Daniel Uchôa, professor de história, fala da sua pesquisa sobre a icônica via da Zonal Sul do Recife que fez parte de um projeto de modernidade do governador Sérgio Loreto, ajudou a introduzir hábitos como tomar banho de mar e cuja praia abrigou cabos de telégrafos e foi até campo de pouso para o correio aéreo.
O professor de história Daniel Uchôa e o historiador Paulo Bittencourt andavam certo dia pela Av. Boa Viagem e se depararam com uma placa, um tanto escondida e desgastada, que informava que a icônica via da zona sul do Recife foi inaugurada em 1924. Surpresos, eles se deram conta que neste ano ela chega ao seu centenário. A descoberta os levou a partirem para a empreitada de realizar a pesquisa 100 Anos da Avenida Boa Viagem.
Um projeto que se justifica, segundo Uchôa, porque quando o governador Sérgio Loreto decidiu inaugurar a avenida, não se tratava de construir mais uma simples pista. A ideia era ampliar a expansão urbana da cidade para a Zona Sul e implantar uma cultura de modernidade no Recife, tão em voga no mundo naqueles loucos anos 20.
Nesta conversa com Cláudia Santos, Uchôa conta que essa busca por modernização toma forma por meio da arquitetura inovadora dos imóveis construídos e também pela popularização de novos hábitos como tomar banho de mar. Incentivar a comemoração do centenário da Avenida Boa Viagem, segundo o professor de história, é também uma oportunidade para a reflexão sobre problemas atuais como o esvaziamento que a via sofreu ao longo dos anos, principalmente à noite, quando não exibe a mesma efervescência de outras orlas marítimas do País.
Como começou esse projeto?
A pesquisa começou de uma lembrança minha de infância: sempre que eu ia à praia, via os cabos de telégrafo que ficavam visíveis em Boa Viagem na maré baixa. O Recife foi a cidade que sediou a chegada dos cabos por meio de uma companhia inglesa. A ligação está completando 150 anos, é uma data histórica, porque naquele momento representou um avanço tecnológico incrível na comunicação entre o Brasil e o mundo. No calçadão havia uma placa que dizia: “neste local o Brasil se encontra com a Europa através dos cabos”.
Eu e Paulo Bittencourt, historiador que também participa da pesquisa, saímos um dia na busca pelo local onde estavam os cabos e constatamos que a placa não estava mais lá. Mas nos deparamos com uma outra placa na frente do edifício Lula Cardoso Ayres que testemunhava que a Av. Boa Viagem foi projetada e inaugurada por Sergio Loreto em 1924. Pensei: “a avenida é tão antiga assim? Está perto do centenário. Será que conseguimos fazer um resgate de fotografias antigas dessa avenida para postar nas redes sociais?” Acabamos descobrindo muitas informações. Assim, de maneira inesperada, começamos uma pesquisa historiográfica sobre os 100 anos da Avenida Boa Viagem.
Descobrimos, por exemplo, que quando termina a Primeira Guerra Mundial sobram muitos materiais bélicos, inclusive aviões, que eram muito rudimentares, mas que voavam distâncias curtas. Um industrial de Toulouse, na França, adquire um lote dessas aeronaves e decide utilizá-las na distribuição de cartas do correio. Antes as cartas eram enviadas por outros meios, menos o avião. Eles atravessavam o Oceano Atlântico de navio, a carta demorava um mês ou mais para chegar em Natal (RN), porque o a reta mais curta entre de Dacar no Senegal e Brasil. Lá os aviões pegavam os malotes e distribuíam na costa brasileira até Buenos Aires. Pousavam na praia do Pina. Só que em alguns momentos a areia estava muito fofa e os aviões atolavam.
Quem são esses autores e sobre o que escreveram?
Uma delas é Rita Barbosa, historiadora da UFPE e da Fundação Joaquim Nabuco. Ela trouxe um dos melhores textos, com mais detalhes do ponto de vista histórico, da Avenida Boa Viagem e do contexto em que se deu essa construção. Depois encontramos Antônio Paulo Rezende, professor de história da UFPE, que trouxe um olhar mais sociológico sobre os anos 1920, época em que surge a obra da avenida.
Quando unimos a compreensão sociológica de Antônio Paulo Rezende e de outros textos com a cronologia trazida por Rita Barbosa, entendemos que não estávamos falando de uma pista e, sim, de um caminho que foi aberto para a ocupação do bairro de Boa Viagem que surge a partir dela. Primeiro surge a Avenida Boa Viagem, depois a ocupação da Navegantes, em seguida a Conselheiro Aguiar, depois a Domingos Ferreira. A partir dos anos 1960, acontece a ocupação de outras áreas e ruas.
E o que impulsionou essa ocupação? O que levou o governo a querer ocupar essa parte da praia?
O governador da época era Sérgio Loreto. Ele era tido como conservador, mas compreendeu que os anos 20, os anos loucos como eram chamados, era um momento de virada histórica. Com a chegada dos automóveis, da comunicação, ele percebeu que era preciso um marco que representasse a cara do Recife moderno em oposição ao Recife colonial arcaico, dos coronéis da cultura açucareira. E as obras cumprem essa missão. Na época, a circulação na cidade era entre o Recife Antigo, passando pelo Centro, Praça do Derby, trechos da Zona Norte, Zona Oeste, Várzea. Então Sérgio Loreto cria essa ligação ao novo território, e não era qualquer território, era um balneário, numa época em que o banho de mar era uma nova moda do Recife.
Na virada do Século 19 para o 20, o recifense frequentava a Praia dos Milagres em Olinda ou as extintas Praia de Santa Rita e Praia do Brum, porque eram acessíveis, onde era possível chegar a pé ou de ônibus. Na década de 20, surge a ideia de alargar o mapa e dar ao recifense esse novo espaço marinho. Então, criam- -se três obras: a Ponte do Pina, a Avenida de Ligação, que hoje é a Herculano Bandeira, e a Avenida Boa Viagem. Houve críticas de Manuel Borba, o engenheiro da época, opositor a Sérgio Loreto, que dizia nos jornais: “essa é uma obra faraônica, desnecessária, dinheiro público sendo gasto sem motivo”.
Apesar das críticas, as obras cumpriram a missão de democratizar o espaço dando oportunidade de um recifense comum ir à Praia de Boa Viagem. Cria-se a infraestrutura e a Prefeitura do Recife começa a estimular a cultura de ir à praia, com mecanismos midiáticos como a revista O Veranista e festivais como Garota Verão. As pessoas têm a oportunidade de chegar lá facilmente com linhas de transporte público que faziam o percurso do Pina até a igrejinha de Boa Viagem, que já estava ali desde 1707, mas era só uma capela construída pelo Padre Leandro Camelo que recebeu o terreno de doação.
E o que havia ali? Uma aldeia de pescadores?
Era um povoado de pescadores, uma aldeia caiçara, de pessoas que tinham uma relação com o mar. Por muito tempo, o território de Boa Viagem foi renegado pelos donos de engenhos, porque o interesse era em lugares onde se podia plantar cana e perto do mar não era bom para o plantio. Após o declínio da cana-de-açúcar, surge o desejo de diversificar a renda. Então esse território, que não tinha olhares de interesse por muito tempo, recebe um novo olhar com a chegada da avenida. Antes, só pessoas abastadas podiam curtir a praia.
Era tida como uma área pitoresca, onde a elite costumava alugar as cabanas de palha dos pescadores para veranear. A historiadora Rita Barbosa diz que uma família que morava na Rua Amélia, por exemplo, em uma casa espaçosa que dispunha de vários serviços e privilégios, achava o máximo passar 30 dias numa casa de palha, sem energia e água encanada, porque achava que isso era ser moderno. Era uma visão elitista de dizer “olhe o que é o bom da vida”. Também havia cassinos como o Porta del Mar, que dava grandes festas à noite, mas só para essa elite aristocrática. O trabalhador não tinha acesso a Boa Viagem antes da avenida, porque era um local em que não se chegava facilmente.
A Avenida Boa Viagem foi essencial nessa mudança da cultura no território?
Sim. Aí muda tudo, porque antes o local era utilizado por uma elite recifense e, então, as pessoas começam a ir à praia tomar banho de mar. Como havia pouca infraestrutura, levava-se todo um piquenique. Há relatos de grandes empresas como a Família Lundgren, das indústrias de tecelagem de Paulista, que ofertava, aos seus trabalhadores, caravanas gratuitas para Boa Viagem, com piquenique, sorteio, premiação, eventos esportivos. Tudo isso estimulava aquela cultura que surgia.
E assim a praia virou a agenda do fim de semana dos recifenses, com ônibus chegando lotados, imprensa noticiando reclamações sobre uso de roupas de banho no transporte público, sugerindo a proibição do uso de sungas brancas e liberando apenas as de crochê que eram mais espessas. Veja só, ainda hoje, quem mora em Boa Viagem tem preferência por roupas mais leves. É justamente essa relação com o mar que vai moldando esse novo recifense e, nos anos 1930, começa a surgir também a necessidade de uma estrutura maior de acolhimento como bares e restaurantes e as primeiras casas de veraneio, onde as pessoas vinham passar a virada do ano e ficavam até março.
E como foi essa transformação da arquitetura, da paisagem, no bairro?
As pessoas começam a morar em Boa Viagem e logo as casas simples viram grandes palacetes, a exemplo do Castelinho, da Casa Navio. A paisagem, que começou com os coqueiros, depois com casas e palacetes, passa para uma terceira fase, na década de 1950, com a derrubada dessas casas para se transformarem em edifícios. O ar de modernidade na arquitetura começa a marcar o território do Recife e três obras iniciam a construção de prédios na Avenida Boa Viagem: o Edifício Acaiaca, o Hotel Boa Viagem e o Edifício Holiday. Esses três mudaram a paisagem e trouxeram a possibilidade de morar num apartamento compacto de frente para o mar.
Nos anos 1960 e 1970, as obras continuam a todo vapor com a chegada do edifício Transatlântico, que é um grande condomínio com quase 300 apartamentos, e vários outros que vão surgindo. Nos anos 1980, a grande obra que chega ao bairro é o Shopping Recife, e começa a disputar com a praia esse espaço de lazer. Existe um movimento arquitetônico de aquartelamento, de levar as pessoas para lugares fechados, mesmo com o sol e o mar sendo ofertados lá fora.
Esses recortes marcadores de tempo mostram como o lugar vai se ressignificando. Hoje, nessa quarta geração paisagista, a Avenida Boa Viagem está tomada por residências, sem que houvesse uma maestria de permitir o uso residencial ao lado, por exemplo, de ações com um olhar mais contemplativo, mais coletivo. A avenida tinha grandes restaurantes onde era possível contemplar o mar. Hoje você só faz isso da areia, sem muita infraestrutura. Não houve um plano diretor que segurasse a construção dos edifícios.
Em outras cidades litorâneas é possível ver esse multiuso da orla, residencial, comercial e de lazer. Por que esse modelo não vingou em Boa Viagem?
No início dos anos 2000, a Avenida Boa Viagem tinha uma orla que era movimentada à noite porque contava com a presença de carroças de espetinhos no estacionamento. As pessoas costumavam comprar o lanche e ficar sentadas no calçadão tomando uma cervejinha. Isso movimentava a área. Depois da nova reformulação, na gestão do prefeito João Paulo, esse comércio foi retirado, ampliou-se o calçadão, ficou excelente, criou-se a ciclofaixa, mas não sei se tirar aquela vocação comercial da avenida foi uma boa ideia. Hoje, temos uma orla onde só se vende água de coco à noite e um impedimento para os vendedores trabalharem com mesas, cadeiras e música ao vivo.
É uma orla desinteressante. Agora, neste momento dos 100 anos, estamos vendo uma avenida começando a ser objeto de novos olhares da gestão municipal. A prefeitura vem implementando o projeto Orla, do Governo Federal, e está propondo o remodelo da Avenida Boa Viagem, primeiro ampliando seus quase 7 km para 8 km com a adição daquele trecho da nova orla de Brasília Teimosa.
A chegada do aeroporto que é um outro grande marco da modernidade. Ele trouxe mudanças para o bairro?
Sim. O aeroporto vem de uma ocupação ligada ao uso militar. Em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, a Aeronáutica Brasileira é criada, e o Recife vira uma dessas grandes capitais onde foram criados equipamentos militares, como o Hospital da Aeronáutica, o aeroporto, o Cindacta (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo), o comando aéreo regional (Comar), as vilas da Aeronáutica e o parque de manutenções do Ibura. Esses equipamentos trazem muitos militares e civis para a região Sul de Boa Viagem, principalmente Setúbal.
Como os ataques de tubarão repercutiram na história da ocupação da orla?
Isso é um dos fatores que faz com que a orla de Boa Viagem esteja abandonada em termos de política pública. Existem lugares do mundo, na Austrália ou no Havaí, onde há a presença desses animais sem aniquilar uma vida de praia. Aqui hoje não se discute o tubarão. Ele não precisa ser um ponto negativo, poderia ser utilizado para o turismo. Não temos, em Boa Viagem, um oceanário para falar do tubarão.
Não há estudos de grande impacto para compreender se há a possibilidade de criar áreas seguras para o banho. Ou se o tubarão está lá, se existe uma contrapartida, uma compensação. Não existe agenda cultural para a Avenida Boa Viagem. E qual é a proposta para os próximos 100 anos? Quais são os desafios para evitar que tenhamos as mesmas dificuldades? As mudanças climáticas são o grande desafio hoje. Por isso, com essa pesquisa, estamos trazendo uma agenda de discussão. Olhamos para o passado e para frente. Sem essa consciência histórica não é possível discutir a Avenida Boa Viagem e o Recife.
Fale um pouco mais dessa pesquisa. Como vem sendo construída?
Trazemos a discussão do processo social e histórico da Avenida Boa Viagem. Neste importante marco do centenário, é preciso discutir como serão os próximos 100 anos. É uma chance de reescrever esse futuro. Quando se fala de Boa Viagem, da avenida principalmente, tende-se a pensar em uma elite abastada que mora nos prédios, a pesquisa mostra que a avenida é mais do que um prédio. O vendedor de caldinho é Avenida Boa Viagem, o pessoal do cooper, o entregador de água mineral que mora na favela do Entra Apulso, ou em Brasília Teimosa, na Borborema, essas pessoas estão integradas na Avenida Boa Viagem, mas são invisíveis. Queremos mostrar que a Avenida Boa Viagem tem muitas outras coisas, inclusive banhistas, que frequentam a praia de maneira seccionada, de acordo com a oferta de linhas de ônibus que alimentam o bairro.
É uma pesquisa que vem sendo construída há quatro anos. Começou nas redes sociais e gerou um documento que ainda estamos estudando qual melhor formato para lançar, se um livro ou algo de curta distribuição com leitura mais rápida. Agora estamos transformando a pesquisa em um documentário que vai começar a ser gravado em julho e em uma exposição que, provavelmente, vai acontecer no Shopping Recife e na Galeria Janete Costa no Parque Dona Lindu. A ideia é transformar essa exposição em itinerante para que ela circule em outras cidades.
Há uma data prevista para a exposição?
Está prevista para este ano mas ainda não há uma data específica porque está sendo construída e estamos buscando apoiadores que auxiliem nos custos. Construímos um projeto de contrapartida publicitária para esses apoiadores e temos diferentes formas de participação. Esse time de apoiadores já começou a ser formado e, atualmente, temos o patrocínio da Construtora Santo Antônio, do Shopping Recife que também está se aproximando, e a Prefeitura do Recife já sinalizou parceria.