*Por Rafael Dantas
Qual é a importância da universidade na vida das pessoas? Em meio a um período conturbado de protestos, cortes e troca de ministros, o ensino superior brasileiro entrou na berlinda do debate público do País. Afinal, de fato há uma “tara” dos brasileiros por uma formação acadêmica? As nossas instituições são ineficientes no preparo dos jovens para o mercado de trabalho e para a vida? Começamos hoje uma série de posts no site da Algomais em que resgato as histórias de estudantes, professores e diretores que têm na sua trajetória algumas respostas para essas perguntas.
Eliada Andrade, 25 anos, nasceu e cresceu na comunidade de Dois Unidos, na periferia do Recife. Ela está a dois meses de concluir o mestrado da USP (Universidade de São Paulo), no Instituto de Química de São Carlos. Uma trajetória que só foi possível graças às bolsas de apoio acadêmico.
A jovem cientista teve uma formação na rede pública de ensino e enfrentou o vestibular praticamente sem ter estudado química ou física. Um cursinho preparatório, que era um projeto de extensão da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), deu um empurrãozinho para o seu ingresso no ensino superior em 2012. E o curso escolhido foi justamente a Licenciatura em Química, na UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco).
O começo da vida acadêmica não foi nada fácil. “Minha jornada começou no mês de março, após uns 60 dias estudando no primeiro período, minha turma ficou quatro meses sem aula porque os professores estavam em greve, lutando por mais melhorias de trabalho e para os alunos. E isso acarretou numa desregulação total do nosso calendário de aulas, por vários semestres nossas férias tinha duração de dez dias ou menos dias”.
Dentro da universidade, começou os primeiros passos como pesquisadora no departamento de agronomia, em um projeto que fazia análise dos solos de várias cidades de Pernambuco, com objetivo de detectar metais indesejados. “Lembra que no meu primeiro período tive uma greve de quatro meses? Então, mesmo em greve, eu fui quase todos os dias para a universidade porque desde o meu primeiro período eu conheço o lema de um pesquisador brasileiro: A pesquisa não para!” Ela relatou que mesmo quando faltava luva, equipamento ou qualquer outra coisa básica para o estudo científico, a pesquisa não era interrompida. “A gente sempre dá jeitinho brasileiro para não deixar a peteca cair e seguir em frente produzindo”.
Eliada participou desse projeto de forma voluntaria. A primeira bolsa de pesquisa de R$ 320 só foi conquistada no segundo período. A proposta dessa bolsa de permanência era oferecer apoio a um aluno de doutorado, como ajudante de um projeto de pesquisa. “Essa bolsa foi de suma importância para me manter na universidade sem precisar trabalhar, que era quase impossível, pois meu curso era vespertino”.
O projeto, além de ajudar Eliada financeiramente a custear o transporte e alimentação, teve um peso decisivo para sua aprovação no programa Erasmus Mundus, pelo qual participou de um intercâmbio no ano de 2015 para a Universidade do Porto, em Portugal, por meio da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Ao retornar, ela fez uma pesquisa sobre a quercitina, uma substância que é um antioxidante com alto potencial de evitar o surgimento de câncer. “A finalidade do meu projeto era estudar essas informações e testar novas reações para potencializar esse composto e deixar como base para a continuidade dessa pesquisa a um possível fármaco, anticancerígeno”, relata.
Antes da conclusão da licenciatura, Eliada ainda foi bolsista do Programa de Iniciação à Docência (PIBID), quando teve a oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos em laboratórios e também levar experimentos de baixo custo para sala de aula, com alunos do primeiro e segundo ano do ensino médio. “Tanto as pesquisas no laboratório como a pesquisa de docência me habilitaram a escrever trabalhos e participar de congressos em outros Estados do Brasil. E mais uma vez eu só conseguia ir a esses congressos com a ajuda da assistência estudantil. Por fim, depois de cinco anos de muito perrengue e aprendizagem, terminei um ciclo na minha vida, estava formada, sou licenciada em química!”
O voo mais alto da pesquisadora veio com a aprovação na seleção do mestrado da Universidade de São Paulo, no Instituto de Química de São Carlos (IQSC). “O meu novo ciclo era e está sendo bem desafiador, sair da casa dos pais, da sua cidade, largar seus amigos… É como se eu fosse começar do zero. E, mais uma vez, minha vinda para cá e minha permanência aqui até o presente momento só foi possível graças à assistência estudantil. Eu sou aluna de mestrado sem bolsa. Na USP, alunos sem bolsas ou de outros Estados, de baixa renda, podem ficar na moradia estudantil. Sem esse acolhimento seria impossível financeiramente chegar até aqui. Obviamente que meus pais e meus irmãos me ajudam, mas, mesmo com o apoio da minha família, sem a ajuda da universidade, não seria possível me manter”.
Ela relatou que esse período foi marcado por momentos de desespero também. Pensamentos de largar tudo. Crises de ansiedade. “Cheguei a passar uma semana toda com R$ 10”, relembra. Ao mesmo tempo ela revela que teve a alegria de ver alguns dos seus alunos entrando nas universidades federais e de ver o olhar de orgulho dos seus pais em cada conquista.
Prestes a encerrar o mestrado e aspirar o último degrau da pós-graduação, a jovem acadêmica nascida na periferia do Recife reconhece a guinada que o ensino superior deu a sua vida. “Posso afirmar que a universidade deu um novo norte para minha vida. Cem por cento dos lugares que eu já fui eu não teria ido se não fosse por meio da universidade. Sou da favela com muito orgulho, sou negra e sou mulher. Isso significa que eu estou entre as 3% de mulheres negras na pós-graduação. Isso significa que eu ainda sou uma exceção da minha realidade e do meu povo. E isso só deixará de ser exceção se continuarmos na luta por uma educação de qualidade para todos”.
Sobre o atual momento da educação brasileira, ela repete o mantra que vem sendo a tônica das últimas manifestações: resistência.”Precisamos ser resistência e mostrar à sociedade que a educação é libertadora e fundamental, que as universidades públicas com muita dificuldade produzem e essas produções são para a sociedade para que cada dia tenhamos uma melhor qualidade de vida. Por fim, deixo uma frase do educador Paulo Freire que me representa bastante: “me movo como educador, porque, primeiro, me movo como gente.”
BOLSAS
No Brasil, a primeira vítima do contingenciamento das verbas para a educação foi justamente o financiamento das bolsas para alunos da pós-graduação. Em maio, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciou a suspensão de aproximadamente 3,5 mil bolsas mestrado e doutorado no País. A retensão representa 3,4% do orçamento das universidades federais.
Para Gabriel Colombo de Freitas, diretor de Ciência Tecnologia & Inovação da Associação Nacional de Pós-Graduandos, os cortes orçamentários que impactaram a concessão das bolsas colocam a pós-graduação do País à beira de um colapso. “Não é exagero. A pós-graduação no Brasil é dependente do financiamento da CAPES e CNPq. Além disso, o ajuste fiscal já impactava a pós-graduação de outras maneiras desde 2015, mas é agora que ameaça sua espinha dorsal: a concessão de bolsas de pós-graduação no País. Ainda, é válido lembrar que as condições de pesquisa e estudo dos pós-graduandos estão piorando. Para citar alguns elementos: a desvalorização das bolsas, que acumulam perdas de 38,89% desde o último reajuste, realizado em 2013; a ausência de direitos, entre eles, a contabilização do período em pós-graduação para aposentadoria; e a intensificação do trabalho, devido ao produtivismo acadêmico, insuficiência de técnicos e déficits de professores nas universidades”*.
Os estudantes que dependem das bolsas de manutenção nos mestrados e doutorados do Brasil já viviam um drama pelo valor do subsídio não ter reajuste há seis anos. Atualmente, a média dos valores são de R$ 1,5 mil para mestrados e R$ 2,2 mil para doutorados.
Investimento da CAPES em concessão de bolsas no país (em bilhões de reais), 2010 a 2019.
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