Investir pesadamente em estratégias de vigilância em saúde que possibilitem identificar e isolar rapidamente pessoas com sintomas de COVID-19 e seus contatos próximos. Manter as escolas fechadas pelo menos até o fim deste ano. Fazer campanhas para conscientizar a população sobre a necessidade de respeitar medidas de proteção, como uso de máscaras e distanciamento social, até que se tenha uma vacina eficaz. Parar de minimizar a importância da pandemia ou de transmitir a ideia de que o pior já passou.
Uma vez que os índices de isolamento social vêm caindo em todo o país e há cada vez menos clima político para a adoção de medidas rígidas de contenção do novo coronavírus – como por exemplo a adoção de lockdown –, essas seriam as medidas mínimas a serem tomadas pelos gestores de todas as esferas governamentais para garantir que os brasileiros atravessem o segundo semestre de 2020 com alguma segurança. A avaliação foi feita pelos participantes do webinar “Quatro meses de pandemia da COVID-19 no Brasil: balanço e perspectivas para o futuro”, promovido pela Agência FAPESP e pelo Canal Butantan na última terça-feira (14/07).
“Embora muitos tenham a falsa sensação de que estamos em um momento de inflexão da curva epidêmica no Estado de São Paulo, a realidade é que o número de novos casos ainda deve continuar aumentando pelo menos até outubro, considerando o nível de isolamento atual – entre 45% e 50%. A queda só deve ocorrer de fato a partir de novembro e isso se não houver alguma mudança na tendência”, afirmou Dimas Tadeu Covas, diretor do Instituto Butantan.
Na avaliação de Covas, a curva de óbitos parece ter se estabilizado no Estado, mas em um patamar elevado – em torno de 300 por dia – e tal situação deve se prolongar até o início de 2021. Dados do Ministério da Saúde indicam que também em nível nacional a escalada acelerada da doença foi interrompida, mas em um patamar preocupante: todos os dias são contabilizados em média cerca de 40 mil casos novos e mil vidas perdidas, sem tendência de diminuição sustentada e sabidamente com grande subnotificação.
“Alguns dirigentes têm usado o platô como argumento para relaxar as medidas de isolamento social. Mas, na realidade, o platô é a assinatura do fracasso das políticas de contenção. Toda curva epidêmica que se preze tem de atingir o pico e começar a cair. Mas, como há evidências de que a adesão ao isolamento está diminuindo, muito provavelmente a curva de novos casos vai se manter. Na cidade de São Paulo, por exemplo, ela deve se estabilizar em 17 mil novas infecções por dia até, possivelmente, novembro”, avaliou Eduardo Massad, professor e pesquisador da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Segundo Paulo Inácio Prado, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e integrante do Observatório COVID-19, na cidade de São Paulo a curva de novos casos apresentou uma tendência de queda entre meados de maio e final de junho. O mesmo padrão não fica claro, porém, quando são analisados os casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) na capital. O pesquisador explicou que esses são considerados casos suspeitos de COVID-19, que podem ou não ser confirmados por meio de testes.
“Parece haver recentemente uma retomada no número de casos suspeitos, que poderá ou não se refletir no aumento de casos graves de COVID-19 confirmados. Os sinais que vemos nos gráficos ainda são muito incertos. Não deixam claro se a tendência de redução de casos graves será mantida na cidade de São Paulo ou se haverá retomada do crescimento”, afirmou Prado.
Fora da capital, a situação é ainda menos confortável, avaliou Otavio Ranzani, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e do Instituto de Saúde Global de Barcelona. “No interior paulista a curva de novos casos está em plena ascensão”, disse.
Além disso, como ressaltou Covas, em locais como Ribeirão Preto, Campinas e São José do Rio Preto o índice de ocupação dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) encontra-se perto do limite.
Reabertura das escolas e imunidade de rebanho
Quando o pico da epidemia finalmente for atingido, o que em cada região do país deverá ocorrer em um momento diferente, o número de casos e de óbitos por COVID-19 ainda deverá dobrar. “Esse pelo menos tem sido o histórico das epidemias virais, que não terminam abruptamente e costumam ter uma cauda longa”, explicou Ranzani em sua apresentação.
“Eu não tenho dúvida de que dentro de um mês o número de mortes vai bater em 100 mil e chegaremos tranquilamente a 200 mil no país”, disse Massad.
Segundo o professor da FGV, o número de mortes entre menores de cinco anos de idade – que hoje está na casa de 300 – poderá chegar a 17 mil se as escolas forem reabertas no próximo mês. “Temos cerca de 500 mil crianças portadoras do vírus circulando no país. Se as escolas forem reabertas em agosto, mesmo com uso de máscara e distanciamento, seriam 1,7 mil novas infecções somente no primeiro dia de aula, com 38 óbitos. O número dobra em 10 dias e quadruplica em 15 dias. Abrir agora seria genocídio.”
Ranzani ponderou que na Europa as aulas presenciais foram retomadas somente quando a taxa de contágio (Rt) havia caído para valores inferiores a 1, ou seja, cada infectado europeu hoje transmite o vírus para menos de uma pessoa em média. No Estado de São Paulo, estima-se que o Rt esteja próximo de 1 e, caso a tendência atual se mantenha, só deve cair para um patamar seguro depois de novembro. O pesquisador ressaltou ainda a deficiência histórica no número de leitos pediátricos de UTI disponíveis no país.
Para os participantes do webinar, apostar na imunidade de rebanho como saída para a crise de saúde não é uma ideia sensata, ainda que esse limiar pareça próximo de ser alcançado no Estado de São Paulo.
“Hoje temos cerca de 50% das pessoas protegidas em casa e 50% circulando. Para esse estrato da sociedade que está aberto, com 25% de infectados já se consegue chegar à imunidade de rebanho. Mas, quando se relaxam as medidas de isolamento e mais pessoas passam a circular, o limiar mínimo sobe rapidamente. É um paradoxo de Zenão, ou seja, algo que se corre atrás, mas nunca se alcança”, opinou Massad.
Na avaliação de Prado, aguardar que o limiar da imunidade coletiva seja alcançado – seja ele qual for – seria uma “declaração de fracasso”. “Seria deixar a natureza cuidar de algo que historicamente a civilização sempre cuidou. A ciência da epidemiologia nasceu dessa necessidade de encontrar melhores soluções e temos condições de ter melhores soluções”, afirmou.
Caminhos possíveis
Como o lockdown tem se tornado uma opção cada vez menos viável, na avaliação de Massad, o ideal seria manter o nível de isolamento social em pelo menos 50% até a chegada de uma vacina. “Isso é caro, é difícil e ninguém aguenta mais. Mas ao menos é preciso dizer para as pessoas que vamos reabrir aos poucos e que a epidemia não acabou e o pior não passou. Fomos assolados por uma onda de otimismo e há pessoas dizendo que podemos reabrir escolas, shoppings e academias. E tudo isso, ao final do dia, é mentira”, disse.
Na falta de uma vacina, identificar o mais rapidamente possível os indivíduos infectados, seus contatos próximos e prover os meios necessários para que se mantenham em isolamento total durante ao menos 14 dias é a solução menos custosa e mais eficaz para reduzir o avanço da doença no país, avaliaram os participantes do seminário.
“Depois que o grande incêndio foi amenizado pelas medidas de isolamento social, agora é preciso conter os pequenos focos para evitar que se tornem novamente um incêndio de grandes proporções”, opinou Prado.
Segundo o pesquisador do IB-USP, o Brasil tem o privilégio de poder contar com agentes de saúde que podem atuar de forma efetiva para rastrear infectados e garantir que o isolamento seja cumprido. “É uma rede com capilaridade fora do comum, que atinge até mesmo pequenos municípios. No entanto, falta uma coordenação federal como prevê o pacto do SUS [Sistema Único de Saúde]. Os recursos que poderiam ser usados no preparo material e no treinamento dos agentes estão parados no Ministério da Saúde”, afirmou.
Covas defendeu o uso de tecnologia e estratégias alternativas para identificação de casos suspeitos. “Estamos tentando implementar uma estratégia de vigilância em saúde, que ainda é deficiente principalmente em municípios pequenos e médios. Tentamos reforçar esse trabalho com os instrumentos disponíveis, entre eles aplicativos de celulares que ajudem as pessoas a identificar os sintomas da doença e promover o isolamento dos sintomáticos mesmo que não tenha testes disponíveis.”
Beatriz Kira, que é pesquisadora da Escola de Governo da Universidade de Oxford (Reino Unido), apresentou dados de uma pesquisa conduzida por seu grupo mostrando que a maior parte da população brasileira sabe reconhecer os sintomas da COVID-19 e tem consciência de que a doença é mais grave do que uma gripe. No entanto, somente 44% dos entrevistados demonstraram entender como deveria ser o autoisolamento caso venham a contrair o vírus.
“Muitos ainda não entenderam que autoisolamento significa ficar sem qualquer contato com o mundo exterior durante todo o período infeccioso. Acham que podem sair para ir à farmácia ou ao supermercado, por exemplo. Além de aumentar a testagem, portanto, me parece necessário melhorar a qualidade da informação pública que é dada às pessoas”, disse.
A pesquisa feita em Oxford mostrou ainda que a população brasileira respondeu bem às políticas públicas implementadas para combater a epidemia – sobretudo por governadores e prefeitos – e de fato houve uma mudança no comportamento da sociedade a partir de março.
“Isso reforça o papel crucial dos formuladores de políticas públicas, que precisam evoluir conforme mudam os dados epidemiológicos, sempre com foco nas populações mais vulneráveis. É mais fácil desenhar políticas para quem pode trabalhar de casa ou lavar com frequência as mãos. Para os mais pobres é muito mais complexo e os governantes devem estar na linha de frente promovendo essas políticas públicas”, afirmou Kira.
Karina Toledo | Agência FAPESP