Municípios no Vermelho: entenda os motivos da greve dos prefeitos

A crise crônica das finanças das prefeituras se tornou aguda no segundo semestre de 2023. O questionamento da divisão de recursos entre a União, estados e municípios é antiga e está nas raízes do almejado Pacto Federativo. Porém, no atual trimestre, um combinado de queda de arrecadação e aumento das obrigações orçamentárias levou os prefeitos a um movimento “grevista” por um socorro federal. Em Pernambuco, a Amupe (Associação Municipalista de Pernambuco) estima que 80% das cidades sobrevivem do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) e ficaram em uma situação de maior fragilidade nos últimos meses.

Entender a briga pelo orçamento nesse caso não é fácil. Existem diferentes fontes de receitas dos municípios, como o ISS (Imposto sobre Serviços), o IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana) e uma parcela do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Porém, as pequenas cidades, de forma geral, dependem muito do FPM para realizar seus serviços.

O fundo é composto por 22,5% da arrecadação líquida da União da soma do IR (Imposto de Renda) com o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). O resultado dessa sopa de letrinhas que deixou os prefeitos em pânico foi que houve uma redução das receitas vindas do IR das pessoas jurídicas, ao mesmo tempo em que aconteceu um aumento das restituições do Imposto de Renda. O resultado final é que houve uma diminuição da arrecadação da União e, consecutivamente, queda do repasse municipal.

O impacto veio no início do segundo semestre. Os repasses do FPM são feitos três vezes ao mês. A queda do primeiro decêndio de julho foi de 32,4%, enquanto que nos meses de agosto e setembro, no mesmo período, foram respectivamente de 20,3% e 28,2%. “Se já temos um Pacto Federativo injusto aos municípios, perder cerca de 30% da receita prejudica muito os serviços que a gente presta para a população e a forma que temos de pagar os servidores. Somado a isso, tivemos queda de outras arrecadações, como o ICMS. Esses dois fatores fizeram com que muitas prefeituras se encontrassem em situação de calamidade”, destacou a presidente da Amupe e prefeita de Serra Talhada, Márcia Conrado.

O processo de desindustrialização do País, intensificado nos últimos anos, e as mudanças mais recentes nas regras do Imposto de Renda tiveram uma relação com essa queda das receitas, segundo o economista e professor da UPE (Universidade de Pernambuco), Sandro Prado. “Enquanto nos anos 1980 chegamos a ter em torno de 30% do PIB da indústria, no Governo Bolsonaro chegou a 11%. Tivemos uma queda percentual desse setor que fez com que o IPI murchasse. Essa desindustrialização é um processo longo, que teve um agravamento muito forte nos últimos anos. Além disso, houve uma restituição maior do Imposto de Renda. É uma luta importante para a população, mas traz um complicador que é a diminuição desse repasse nos meses de agosto e setembro, fazendo com que os municípios ficassem enlouquecidos”, afirmou Sandro Prado.

A proximidade com as eleições municipais do próximo ano se tornou um agravante nesse cenário, pois cria dificuldade para a máquina pública das prefeituras, na análise do economista.

CRESCIMENTO DAS DESPESAS NO RADAR

Além da queda das receitas, outra queixa forte dos prefeitos, capitaneada no País pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios), é o aumento de despesas obrigatórias, sem uma fonte definida. Em outras palavras, são leis que elevam, por exemplo, salários, sem que haja a indicação de quem pagará a conta e tudo vai acabar nos cofres municipais. O aumento do piso dos professores, por exemplo, entra nessa conta.

“Temos visto e revisto o Pacto Federativo porque é muito injusto com os municípios. As demandas só chegam, mas contrapartida financeira não chega para fazermos o melhor, que é cuidar das pessoas. Temos um grave subfinanciamento na saúde, na educação e na assistência social. É preciso rever a distribuição desses recursos”, afirmou a presidente da Amupe. Ela destaca que o subfinanciamento dos serviços não é um problema recente, mas algo que já atravessa pelo menos uma década, com graves prejuízos aos cofres municipais.

De acordo com o estudo recém-publicado pela CNM, 53% das pequenas cidades do País e 38% dos municípios de médio e grande porte estão com déficit – despesas maiores que as receitas. “No primeiro semestre de 2023, a cada R$ 100 arrecadados nos pequenos municípios, R$ 91 foram destinados para pagamento de pessoal e custeio da máquina pública”, afirmou o estudo Avaliação do cenário de crise nos municípios. A pesquisa foi realizada a partir de dados do Siconfi (Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro) e elaborada pela CNM.

O economista Sandro Prado avalia que são justas as reivindicações das categorias profissionais e que deveriam haver outros pisos instituídos em lei. No entanto, vê com preocupação a ausência de comunicação entre os legisladores e o Poder Executivo na definição dos recursos. “Essa falta de diálogo entre os dirigentes municipais, estaduais e federais é uma coisa muito séria. Quando o Congresso aprova uma legislação que vai afetar 5.570 municípios é algo muito grave. Obviamente as categorias são merecedoras. Algumas mais fortes conseguem. O piso dos professores e dos profissionais de saúde aumenta as despesas do município. Deveria haver, por parte dos gestores, um remanejamento dos recursos para esse pagamento, mas muitos colocam isso como algo que ele não conseguiu pagar e algo que fez com que dificultasse ainda mais a sobrevivência desses municípios”, disse o economista.

No primeiro semestre, os municípios de Pernambuco tiveram um aumento de despesas com pessoal na ordem de 7%, em comparação com o mesmo período de 2022. Os gastos de custeio avançaram em 23% e os investimentos subiram em 24% nos primeiros seis meses de 2023. Já a arrecadação no primeiro semestre registrou um aumento de 7% do FPM e uma queda de 4% do ICMS. Uma redução abrupta, no entanto, foi das execuções de emendas parlamentares, que alcançaram o patamar de 63% a menos que em 2022.

Diante do baque do começo do segundo semestre, Márcia Conrado destacou que os prefeitos têm feito “malabarismo” para lidar com a diminuição das finanças sem aviso prévio. Na prática são demissões de contratados, redução de salários de comissionados e de outras despesas não obrigatórias, a partir da revisão de contratos.

Antes mesmo dos repasses reduzidos do início do segundo semestre, 45% dos municípios pernambucanos — 82 cidades — já estavam com déficit primário, segundo o estudo da CNM.

SINAL DE ALERTA COM O NOVO CENSO

Além da queda de receita e aumento de despesas, um novo fator que preocupa as prefeituras foram os dados do novo Censo. As flutuações da população fariam crescer a receita de oito cidades pernambucanas e cair a de 64 municípios. Com articulação política, uma conquista municipalista foi a diluição da redução do FPM em 10 anos e não de forma imediata. Já as prefeituras contempladas com o acréscimo de receita já estão recebendo desde julho os valores atualizados.

Serra Talhada, município que tem Márcia Conrado como prefeita, é um dos oito que mudou de patamar em Pernambuco e já está recebendo desde julho uma receita atualizada com o perfil populacional, que cresceu na última década. A cidade registrou no Censo uma população de 92.228 habitantes, contra 79.232 em 2010, um crescimento de 16,4%.

DRIBLAR A CRISE NO DIA A DIA

Cada município tem definido suas estratégias para driblar o período mais crítico financeiro, enquanto não são definidos novos parâmetros de distribuição ou ao menos não chegam recursos emergenciais. Em Cupira, que possui 23.518 mil habitantes, a saída para sobreviver ao início do segundo semestre foi usar parte das reservas em caixa para compensar a queda do orçamento.

“No nosso caso, estamos bem-organizados e tínhamos uma reserva em torno de R$ 3 milhões. Hoje ela já caiu para R$ 700 mil. Nosso caixa foi consumido e agora vivemos a expectativa de um repasse federal, mas ainda não temos uma resposta”, afirmou o secretário de Administração da Prefeitura de Cupira, André Macedo.

Para os próximos meses as preocupações são grandes. O secretário estima para o segundo semestre uma queda de 8,4% nas receitas da prefeitura. Somada à inflação do período e os aumentos de despesas, com itens como o novo salário mínimo e a definição de pisos para algumas categorias profissionais, os cálculos apontam para um desequilíbrio negativo na ordem de 25% a 30%.

Em Gravatá, que tem uma população de 86.516 pessoas, os ajustes foram para todos os lados. O secretário de Finanças, Fábio Romero, afirma que a prefeitura conseguiu nos últimos anos elevar a arrecadação de receitas próprias, diminuindo a dependência do FPM, o que reduziu o impacto da queda. Porém, mesmo assim, cada secretaria teve que dar sua contribuição para atravessar as dificuldades dos últimos meses.

“Desde junho reunimos os secretários para informar a situação de turbulência e pedir um pé no freio para todos. Foi necessário rever processos, reavaliar todos os contratos, reduzir despesas, como gasolina e energia, para conseguir manter os principais pilares e não deixar faltar merenda e medicamento. Vamos racionar no que for possível para não deixar faltar nas prioridades”, afirmou Romero.

O secretário indicou que em outras prefeituras já houve redução de salários e cortes de comissionados. Ele avalia que há um risco nacional nas contas dos entes municipais. “Há uma sinalização do Governo Federal de fazer reposição das perdas orçamentárias, com espelhamento de 2022. Temos uma expectativa que isso aconteça. A mobilização da CNM e da Amupe iluminou outros horizontes, de uma distribuição mais justa, pois há um perigo de falência generalizada de todos os municípios”, considera Fábio Romero. O secretário de Gravatá lembra também que ao longo dos anos houve um incremento de serviços sob a responsabilidade das cidades que pressionam os cofres municipais. Ele exemplifica isso ao mencionar a instituição das guardas municipais, frente à queda da presença de efetivos da Polícia Militar nos últimos anos.

SOLUÇÕES NO HORIZONTE

Apesar do cenário atual ser ainda de aperto, a expectativa da presidente da Amupe é de resolução da queda do FPM com uma recomposição do que foi perdido. A gestora avalia que a mobilização dos prefeitos conseguiu engajar parlamentares e governadores em prol da causa municipalista e que há uma sensibilidade do Governo Federal para resolução do problema.

Após uma intensa mobilização dos gestores municipais e uma articulação com o Legislativo e o Executivo Federal, a Câmara dos Deputados deu seu aval ao substitutivo ao Projeto de Lei Complementar 136/2023. O projeto aborda a compensação da União pela redução das alíquotas do ICMS, que impactou as receitas dos demais entes. A medida antecipará os valores originalmente programados para 2024. Adicionalmente, o projeto contempla um apoio financeiro para auxiliar na recomposição das quedas no FPM. O texto, no entanto, ainda precisa passar pelo Senado.

Com essas adições, aproximadamente R$ 2,73 bilhões da compensação do ICMS, originalmente previstos para 2024, serão repassados aos municípios ainda neste ano.

Uma medida emergencial pleiteada pela CNM, dentro desse movimento “grevista” dos prefeitos, é a aprovação da PEC 25/2022, que tem a finalidade de instituir o adicional de 1,5% do FPM no mês de março de cada ano. “A Confederação calcula o impacto da medida em um aumento dos repasses em R$ 11 bilhões. A finalidade da proposta é o pagamento do piso da enfermagem e o alívio da situação fiscal dos municípios”, afirmou o estudo Avaliação do Cenário de Crise nos Municípios.

Há ainda um pedido de compensação de perdas no ICMS a partir do Projeto de Lei Complementar 94/2023. “O texto, ao reconhecer o acórdão homologado no STF entre a União e os governadores, permitirá o envio de recursos financeiros aos municípios da ordem de mais de R$ 6,5 bilhões relativos aos 25% da quota-parte”, destaca o estudo. A CNM tem uma série de outras reivindicações.

Já na Assembleia Legislativa de Pernambuco está em discussão o Pacote de Justiça Fiscal. Proposto pelo Governo do Estado, trata-se de um conjunto de medidas que podem aliviar a situação dos municípios. Uma delas é a antecipação da parcela do Refis (Programa de Recuperação Fiscal) referente a novembro, além da liberação de emendas para as áreas de saúde e de pagamentos em atraso. No pacto está previsto o aumento da alíquota do ICMS (de 18% para 20,5%), que deverá destinar às prefeituras R$ 550 milhões. O projeto precisa ainda ser votado e há outras propostas de deputados que podem entrar, como a criação de um Fundo Estatal de Apoio Financeiro aos Municípios.

Para Sandro Prado, uma maior equalização das contas públicas só virá por meio de uma reforma tributária do País. “Todo esse imbróglio só vai ser minimamente sanado com a nossa Reforma Tributária. Nosso Código Tributário Nacional é de 1964, ele passou por várias adaptações, por várias mudanças e, agora, acredito que no final de novembro deste ano, a reforma deva ser aprovada. Porém, ela não vai reduzir nada no curto prazo, já que as mudanças virão paulatinamente, mas seria uma nova lógica tributária brasileira”.

A CNM também fez uma série de propostas para a Reforma Tributária. A entidade propõe modificações que preservem a autonomia e ajustes nas porcentagens da cota-parte municipal no novo imposto resultante da fusão do ICMS e do ISS, conhecido como IBS (Imposto Sobre Bens e Serviços).

Com as reivindicações colocadas no alto-falante, a “greve dos prefeitos” conseguiu pautar o desequilíbrio financeiro municipal e ligou o alerta para a definição das despesas obrigatórias. Como nos movimentos trabalhistas em busca dos direitos, nem todas as bandeiras são vencidas. O quanto dessa lista de reivindicações das prefeituras será atendida, só a articulação política e o tempo dirão.

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