1964: As memórias do golpe militar em Pernambuco - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

1964: As memórias do golpe militar em Pernambuco

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Nesta semana completam-se 60 anos da ruptura política de 1964, que fez o País mergulhar em uma ditadura de 21 anos, a Algomais inicia hoje uma série de três reportagens sobre essa página da história do Brasil que passou por episódios marcantes no Estado.

*Por Rafael Dantas

Agenda TGI

Seja no campo ou na cidade, os movimentos políticos que aconteceram em Pernambuco na década de 1960 foram marcantes para a eclosão do golpe militar que assombrou o País por mais de duas décadas. O movimento de resistência e todo o esforço de preservar a memória dessa época também teve protagonismos locais. A força das Ligas Camponesas, o Movimento de Cultura Popular e a eleição de Miguel Arraes são alguns dos episódios que ajudam a explicar a dura repressão que acontece no Estado após 1964, o terceiro do País com mais desaparecidos políticos segundo a Comissão da Verdade.

“Pernambuco é pioneiro em diversos eventos históricos e foi um ponto central em 1964, seja na implementação, no decreto do golpe, mas também no processo de redemocratização. Quando houve o golpe, o governador era Miguel Arraes de Alencar, muito presente nas causas sociais. Pelópidas Silveira era o prefeito do Recife. Mas eu queria alertar para o movimento social que existia em Pernambuco, os movimentos de reivindicação, desde os estudantes da Faculdade de Direito, das Escola de Engenharia e de Medicina, mas também os movimentos do campo, que buscavam reforma agrária e direitos trabalhistas. Isso, alinhado aos movimentos intelectuais, tornava Pernambuco um celeiro de reivindicações sociais. Então, quando estoura o golpe, uma das primeiras ações é sufocar esses movimentos sociais e, logicamente, prender e depor Miguel Arraes”, afirma o historiador e professor da UPE (Universidade de Pernambuco), Carlos André Silva de Moura.

O contexto em que emana o golpe no Brasil e atinge em cheio o calor das reivindicações políticas em Pernambuco tem muitas motivações vindas do cenário internacional. Dentro do contexto da Guerra Fria, em um mundo polarizado entre as lideranças dos Estados Unidos e da União Soviética, a explosão da Revolução Cubana, em 1959, liga um sinal de alerta na América Latina. Ditaduras vão se erguer em vários países no continente, com destaques para a Argentina, o Chile e o Brasil.

Além do contexto internacional, a historiadora Susan Lewis, também professora da UPE, alerta para o posicionamento das elites brasileiras e pernambucanas, que desejavam uma modernização do País, mas, ao mesmo tempo, a manutenção da sua força política e econômica. O barulho dos movimentos populares da época, sedimentados pelo apoio de intelectuais, foram combustíveis para a repressão.

“A classe burguesa estava amedrontada pelo comunismo. Com a renúncia do Jânio Quadros, João Goulart (vice-presidente na época), que estava na China e se aproxima dos trabalhadores e dos jovens, vai ser visto como um comunista. A gente tem uma sociedade que é tradicionalmente conservadora. A elite queria um tipo de desenvolvimento capitalista, queria se modernizar, mas de forma conservadora. Ou seja, o status quo tem que ser mantido”, afirma a pesquisadora que também é integrante do Comitê Memória Verdade e Justiça de Pernambuco.

CENÁRIO POLÍTICO DE REIVINDICAÇÕES

O coordenador da Cátedra Dom Helder Camara, da Unicap (Universidade Católica) o professor Manoel Moraes, ressalta que para entender o grau de repressão do golpe em Pernambuco, é necessário compreender o processo que o precedeu. “Por que nós somos o terceiro Estado em número de desaparecidos políticos no Brasil? Primeiro é São Paulo, depois, o Rio de Janeiro. Nós tivemos um forte movimento naquela época no pré-golpe de 64 em Pernambuco”, afirma o docente.

O pioneirismo das Ligas Camponesas, os primeiros passos do movimento sindical brasileiro e a atuação de lideranças católicas nos movimentos do campo são alguns dos elementos que explicam o protagonismo local na luta por direitos que tanto incomodou o cenário político nacional. Mas, em Pernambuco, se destacou ainda a força de massas em volta do MCP (Movimento de Cultura Popular), do movimento estudantil e da própria Frente Popular de Pernambuco.

Para compor esse cenário de forças, há um conjunto de grandes intelectuais, políticos e artistas que participavam ou apoiavam os movimentos sociais que reivindicavam por direitos e pelas chamadas Reformas de Base no País. Paulo Freire, Josué de Castro, o deputado Francisco Julião e o ex-governador Miguel Arraes são apenas alguns desses personagens que atuaram como protagonistas na época.

“Pernambuco é um polo extremamente estratégico de luta e a sociedade civil se organizava a partir da nova composição política que hegemonizava no Estado, que era a chamada Frente Popular. Então, a repressão em Pernambuco não foi qualquer repressão”, explica Manoel.

TENSIONAMENTOS NO CAMPO

Anacleto Julião, filho do ex-deputado e um dos líderes das Ligas Camponesas, Francisco Julião, lembra que quando criança foi levado para Cuba, a convite de Fidel Castro, para fugir do golpe que já se esperava. Ele, sua mãe e irmãos foram para a ilha dois anos antes da queda de João Goulart. Antes de retornarem ao Brasil, eles ficaram exilados ainda no Chile, durante o período de ascensão de Salvador Allende, e posteriormente na Suécia. A ditadura não foi uma surpresa, especialmente para quem estava dentro das lutas de reivindicação.

No conjunto das chamadas Reformas de Base, uma em especial tinha relação direta com as movimentações políticas de Pernambuco e que incomodava os golpistas dos anos 60: a reforma agrária. Antes mesmo da formação dos sindicatos rurais, eram as Ligas Camponesas que articulavam a extensão dos direitos aos trabalhadores no campo.

“Eu lembro que na nossa casa chegavam centenas de camponeses. Ficavam sentados no terraço e no quintal. Eles vinham pedir ajuda ao então deputado federal Francisco Julião. Depois da formatura, ele começou a defender os camponeses com uma ideia de levar para o campo as Reformas de Base e as leis trabalhistas. Esse movimento se alastrou, primeiro em Pernambuco, em seguida pelo Nordeste e, depois, tomou conta do Brasil”, relembra Anacleto Julião.

Francisco Julião foi deputado estadual e federal. Segundo o filho, não cobrava os serviços advocatícios. Como já recebia o salário da atividade política, considerava que deveria defender gratuitamente os trabalhadores rurais. “Ele usava a bíblia e também a literatura de cordel para alertar os camponeses sobre seus direitos e da necessidade de uma reforma agrária, em que os camponeses teriam seu pedaço de terra para poder sobreviver com a sua família e ainda produzir para as feiras locais. O que teve uma repercussão muito forte e a elite começou a tratar isso como se fosse uma coisa de comunista”, conta Anacleto.

Além do trabalho do pai, ele destaca toda a atuação da sua mãe, Alexina Crespo. No Brasil, ela auxilia no processo de formação dos camponeses. No cenário internacional, foi com ela que Fidel Castro se comunicou sugerindo o exílio da família que sofreria risco de morte com o iminente golpe e com quem se informava sobre os fatos que aconteciam no País. Ela também tinha contatos com as lideranças da China na época. Como militante, Alexina conviveu com alguns dos principais nomes da esquerda mundial, como Mao Tsé -Tung, Salvador Allende, Carlos Marighella, além dos irmãos Castro.

As Ligas Camponesas não eram um partido político mas um movimento de massas, na análise de Anacleto. Ele explica que qualquer pessoa de qualquer partido ou de qualquer religião poderia integrar essa atuação pelos trabalhadores rurais. “E foi assim que o movimento cresceu. Cresceu demais, principalmente aqui em Pernambuco. Quando havia qualquer conflito de terra e os camponeses eram massacrados, as notícias saíam como se fosse caso de polícia. E não eram casos de polícia, eram casos de política sobre a reforma agrária. Francisco Julião levou esses conflitos das páginas policiais para as páginas de política, ele se utilizava também da tribuna para denunciar isso”.

Com o golpe, Francisco Julião teve seu mandato cassado e todas as lideranças rurais foram perseguidas. No golpe, ele foi preso e depois libertado, com prazo para deixar o País. O deputado seguiu para o México, onde permaneceu até ser anistiado.

PERSEGUIÇÃO NO ENGENHO GALILEIA

Um dos lugares icônicos das lutas do campo foi o Engenho Galileia, que fica em Vitória de Santo Antão. Os trabalhadores rurais conseguiram fundar a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, em 1954, alcançando importantes vitórias na luta por direitos. Essa organização era responsável por representar as 140 famílias arrendatárias que habitavam pequenos sítios no engenho e pagavam aluguel ao proprietário pelo uso das terras. Seus principais propósitos ao criar a sociedade foram de oferecer apoio médico, educacional e jurídico às famílias, bem como evitar o endividamento dos camponeses com o latifundiário e auxiliar nas despesas funerárias.

Com Francisco Julião como seu advogado, o Engenho Galileia conseguiu a propriedade das terras, o que é considerada a primeira desapropriação legal para fins de reforma agrária no Brasil. Símbolo dessas lutas dos camponeses por direitos básicos, o local foi alvo de ações de repressão tão logo aconteceu o golpe.

“O pessoal da Galileia escutava pelo rádio que o Palácio (do Campo das Princesas) amanheceu cercado. Às 18h, três caminhões do Exército entraram na Galileia para prender as lideranças, matar e torturar, como fizeram em outros lugares. Mas nossos pais se esconderam, ficaram perto, nos matos, escondidos”, afirma Zito da Galileia, 76 anos, neto de Zezé da Galileia, um dos líderes e primeiro presidente da sociedade.

Nas suas memórias, ele se recorda que os militares quebraram tudo. Apesar de não conseguirem prender os líderes do movimento, eles levaram um caminhão com materiais de filmagem do filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. O documentário estava em gravação no engenho naquele dia.

“Os políticos de Vitória diziam que havia um caminhão de armas enterradas em Galileia, vindos de Cuba. Nunca acharam um canivete”, conta Zito. Dos itens apreendidos pelos militares, ele cita que foi confiscada uma estátua produzida por Abelardo da Hora que representava os camponeses sem terra, que nunca retornou ao local.

Com líderes perseguidos, alguns se entregaram, outros foram presos posteriormente, e o movimento foi extinto. Zezé da Galileia foi um dos presos. Zito, na época um adolescente, foi trabalhar em Vitória, mas com o apelido de comunista por ter vindo do Engenho Galileia, ele teve medo e pediu para sair. Depois veio trabalhar no Recife e reconheceu uma pessoa que tinha prendido um líder operário. Com receio de uma captura, comprou uma passagem para São Paulo, deixando Pernambuco até o ano 2000, quando retornou para preservar a história das lutas do homem do campo.

MOVIMENTOS ESTUDANTIS E POLÍTICOS

Além do campo, na cidade fervilhavam também movimentos políticos de esquerda. Aproximando-se dos 80 anos, Marcelo Melo tinha 16, quando começou sua militância política. Aos 17, integrava o grupo de comunistas do Ginásio Pernambucano e o PCB (Partido Comunista Brasileiro), em 1961. Posteriormente, ele atua ainda no PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). Muito atuante, disputava o diretório estudantil na escola e participou ativamente na campanha para eleição de Miguel Arraes, em 1962.

Participou das coletas de assinaturas pela legalização do PCB e integrou o MCP (Movimento de Cultura Popular). “Eu era mais ligado à política estudantil secundarista, mas frequentava todos os eventos do MCP e fiz o curso do método de alfabetização de Paulo Freire. Comecei a me envolver cedo com a direção partidária”, conta Marcelo.

Ele lembra que com o MCP havia uma efervescência cultural grande. O movimento foi marcado por promover uma pedagogia da conscientização. De acordo com o Memorial da Democracia, esse movimento surge no Recife dedicado a educar a população carente da cidade e proporcionar-lhe acesso à cultura. Contando com o apoio de intelectuais, educadores, artistas, estudantes, representantes da Igreja Católica e do PCB, concentrava-se na promoção do desenvolvimento intelectual e cultural das comunidades menos favorecidas, reconhecendo a importância da educação e da cultura como ferramentas para a transformação social.

Toda aquela força estudantil e cultural, com a defesa das Reformas de Base, tem uma interrupção abrupta com o golpe de 1964. Marcelo lembra da agitação na cidade no dia 1º de abril daquele ano e da reação estudantil. “Quando o palácio foi cercado de repente, havia um alvoroço na cidade. Sindicatos sendo invadidos, gente sendo presa, as lojas fechando. Um pânico nas ruas. Houve uma assembleia geral na antiga Escola de Engenharia, na Rua do Hospício, de onde saiu uma passeata, que passou pela Av. Guararapes e, quando chegou no Edifício JK, com a bandeira brasileira e cantando o hino nacional em direção ao Palácio do Governo, veio um pelotão do Palácio da Justiça atirando para cima. Mataram um aluno do Ginásio Pernambucano, do meu grupo, e um estudante de Palmares. Morreram os dois. E foram feridas mais algumas pessoas. Eles queriam dar uma demonstração de força”, lembrou Marcelo Melo.

A professora Susan Lewis menciona ainda que nesse episódio houve uma terceira morte, de uma mulher transeunte, que não teve seu nome registrado. Contabilizando assim, apenas nesse enfrentamento, três assassinados. O então líder estudantil ficou detido algumas horas, sendo libertado pelos militares. Somente anos depois de viver na clandestinidade, quando estava no Rio Grande do Norte, ele foi preso pela ditadura. De volta ao Recife, Marcelo passa a integrar a resistência dos presos políticos nos presídios (que destacaremos na segunda reportagem desta série). Com assassinatos e presos, a atividade política estudantil é fortemente golpeada em 1964, sendo colocada também na clandestinidade.

QUEDAS DE GREGÓRIO BEZERRA E DE MIGUEL ARRAES

Um dos episódios marcantes da violência do Golpe de 1964 foi a tortura pública do líder comunista Gregório Bezerra. Preso no interior, foi trazido ao Recife, onde foi torturado em uma sessão pública. “Arrancaram os cabelos dele com um alicate, tiraram os dentes, chutaram sua barriga. Há um ponto muito simbólico nessa tortura, porque não ficou só nos porões, como muitas vezes a ditadura fez. Eles amarraram Gregório na traseira de um carro e o arrastaram no bairro de Casa Forte”, relata a professora Susan Lewis. A historiografia revela que ele teve os pés queimados por uma solução de bateria automotiva e que a tortura, uma das primeiras do regime, foi televisionada.

Outro fato icônico foi a prisão de Miguel Arraes. Carlos André ressalta que ao então governador foi dada a possibilidade de renunciar, antes de ser cassado e preso. Mas ele se negou a abdicar do poder alcançado nas urnas. “Foi dada a oportunidade de Miguel Arraes entregar o governo e ele não o entregou. Eu acho que isso é muito marcante na história política dele, porque foi corajoso, sabia que poderia morrer a qualquer momento. Ele foi a uma rádio e transmitiu ao vivo um pronunciamento destacando que só sairia preso ou pelo povo. E volta para o Palácio do Campo das Princesas, onde foi preso, levado para Fernando Noronha e depois exilado na Argélia”, descreveu o historiador da UPE.

31 de MARÇO e o 8 DE JANEIRO

Se a ruptura política foi vitoriosa em 1964, arrastando o País para 21 anos sem democracia, a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023 foi frustrada. O professor Carlos André Silva de Moura considera dois elementos principais para explicar o insucesso dos milhares de brasileiros que invadiram a Praça dos Três Poderes no ano passado. “Além do cenário internacional [o mundo não vive mais sob uma Guerra Fria], hoje temos instituições democráticas mais consolidadas. Por mais que precisemos ainda aprimorar a democracia e por mais que a nossa democracia seja muito jovem, mesmo assim, as instituições democráticas funcionaram. O Legislativo funcionou, o Executivo funcionou. Mesmo, guardando todas as ressalvas, as forças de segurança em algum momento também funcionaram. Hoje, não temos mais um espaço no Brasil que legitime a quebra da democracia. Lógico que temos que estar vigilantes. O 8 de Janeiro foi um exemplo disto. Ele vai deixar uma cicatriz muito grande, mas foi um teste em que nós, a duras penas, passamos”, avalia o historiador da UPE.

As tentativas de resistência não conseguiram evitar o avanço do golpe e da repressão política em Pernambuco em 1964. Mas, no rastro de sangue, torturas e medo, a organização política contrária aos ditadores vai se articulando numa resistência inacreditável que acontece desde os presídios até o exterior. Esses novos episódios das memórias do golpe serão contados na segunda reportagem da série no próximo mês.

*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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