Hoje perdido nos confins da história, o incêndio de Roma castigou, severamente, as áreas mais povoadas da cidade. São muitas as hipóteses para tal acontecimento, pontificando, contudo, a que se baseia no fato de que os moradores, cujas habitações eram em sua maioria feitas de madeira, se valiam do fogo para se aquecer e preparar os alimentos. Por negligência, supõe-se, o fogo de uma dessas casas teria se alastrado e, com a infeliz coincidência do vento que soprava forte naquele dia, quase fazia desaparecer a cidade que então era a mais poderosa do planeta.
A explicação mais corrente, no entanto, é a de que Nero, o insano imperador romano, em busca de inspiração para dedilhar sua harpa teria colocado fogo na cidade, intencionando reconstruí-la mais forte, graças a uma nova e majestosa arquitetura. Tal versão é sobejamente desmentida pelos historiadores, já que, atualmente é sabido, Nero sequer estava em Roma naquela ocasião. Ademais, ao ser informado do acontecimento logo regressou e deu auxílio aos desabrigados, inclusive recebendo-os no seu palácio. Houve até quem afirmasse que o imperador era mesmo o autor do incêndio, para adquirir terrenos a preço vil.
Versões à parte, o fato é que o incêndio começou no centro comercial de Roma na noite do dia 18 de julho do ano 64 e rapidamente tomou conta da cidade. Foram seis dias de trabalho ininterrupto em busca de controlar as chamas. Mesmo assim, o problema não cessara, já que alguns focos espontaneamente reacesos fizeram o combate durar mais três dias. Contadas as perdas, dois terços da cidade estavam destruídos, inclusive obras da civilização romana, valiosas para a cultura ocidental e para a história da humanidade, como, por exemplo, o Templo de Júpiter e o Lar das Virgens Vestais.
Como o pensamento não conhece barreiras, viajemos no tempo. Pronto! Em menos de um segundo percorremos 1921 anos. Agora, estamos no Recife, onde ocorreu um incêndio potencialmente muito mais destrutivo do aquele de Roma. Diga-se, desde já, que aqui não se pretendia reconstruir a capital nem havia algum interessado em terrenos a preço de quase nada. Existia, isto sim, fatalidade. E coragem.
O que você vai ler agora é a história desse incêndio que nos revelou um herói pernambucano, o homem que salvou o Recife da destruição.
Para entender melhor, imagine-se nos arrecifes olhando a cidade a partir do mar. É a visão mais bonita da nossa capital. De imediato, seus olhos percorrem o Recife Antigo, rico das construções coloniais. Olhando para a esquerda, a Zona Sul da cidade. Para a direita, Olinda. Pois saiba que esse panorama desta cidade histórico-portuária por pouco não desapareceu deixando apenas escombros.
Na noite de 12 de maio de 1985, todo o esplendor arquitetônico da região, incluído o Palácio do Governo, que já foi ocupado por Maurício de Nassau, e do Teatro Santa Isabel, obra do engenheiro francês Louis Léger Vauthier, e ainda as proximidades dos bairros da Boa Vista, de Santo Antônio, do Pina e de Brasília Teimosa, poderiam ter-se tornado cinzas. Naquela noite, um dos três tanques do navio Jatobá, contendo 1.500 toneladas de gás de cozinha, explodiu, se fez chamas. Para agravar o perigo, o Jatobá estava ancorado próximo ao Parque de Tancagem do Brum, abarrotado de combustíveis. Se aqueles reservatórios, contendo cerca de 153 mil metros cúbicos de inflamáveis explodissem, parte da cidade do Recife seria tragada pelas chamas. Calcula-se que em um raio de cinco quilômetros tudo ficaria calcinado.
Urgia rebocar o Jatobá para longe do porto, mas quem se habilitava a desempenhar a perigosa missão?
Às duas horas da madrugada de um domingo Dia das Mães o telefone do prático da barra Nelcy Campos tocou, e apenas 20 minutos depois, ele chegou ao porto. Estava nascendo um herói. Não um super-herói, daqueles que figuram glorificados nas telas do cinema, mas um homem comum, praticando um gesto incomum. Nelcy Campos não vacilou. Foi ele o único profissional a aceitar a árdua tarefa de evitar maiores danos das labaredas, que àquela altura atingiam 20 metros de altura, e que nem os bombeiros haviam sido capazes de controlar.
Sua primeira providência foi manobrar os dois navios que estavam perto do Jatobá e, como ele, carregados de gás butano, deixando-os a uma distância segura. Em seguida, com sua liderança e a ajuda de outros portuários, ele serrou os cabos do navio em chamas, fixou a embarcação ao reboque Saveiro e partiu na direção de um banco de areia situado a seis quilômetros dali. O objetivo, que ele alcançou com absoluto sucesso, era evitar a explosão total do cargueiro e dos tanques de combustíveis do Brum. Recife estava salva.
Somente no meio da manhã do dia seguinte, ele regressou à terra, encontrando à sua espera toda a imprensa, oportunidade em que pronunciou uma frase que bem diz do seu caráter e serve como exemplo para os que hoje vivem o cotidiano da cidade: “Nunca me vi em uma situação tão difícil e perigosa, mas pensei logo na população. Mesmo sabendo que podia ser arriscado e que podia morrer, parti para a operação”.
Pelo seu feito heroico, Nelcy da Silva Campos foi reverenciado por autoridades e ilustrou manchetes nos jornais Brasil afora. Do Governo de Pernambuco recebeu a mais alta distinção, a medalha Guararapes Classe Ouro, e foi também reverenciado pela Marinha brasileira que, em 29 de junho de 2003, o homenageou com um busto de mármore no Terminal Marítimo do Marco Zero (a central de serviços turísticos do Carnaval), que passou a adotar, desde então, o seu nome. Eram passados 18 anos desde aquela noite trágica.
Nelcy Campos, o prático da barra que nasceu a 21 de janeiro de 1931 e arriscou a vida para salvar esta cidade, morreu a 27 de setembro de 1990, de causas naturais.
Graças a ele, as chamas daquela noite foram extintas. Já a chama da nossa admiração por ele jamais se apagará.
*Por Marcelo Alcoforado