Por Maurício Costa Romão
No sistema eleitoral brasileiro até 2017somente partidos (ou coligações, à época), que ultrapassassem o quociente eleitoral (QE) tinham o direito de disputar sobras de votos, que é a votação excedente dos partidos sobre o QE.
Quer dizer, os partidos que já haviam garantido um ou mais lugares no Parlamento ainda desfrutavam da primazia de obter vagas adicionais por sobras. As demais siglas postadas no pelotão de baixo do QE, normalmente as menores, algumas até com certa densidade de votos, ficavam alijadas do processo eleitoral sem chances de ascensão ao Parlamento. O sistema se configurava de todo injusto.
Entretanto, na reforma eleitoral de 2017 essa impropriedade do modelo brasileiro de voto foi reparada, quando se permitiu que todos os partidos pudessem disputar sobras de votos, mesmo não atingindo o QE, o que possibilitaria a alguns deles eleger parlamentares. A medida gerou grandes expectativas nesse conjunto de agremiações, mormente em face à proibição das coligações proporcionais.
De fato, sem coligações, todos os partidos passam a depender exclusivamente dos seus próprios votos para ultrapassar o QE, não mais podendo pegar carona na votação de outras siglas para ter representação no Legislativo. Isso atinge várias agremiações que isoladamente não têm suficiente ossatura de votos. Portanto, a medida mais elástica quanto às sobras propiciada pelas normas de 2017 abriu uma janela de oportunidades para algumas agremiações eventualmente atingidas pelo fim das coligações.
A Tabela abaixo mostra o alcance da norma estatuída na mencionada Reforma. Os dados disponíveis relativos a 5447 municípios brasileiros onde ocorreram eleições em 2020 (na verdade são 5568 municípios com eleições) atestam que em 56% dos municípios os partidos não se beneficiaram da democratização das sobras de votos, visto que em 3036 localidades nenhuma sigla ascendeu ao Parlamento sem ter superado o QE.
Fonte: J. P. Viana & M. C. Carlomagno (Cadernos Adenauer 1, ano XXII, 2021)
Entretanto, em 44% dos municípios houve conquista de vagas parlamentares por parte de agremiações que não atingiram o QE, mostrando que a legislação tem largo alcance. Vê-se, na Tabela, que em 1.290 municípios somente um partido conseguiu vaga por sobras em cada localidade, mas em 1.121 outros municípios as vagas foram obtidas por mais de um partido.
Então fica claro que a legislação que instituiu a democratização das sobras de voto tem o condão de mitigar os rigores do fim das coligações proporcionais para os partidos com pouca musculatura de votos. Daí não se pode deduzir que a entrada às Casas Legislativas esteja franqueada a todas as agremiações. Não. É preciso que elas tenham um mínimo de vertebração de votos.
De fato, a evidência empírica mostra que as siglas precisam exibir votação nos arredores do QE para se credenciarem competitivamente à disputa de sobras. Esta exigência de votação pode ser denominada de condição necessária. A condição suficiente, por seu turno, é a de que tal votação esteja entre as maiores médias de voto nas rodadas de cálculo de repartição das sobras (o partido que não alcançou o QE tem sua média de votos dada pelos votos válidos obtidos na eleição).
Enfim, a abertura encetada pela reforma de 2017 quanto às sobras de votos deve ser saudada como um avanço relevante no sistema eleitoral brasileiro de lista aberta. O outrora regramento colidia com os próprios fundamentos do modelo proporcional, que valoriza a ascensão ao Parlamento de grupos sociais em consonância com sua representatividade na população, dada pela dimensão eleitoral dos partidos.
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Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. mauricio-romao@uol.com.br