Diretor de Meio Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Maurício Guerra, fala sobre o programa Cidades Verdes Resilientes e dos desafios para implantá-lo. Ele defende o uso de tecnologias sustentáveis no processo de adaptação à crise do clima e a ideia de que a qualidade ambiental deve ser vista como um serviço público que atinja as pessoas mais vulneráveis.
S egundo dados do ONU-Habitat, publicados em 2022, as áreas urbanas abrigam 55% da população global, percentual que chegará a 68% até 2050. Se fizermos um recorte para a América Latina e Caribe, esse número sobe para 81% e, segundo o IBGE, chega a 85% quando o foco é o Brasil. Com tamanha densidade populacional, as cidades, também de acordo com a Organização das Nações Unidas, já são responsáveis por cerca de 70% de todas as emissões de gases de efeito estufa. Para manter o aumento da temperatura global abaixo de 1.5 °C, a ONU estabeleceu a meta de até 2050 as cidades atingirem a neutralidade de carbono.
Diante desse desafio, o Governo Federal lançou o programa Cidades Verdes Resilientes que compreende iniciativas tão amplas quanto a proteção das populações aos efeitos das mudanças climáticas, ampliação das áreas verdes urbanas, estímulos às soluções baseadas na natureza e à mobilidade ativa, entre outros pontos de atuação. Para falar sobre os desafios de colocar em prática esse ambicioso programa, Cláudia Santos conversou com o diretor de Meio Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Maurício Guerra. Ele esteve no Recife para participar do evento do Simaclim (Centro de Síntese em Mudanças Ambientais e Climáticas).
Guerra destacou a necessidade de se ter uma articulação metropolitana para implantar essas ações. “Não tem outro caminho, a natureza e os problemas ambientais não estão restritos a barreiras geopolíticas, eles simplesmente se manifestam no ambiente”, adverte. Também elogiou o projeto Recife Cidade Parque, como um exemplo do que pode ser uma cidade verde resiliente e ressaltou a importância do papel da ciência e da participação das pessoas nessa transição.
O que é o Programa Cidades Verdes Resilientes?
É um programa que articula três grandes ministérios: o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério das Cidades e o Ministério da Ciência e Tecnologia, cada um com o seu perfil de atuação. A ideia é estabelecer que a importância da resiliência consiste nos sistemas naturais das cidades. A primeira questão é proteger as populações, especialmente as mais vulneráveis, articulando serviços urbanos e infraestrutura atrelada ao meio ambiente, como elemento de resiliência, de ampliação de biodiversidade, trazendo qualidade ambiental e de vida para essas populações. Para isso, articulamos grandes temas, como o uso e ocupação sustentável do solo. Não adianta promover cidades desiguais onde as pessoas não têm acesso ao solo e esse acesso tem que ser sustentável. Então, é preciso convergir vários serviços urbanos próximos da população e que esses serviços tenham valor ambiental associado. A ideia é promover equidade e sustentabilidade à ocupação do solo.
Outro tema desse programa são as áreas verdes e a arborização urbana. É importante compreender a estrutura verde da cidade e, assim, ampliar instrumentos de planejamento, criação de novas áreas verdes e identificação dessas áreas para expandir e potencializar a arborização e a conexão desses verdes, trazendo biodiversidade. Outro tema são soluções baseadas na natureza, que é associar a infraestrutura cinza às infraestruturas verde e a azul.
A infraestrutura verde é compreender que as soluções devem estar articuladas à natureza, é ampliar a área de permeabilidade com verde, gerar áreas de contenção naturais, grandes praças, espaços que vão receber as águas em período de chuva. Já a infraestrutura azul são as águas, os nossos rios. Ou seja, é preciso planejar os espaços urbanos a partir das bacias hidrográficas, compreender como a malha hídrica se comporta para que possamos conviver com ela da melhor forma possível e não lutando contra as águas o tempo todo. Por isso as infraestruturas verde e azul têm que estar casadas nesse planejamento, melhorando nossas áreas verdes para trazer proteção e conservação da biodiversidade para os espaços urbanos.
O outro tema desse programa é a tecnologia de baixo carbono, na perspectiva de neutralizar as emissões, promover construções mais sustentáveis, mais alinhadas ao verde e mais eficientes do ponto de vista energético. Outro viés é a mobilidade urbana sustentável, a mobilidade ativa, ou seja, calçadas e ciclovias articuladas ao verde da cidade, como parques lineares onde aumentam-se as áreas de caminhabilidade e de acesso da população a áreas verdes.
Além disso, a ideia é investir em transportes urbanos cada vez mais sustentáveis e com energias renováveis para evitar a poluição e melhorar a qualidade de vida e o acesso da população a meios de transportes menos poluentes e mais adequados. E, por fim, o programa Cidades Verdes Resilientes trata da gestão dos resíduos sólidos orgânicos, associando o serviço de compostagem às atividades de cooperativas de catadores e de agricultura urbana, utilizando esses resíduos dentro da estrutura verde da cidade. Dessa forma, o programa conecta esses elementos para tornar as cidades sustentáveis, trazer o verde para o centro da transformação urbana, cuidando da equidade no acesso aos serviços urbanos sustentáveis à população.
Diante de um programa com uma pauta tão vasta, quais desafios que vocês estão enfrentando para implantá-lo?
São muitos desafios. Do ponto de vista técnico normativo, ainda há soluções baseadas na natureza que não estão devidamente enquadradas e precisam ser definidas. Um dos maiores desafios serão os aspectos de governança, ou seja, ampliar a relação interfederativa, articulando as capacidades dos municípios em desenvolver projetos sustentáveis. Por exemplo, hoje várias prefeituras investem em canalização dos seus rios, riachos e córregos. Essa é uma das piores alternativas. É preciso investir na renaturalização dos rios. Esse é um exemplo que a gente precisa articular os municípios para terem capacidade de pensar os projetos nesse novo cenário climático para nossa cidade.
Há também a questão do financiamento, pois dispor de recursos significativos para mudar o cenário da cidade é um importante desafio. Vale reforçar que temos investimento, ao longo dos anos, em infraestruturas que são inadequadas de se pensar no dia de hoje. Então, é preciso ter a inteligência de mudar esse perfil e trabalhar a perspectiva de novos investimentos voltados à sustentabilidade, definir novos critérios para que os bancos de desenvolvimento possam contemplar nos seus financiamentos da infraestrutura urbana no País. Nos nossos programas que acessam os fundos, teremos que mobilizar o PAC, o Fundo Clima para esse tipo de apoio.
A articulação com os municípios é muito importante, mas há também o desafio sob a perspectiva metropolitana que, muitas vezes, não é fácil de ser mobilizada.
Sim. Questões referentes à biodiversidade, conexão e ampliação dessas áreas verdes, soluções naturais de integrar as bacias hídricas passam pela gestão metropolitana. Então, as metrópoles vão ter que pensar de forma integrada suas soluções e isso é um desafio diante das relações políticas entre os municípios. Em relação às ações articuladas, há desafios de atuação metropolitana compartilhada nas fronteiras desses municípios.
Mas não tem outro caminho, a natureza e os problemas ambientais não estão restritos a barreiras geopolíticas, eles simplesmente se manifestam no ambiente. Além disso, a população urbana se concentra na região metropolitana de forma intensa. É onde se precisa ter atenção e um olhar, sobretudo, para as regiões periféricas para poder cuidar e trazer segurança a essa população.
Como está o andamento do programa? Já começou a ser implantado?
Estabelecemos suas linhas principais, anunciamos, na COP 2023, o início da articulação, montagem e manutenção com os ministérios. O programa foi aprovado em decreto presidencial no dia 5 de junho de 2024. Contamos com uma etapa de oficinas onde reunimos mais de 1.700 participações simples e tivemos mais de 1.800 contribuições para as estratégias de implementação do plano. Agora, é preciso fazer um plano de implementação, que é a fase em que estamos.
Recebemos as contribuições da sociedade, estamos sistematizando e, até outubro, teremos o plano de implementação pronto com metas, prazos de curto, médio e longo prazo. Estamos trabalhando um mecanismo de aceleração de financiamento dos programas governamentais e esperamos também, com a oficina científica que tivemos, avançar no que a ciência pode apresentar de conceitos de aceleração de soluções e caminhos.
Estamos, assim, na fase de consolidar a ideia, a concepção e o plano de sua implementação e pretendemos, em 2025 e 2026, acelerar as implementações. Lembrando que, sobretudo, estamos trabalhando questões dessa nova infraestrutura urbana considerando os aspectos ambientais e climáticos. Então, precisamos mobilizar recursos e a adesão de municípios e estados a partir do próximo ano para que esse programa possa ser efetivado.
Como foi essa oficina científica promovida pelo Simaclim, no Recife com pesquisadores especializados no tema ambiental?
A questão importante é: não podemos deixar de ter a ciência na centralidade das soluções. Há quanto tempo a ciência tem anunciado o que estamos vendo materializado nas cidades no dia de hoje? O que se apresenta é que nós vamos ter chuvas e secas intensas, que nós vamos ter aumento de temperatura. Temos praticamente 30 anos de anúncio da ciência sobre essa situação que nós passamos a enfrentar.
A oficina científica que tivemos dá essa luz com base na ciência, na observação, na experimentação desses processos. Tivemos a oportunidade de compartilhar o desejo da execução do programa com mentes que pensam a cidade sustentável. São um conjunto de especialistas e pesquisadores e, com certeza, terão muito a contribuir nessa etapa de implementação do programa.
Essas catástrofes provocadas pelos eventos extremos tornaram o brasileiro mais conscientes sobre as mudanças de climáticas?
Sim. Segundo pesquisa do Instituto Cidades Sustentáveis acerca da percepção da população sobre os principais problemas ambientais, os maiores percentuais de percepção ainda residem na questão da poluição, mas também na questão das poucas áreas verdes, que foi apontado por 11% dos que responderam à pesquisa. Uma pergunta aborda se a população acha que as prefeituras são responsáveis em atender os problemas das alterações climáticas e quais ações governamentais seriam necessárias para que as cidades se adaptassem a essas alterações. Do total, 79% responderam que a responsabilidade recai sobre os governos municipais, e o tema áreas verdes representava 41% das ações necessárias.
Esse dado traz a reflexão da importância do verde na cidade e mostra que as pessoas têm a percepção de que o calor que estamos passando poderá ser reduzido com uma maior vegetação. Compreendem que mais áreas verdes colocam a maior proteção e capacidade de conter inundações.
É também um alerta para os gestores municipais porque o que, muitas vezes, era tido como supérfluo na cidade já está sendo identificado como um dos principais temas em que é preciso investir. Ou seja: criar mais espaços com vegetação. Acredito que essa percepção da nossa população seja muito forte nas áreas periféricas onde há um déficit de verde urbano e a necessidade de ampliar, não só habitação ou saneamento, mas também a estrutura vegetal para ajudar a evitar os conflitos climáticos.
Dentro dessa perspectiva de uma cidade verde resiliente, como o senhor avalia o projeto Recife Cidade Parque?
Eu tive a satisfação de ser um dos promotores da iniciativa na época que eu trabalhava na prefeitura na gestão de Geraldo Julio. Na perspectiva do Recife Cidade Parque, o Recife se apresenta como um grande exemplo do que seria uma cidade verde resiliente. É exatamente essa essência: integrar a estrutura verde da cidade, pensar na apropriação dos espaços verdes e livres, remodelando aí a relação cultural e ambiental do recifense com a cidade.
Projetos como este são importantes, pois não podemos tardar em fazer essa nova revolução ambiental em nossa cidade. Isso é preciso por uma questão clara de dar a maior capacidade de adaptabilidade às mudanças climáticas e retomar o princípio da existência humana que é a convivência relacional com a biodiversidade. Teremos que suprir nossas deficiências de saneamento básico, de habitabilidade, juntamente com a nossas deficiências do verde urbano nas nossas cidades para trazer respostas aos problemas.
A ausência de saneamento é uma questão dos Séculos 19 e 20 que vamos ter que nos impor como desafio para solucioná-la, a partir de infraestruturas e tecnologias do Século 21. Essa a mudança de mentalidade tem que acontecer: não utilizar serviço cinza para resolver esse problema do Século 19, temos que recorrer a serviços verdes e, com isso, atenderemos a concepção do novo século diante da situação climática. Acho que é essa mudança de chave da compreensão de que a gente vai precisar para transformar cidades. A qualidade ambiental tem que ser percebida como um serviço público a ser oferecido a todos os cidadãos da cidade, não somente das áreas privilegiadas.
Nós temos nossos compromissos a serem elencados de até 2030 cumprir os 17 ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), temos os compromissos de reduzir as emissões nas cidades até 2050 e de nos adaptar ao contexto climático não mais daqui até 2030, 2040 e 2050, mas agora. Temos que imediatamente começar e a cada passo que a gente dá, aumentamos essa capacidade de sermos resilientes. E para tudo isso é importante que as pessoas estejam atentas a participar dessa mudança dentro do ponto de vista democrático para garantir que nossos gestores, nossos legisladores, estejam comprometidos com esta defesa. Então, a cidadania vai precisar ser exercida não só no voto mas, também, com a participação e o acompanhamento nessa mudança de pensamento. Acho que é isso que a gente precisa trabalhar.