, a doença tem duas fases, a fase da ação direta do vírus – que é aquele período em que a pessoa tem febre, dor no corpo, calafrio – e tem a fase de reação imunológica e, então, o vírus já não está mais presente mas a resposta imunológica do organismo foi intensa.
Então, as sequelas das dores articulares e das artrites causadas pelo vírus da chikungunya são decorrentes disso. E há pessoas que ficam incapacitadas, às vezes por tanto tempo, chegando ao restante da vida com essas sequelas. Ou seja, deixa de ser uma doença infecciosa para ser uma doença reumatológica. Já o vírus da dengue tem uma gravidade maior no momento agudo, que é o que pode causar complicações, mas ele praticamente não deixa sequela, exceto em situações muito raras como em pessoas com meningite ou inflamação no cérebro. Mas a chikungunya é o comum deixar sequela articular. Na fase aguda, o risco de morte é menor mas, na fase crônica, a sequela é bem complicada.
Estamos vivenciando eventos climáticos extremos. A crise do clima pode agravar a prevalência das infecções ou fazer surgir novas?
Sem dúvida. Esse aquecimento também é decorrente da ação humana, do desmatamento, das queimadas. Então, assim como alguns animais procuram se adaptar em outros ambientes, o vírus também vai procurar essa adaptação. E alguns desses vírus são trazidos por esses animais que procuram outros ambientes para sobreviver.
O homem está invadindo muitos espaços, os animais silvestres também estão chegando mais próximo das grandes cidades e certamente haverá essa troca, sim. A história da Covid é um exemplo. O vírus da Covid só contaminava animais e, devido ao processo de mutação, passou a contaminar o ser humano. Isso pode acontecer com outros vírus, sim. Num ambiente equilibrado, o vírus só vai contaminar aqueles animais, mas, para manter a sua permanência no ambiente, pode sofrer mutação para contaminar outros animais, até chegar, nessa cadeia, ao ser humano.
Especialistas, estatísticos e médicos alertam para a possibilidade de sofrermos uma nova pandemia. O senhor compartilha dessa opinião?
Sim. Só nos últimos 25 anos, tivemos a H1N1, o aumento de número de casos de ebola na África, inclusive com casos exportados para países da Europa e nos Estados Unidos, e a Covid. Essa nova dinâmica do mundo, de circulação rápida de pessoas, facilita também a transmissão desses vírus. Ou seja, em 25 anos, houve duas pandemias reais, a de H1N1 e a de Covid, e a possibilidade de uma pandemia de ebola. Então, não se descarta essa possibilidade de uma nova pandemia.