A magia transformadora da literatura nasce do ato de o escritor exercer sua alquimia e dar vida às cores, aos sons, cheiros; ao espesso ou delgado, ao áspero ou macio, provocando os sentidos apenas com a palavra escrita.
Tal magia está presente em Felicidade, romance de Wellington Melo (Editora Patuá - 2017). Além de um primoroso projeto gráfico, assinado por Leonardo Matias, o livro traz uma narrativa enxuta, exata, contudo reveladora. Assim, basta observar a cena do funeral, em que o autor com notável sutileza, descreve o ato de o coveiro se preparar para sepultar a vida: o som metálico da colher de pedreiro no cimento remete ao piar aziago de um pássaro que, no clima de silêncio, anuncia o ritual da morte. É possível destacar tais virtudes ainda durante o trabalho do mesmo personagem, em cujo rosto despido de qualquer expressão, num ambiente de lágrimas e murmúrios, ergue a última parede do dia “será tão bela quanto qualquer outra parede; exata, imensa, infalível”. Contudo mesmo sem o autor aferir expressão facial ao personagem, o leitor encontra na face do coveiro a satisfação do escultor que vivencia o seu estado de arte: ele se esmera e ao triscar do metal da colher (o cinzel) na argila endurecida, assina a escultura concebida.
Em Felicidade, a simbiose espaço-tempo rege o andamento da narrativa. As cenas se passam no mundo contemporâneo, a partir do uso de mecanismos tecnológicos nos dias de agora, o que deixa o leitor integrado às circunstâncias do enredo e o envolve com na trama que tem como pano de fundo o desafio das lutas ligadas às ocupações de espaços urbanos, onde os personagens contracenam ungidos pelo ideal compartilhado de justiça.Revela eclosão histórica de focos de resistência ante a eterna sanha de poderosos a subjugar desvalidos, cenário inverso ao que se costuma ver nesta Mauriceia disfarçada.
Ao longo da narrativa, Wellington se transforma de escritor em artesão, momentos em que impõe dinâmica elogiável à concepção das cenas quando abre e fecha o diafragma de sua câmera imaginária e usa os cenários para contextualizar as mensagens mesmo nas horas cruentas, ao abordar a morte com naturalidade, sem chocar o leitor. Também realça a crítica dos costumes sociais mais sórdidos. Por falar em crítica, em dado momento, o personagem Mário alfineta: “Escrever é mau hábito, vício, doença. Arte é experimentar o abismo, entortar o mundo... Há mais ego dentro dos livros do que literatura”.
O texto, contudo, exige especial atenção em uma ou outra passagem de tempo e se mostra menos acessível. Como se abraçasse o abstracionismo, a escrita conduz o leitor a mais de uma interpretação, o que transcende ao simplesmente explícito e nos remete a Castro Alves: “Feliz daquele que semeia livros a mancheia e faz o povo pensar”.
*Paulo Caldas é escritor