“Mais da metade das famílias chefiadas por mulheres negras está em insegurança alimentar no NE”

Vitória Régia da Silva, presidente da Associação Gênero e Número fala dos resultados da pesquisa Caminhos da Alimentação que se baseou em dados do IBGE associados ao acompanhamento do cotidiano de quatro integrantes da população feminina e negra da Região Metropolitana do Recife, chefes de família.

Estatísticas são muito importantes mas, nem sempre conseguem abarcar os diferentes aspectos de uma realidade. Foi o que mostrou a pesquisa Caminhos da Alimentação, realizada pela Associação Gênero e Número que investigou a insegurança alimentar no Nordeste, de forma diferenciada, indo além dos dados numéricos. A partir da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) elaborada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a organização comparou os seus resultados com o cotidiano de quatro mulheres negras, chefes de família, residentes na Região Metropolitana do Recife, que foram acompanhadas por jornalistas no seu dia a dia.

Desse convívio, resultou um trabalho híbrido, composto por audiovisual, fotos, texto, artigo, entrevistas com especialistas e informações que revelam as condições que levam à insegurança alimentar desse segmento da população. Entre elas, a mais perceptível é a falta de renda. Mas a pesquisa foi além. Mostrou como a ausência de uma rede de apoio e a sobrecarga de trabalho dessas mulheres impedem que tenham uma alimentação saudável. Mas o projeto revelou também as soluções para enfrentar o problema, como a importância das hortas urbanas e das cozinhas solidárias. Para conhecer os resultados da pesquisa Caminhos da Alimentação, Cláudia Santos conversou com Vitória Régia da Silva, presidente e diretora de conteúdo da Associação Gênero e Número.

Antes de falar dos resultados da pesquisa Caminhos da Alimentação, gostaria que você explicasse a metodologia empregada, que é bastante incomum.

Na Gênero e Número, trabalhamos com dados na cobertura especializada de gênero e raça. Enquanto uma organização de jornalismo, buscamos sempre trabalhar em rede, debatendo com especialistas, pessoas relevantes na área e com a academia. Nesse projeto, contamos com o apoio do Instituto Ibirapitanga, que também atua com sistemas alimentares sustentáveis. Os dados são necessários para que haja políticas públicas, e nosso papel é fomentar esse trabalho a partir de levantamentos e análises.

Levamos quase um ano para chegar aos resultados, em meio a barreiras envolvendo transparência e falta de dados oficiais no Brasil para trabalhar alguns temas como alimentação. Por isso, na Caminhos da Alimentação, trabalhamos de forma híbrida em relação à apresentação da narrativa e aos dados, utilizando, como principal base, a última atualização da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE, que aborda a alimentação e é referência no País.

Apesar de ter guiado nosso trabalho e de ajudar a tomar decisões como os territórios pesquisados, a POF em si não conseguia trazer os rostos e as histórias das mulheres, e queríamos trabalhar especificamente com mulheres negras do Nordeste, que é a região com a cesta alimentar mais rica e diversa do País, com uma grande quantidade de alimentos in natura ou minimamente processados. Assim, além de olhar para o Brasil e comparar com o Nordeste, o projeto tem diferentes abrangências trazendo também um olhar específico para Pernambuco e para a Região Metropolitana de Recife, que é onde a gente acompanha as histórias de quatro mulheres negras: Gercina, Claudecir, Conceição e Lindalva.

Escolhemos composições familiares diferentes e acompanhamos a alimentação completa dessas mulheres, observando, por exemplo, onde elas adquiriam alimentos, se em supermercados, hortas ou por meio de doações, se elas se alimentavam no trabalho, enfim, vimos todos os alimentos que elas consumiam. Construímos uma pequena nova base de dados inspirada nas rotinas dessas mulheres negras, também como uma forma de nos inspirar a pensar para além dos dados oficiais, entendendo que, a partir dessas histórias, é possível criar dados e inspirar outras iniciativas em escalas maiores.

Você mencionou que o Nordeste tem a cesta alimentar mais rica e diversa do Brasil, o que contrasta com a ideia de pobreza e escassez da região. Fale mais sobre isso.

É interessante isso. Por esta razão nos questionamos como uma região que tem uma cultura alimentar tão rica, tem esse imaginário de pobreza alimentar, de escassez? O que acontece que leva a esse cenário no Nordeste? Por isso, na nossa pesquisa, também escolhemos analisar um dos três estados na região – Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte – que tinham uma cesta alimentar mais variada. Optamos por Pernambuco porque liderava a aquisição de alimentos in natura e apresentava a maior população. E os dados mostram que a gente tem, sim, questões de segurança alimentar em que as mulheres negras são as principais afetadas. Mais da metade das famílias chefiadas por mulheres negras está em insegurança alimentar no Nordeste.

Uma das causas da insegurança alimentar que afeta mulheres negras, chefes de família, detectada pela pesquisa é a renda. Qual é a realidade financeira dessas famílias hoje, em especial, diante da realidade de programas sociais como o Bolsa Família?

A renda das famílias chefiadas por mulheres negras é menos da metade daquela das famílias chefiadas por homens brancos no Brasil. A renda realmente é muito relevante para que a população possa se alimentar melhor, comendo produtos in natura ou minimamente processados, pois alimentação está relacionada a escolhas, e a baixa renda leva à falta de opções para as mulheres negras como Conceição, que é mãe solo de duas crianças autistas, está desempregada e sobrevive apenas com o Bolsa Família.

Por isso, conforme diversas pesquisas, programas de transferência de renda são tão importantes para garantir parte da alimentação das famílias. É nesse sentido que nosso projeto reforça, por meio das histórias, dos dados e da conversa com especialistas, como as políticas de combate à fome e de transferência de renda, no Brasil, precisam priorizar as mulheres. São elas que, no dia a dia, chefiam as famílias e tomam as decisões sobre alimentação, o cuidado e a vida das pessoas que residem naquela residência.

Levando em consideração o exemplo de Conceição, com o valor de R$ 700 do Bolsa Família, ela praticamente faz milagre para pagar as prestações do barraco onde mora, comprar alimentos e medicamentos para as crianças, que não contam com nenhuma assistência do governo neste momento. Inclusive, uma das suas lutas é pelo benefício da prestação continuada a que seus filhos têm direito, mas não recebem. Duas vezes na semana, a Conceição participa do projeto chamado Sementeira Esperança que tem uma horta agroecológica onde eles retiram os itens e preparam alimentos que servem para pessoas necessitadas, na sua maioria são mulheres e mulheres negras. A Conceição chega a falar que tem alimentos que ela só come no dia que ela vai acessar esse projeto social, como proteína animal, fruta, verdura, suco e comidas típicas da culinária Nordestina também.

Além do Bolsa Família, políticas públicas e iniciativas como cozinhas comunitárias e hortas agroecológicas são essenciais e devem ser pensadas e regulamentadas apoiando principalmente as mulheres negras nesse cenário de insegurança alimentar. É preciso pensar em programas estruturais e emergenciais para ajudar as pessoas que estão com fome hoje.

Além da renda, a pesquisa destaca outros fatores como a sobrecarga de trabalho da mulher negra. Como este fator afeta a segurança alimentar das famílias?

Tanto a sobrecarga, quanto questões relacionadas à política de cuidado eram fatores importantes para aquisição e para alimentação de todas as mulheres que ouvimos na pesquisa. Uma delas é a Claudecir, uma jovem de 23 anos que tem dois filhos e cuida da mãe idosa e com catarata. Claudecir trabalha da hora que acorda à hora que vai dormir, e parte deste trabalho não é remunerado.

Ela não tem tempo de cuidar de si, da própria alimentação, porque está sempre cuidando dos outros. Ela prioriza o cuidado à mãe e a alimentação dos filhos, que se alimentam de uma forma completamente diferente da dela. Uma das perguntas que fazíamos às mulheres na nossa pesquisa é: o que você gostaria de mudar na sua alimentação? Claudecir nem sabia que outra possibilidade de alimentação poderia ter. Ela foi uma das personagens que mais comia industrializados e ultraprocessados, porque priorizava coisas rápidas para consumo próprio.

As pessoas precisam compreender que, levando em consideração o contexto social em que vivem, há outras possibilidades possíveis, que a alimentação é um aspecto importante da nossa vida tanto quanto a moradia, o direito ao estudo, ao trabalho, à dignidade. Mas, na sobrecarga feminina e negra, principalmente a alimentação própria, acaba sendo uma questão secundária e isso pode, inclusive, levar a doenças crônicas que também afetam mais as mulheres negras. Isso é perceptível na história da Lindalva, que tem diabetes. Ela busca ter um estilo de vida saudável, mas, como trabalhadora doméstica, várias vezes na semana come na casa do patrão e aí entra na questão da falta de opção porque ela come o que está disponível naquele espaço de trabalho.

Por isso não adianta apenas fazer programas de transferência de renda para as mulheres se não resolver as questões de papéis de gênero, de política, de economia e do cuidado na nossa sociedade. Ou seja, as mulheres poderão até ter dinheiro mas não terão tempo para se alimentar bem, pensar e preparar a própria comida. A política de cuidado se relaciona a questões como tempo e distância para adquirir alimentos. Assim, uma mulher sobrecarregada tende a comprar o alimento ultraprocessado no mercadinho perto de casa e não na feira que fica a uma hora de distância.

O Governo Federal vem trazendo esse lugar de cuidado para uma política de estado, e acho que este é o primeiro passo para conseguir diminuir essa sobrecarga, essas desigualdades de cuidado e afazeres domésticos e começar a compreender o trabalho não remunerado como tempo de trabalho que precisa ser contado também em políticas públicas para essas mulheres.

Então o que essas mulheres necessitam é de uma rede de serviço de apoio, como creches, serviços de saúde e cuidados com idosos também?

Exatamente. É uma série de iniciativas desse tipo. Por isso, nosso projeto também fala de possíveis soluções. Não queríamos trazer esse protagonismo das mulheres negras apenas num lugar de violação de direitos, mas entendemos, nesse estudo, que elas são a chave para pensar sistemas alimentares saudáveis no Brasil. A partir das histórias delas, foi possível compreender melhor os fatores e lacunas da sociedade para criar políticas públicas eficazes, como o incentivo ao que a gente chama de alimentação ancestral, que é a alimentação protagonizada pelas assentadas da reforma agrária, quilombolas, indígenas, por exemplo.

Então é preciso programas que fomentem essa alimentação ancestral ou a agricultura familiar, principalmente nesses grupos, que já pensam esses sistemas alimentares sustentáveis de uma forma que, inclusive, não prejudique o meio ambiente, levando em conta as mudanças climáticas. A gente precisa, no Brasil, de uma reforma agrária e incentivar a agricultura familiar.

Outra personagem que ouvimos, a Gercina, é uma assentada e, graças a isso, conseguiu tirar da terra o sustento dela e compartilhar com os vizinhos. Ou seja, a reforma agrária é importante para pensar sistemas alimentares sustentáveis, além das políticas de cuidado de combate à fome e de transferência de renda, priorizando mulheres negras. Também é preciso mudanças efetivas no SUS que compreendam a vulnerabilidade das mulheres negras às doenças crônicas relacionadas com a alimentação. Então, é uma gama de fatores que são importantes quando se fala sobre alimentação, e eu acho que isso é o maior destaque do projeto: entender que o combate à fome deve passar por políticas de todas essas áreas.

A pesquisa acompanhou a rotina alimentar de quatro mulheres em contextos distintos, e além do ovo, outro alimento que estava presente na refeição de todas elas em diferentes momentos, no café da manhã, almoço e no jantar, é o cuscuz. Por isso, essa questão da cultura alimentar do território é muito importante. Como pensar numa política pública eficaz para essas mulheres sem levar em consideração o alimento que apareceu na realidade de todas elas, seja na que comia melhor ou na que não comia tão bem? Por isso, é importante que a cesta básica nacional contemple alimentos regionais, que fazem parte da cultura local.

De que forma o poder público e a sociedade em geral podem ter acesso ao conteúdo da pesquisa?

É possível acessar nosso projeto através do site https://alimentacao.generonumero.media/

Ele foi lançado na semana do 8 de março e publicamos novos conteúdos ao longo do mês. A narrativa híbrida conta com audiovisual, fotos, texto, artigo, entrevistas com especialistas. Depois do lançamento, realizamos um workshop do projeto no Rio de Janeiro, onde está a nossa sede.

Agora estamos focados em dialogar principalmente com organizações e veículos de imprensa do Nordeste e de Pernambuco. Em relação ao diálogo com autoridades, seja no âmbito regional ou nacional, demanda mais tempo e uma série de conversas. Mas é uma preocupação nossa trabalhar nas três esferas: Recife, Governo de Pernambuco e Governo Federal.

Nosso papel é subsidiar a sociedade civil e o poder público de dados para tomarem decisões mais efetivas, mais eficazes para combater a fome. Não tem como existir democracia plena no Brasil enquanto pessoas estiverem passando fome, sejam 33 milhões, sejam 20 ou apenas uma. Nosso maior propósito e objetivo é poder contribuir com essa mudança social, mas trabalhando em conjunto, com a academia, a sociedade civil e o poder público.

Só assim a gente consegue chegar em políticas que deem conta dessa pluralidade no Brasil e que priorizem mulheres negras, quilombolas e indígenas. São elas que precisam ser levadas em consideração na hora de pensarmos políticas públicas melhores para combater a fome no Brasil.

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