*Por Paulo Caldas
O livreiro Tarcísio Pereira, o Senhor 7, foi quem abriu os espaços para o surgimento de movimentos literários, novos escritores e leitores no entorno da sua Livro 7, por mais de 20 anos.
Amante dos livros, depois de trabalhar na livraria Imperatriz sobre a orientação do livreiro Jacob Bernstein, Tarcísio montou uma lojinha apertadinha no térreo edifício Amaraji, na Rua 7 de setembro, e mais tarde, se instalou do outro lado da rua, num casarão entre a Rua do Riachuelo e Avenida Conde da Boa Vista.
Aquele seria o primeiro passo para a eclosão dos movimentos e união de leitores com escritores.
A Livro 7 se impôs como ponto de encontro e base de apoio para efervescência reprimida da literatura pernambucana naquela época.
O fenômeno tomou impulso quando levado pela ousadia, Tarciso Pereira abraçou a ideia de transformar a apertada lojinha do casarão numa “pan-livraria”, como diria tempos depois o sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, ocupando 1.200 metros quadrados de um galpão onde funcionara uma oficina mecânica, acho que São Cristóvão, e ali conseguiu abrigar mais de 70 mil livros, um dado histórico para uma livraria aqui entre nós paraíbas.
0 caráter empreendedor do Mister 7 foi além da prática das vendas com bom atendimento e ele transformou a livraria no lugar de eventos literários, promovendo lançamentos de livros de tanto de notáveis; Gilberto Freyre, Miguel Arraes, Sidney Sheldon quanto de neófitos, numa média de dois eventos por semana.
Naquele clima, de forma espontânea, foi criada a Calçademia da Livro 7. Esperto, Tarcísio colocou dois bancos de jardim na calçada e o resultado foram reuniões informais para a troca de livros, comentários sobre o mundo da literatura, a vida dos outros, poetas mostrando versos, lorotas, putaria, galanteios às comerciárias do começo da noite, entremeados por críticas ao governo e discussões sobre quem é melhor do que quem.
A Calçademia reuniu artistas plásticos, poetas, leitores, jornalistas e curiosos. A cada fim de tarde, parecia até um compromisso formal o simples fato de estar ali, naquele lugar, naquela hora.
O convívio daquele pessoal se estendia por todo o ano, sobretudo no Carnaval. Era a hora da Troça Carnavalesca Nós Sofre Mas Nós Goza, quando se destacava a irreverência das fantasias, críticas bem-humoradas, participação dos artistas das letras em meio à cidade, ao povão… Na semana pré-carnavalesca, o próprio Tarcísio botava uma escada e subia nos postes para embandeirar a rua.
A primeira vez que fui à saída da troça, a ansiedade me fez chegar na Rua 7 às dez da manhã. Os foliões só apareceram perto de uma da tarde e eu lá contando as horas. Creio que acompanhei o Nós sofre por uma dúzia de anos. Depois, uma multidão de anônimos maior a cada Carnaval me fez recolher antes de ouvir os clarins de Momo.
Minha chegada àquele universo se deu por acaso. Quando em 1979, ao lado do amigo Evaldo Donato terminamos um livro chamado “No tempo do nosso tempo” e estávamos com aquele calhamaço de papéis datilografados e fotos em preto e branco meio enfadadas. Sabendo de nossa angústia em publicar aquele troço, o artista plástico Sílvio Malincônico, meu amigo de pelada, indicou: pergunta a Tarcísio da Livro 7. E funcionou. Perguntei e ele disse.
– Fala com Jaci Bezerra da Edições Pirata.
– Onde encontro ela?
– Jaci, é homem, deve estar aí no barzinho.
Era um barzão. A área externa do casarão repleto de mesas e gente, garçons rodopiando as bandejas, perguntei a um deles quem era o tal Jaci.
– Tá naquela mesa. É o moreno.
Procurei me aproximar umas três vezes, os caras, tinha uns oito, bebiam e falavam, falavam e bebiam. Tomei coragem, pedi licença, contei o caso e a discussão lá, rolando. Aí ele pegou o envelope.
– Vou levar pra dar uma olhada. Depois eu te digo.
– Como lhe acho?
– Aqui ou na Fundação Joaquim Nabuco.
Saí meio desconfiado. Voltei a Malincônico.
– É isso mesmo, Jaci é da Pirata.
A Edições Pirata foi inventada por Jaci Bezerra, um dos mentores da Geração 65, ao lado de Alberto da Cunha Melo, Domingo Alexandre, Zé Luiz de Almeida Melo, Zé Carlos Targino, Juhareys Correya, Angelo Monteiro, José Mario Rodrigues, Marcelo Mário Melo e a turma da Fundação Joaquim Nabuco com Arnaldo Tobias e as meninas escritoras Vernaide Wanderley, Myriam Brindeiro, Eugênia Menezes, Nilza Lisboa, além de Tereza Tenório, Lourdes Hortas, teve mais gente, mas não lembro agora.
A palavra de ordem era que o escritor deveria produzir seu próprio livro num terceiro expediente, e tome trabalho: corrigir texto, colecionar páginas impressas ao redor de uma mesa gigante, passar cola, serrar lombada, tudo isso na casa de Myriam Brindeiro, aqui em Casa Forte.
A Pirata lançou muita gente; o critério era: quem julga é o leitor, e assim fez uma revolução na literatura da época, com os pilares apoiados na Geração 65. Este grupo contava com a simpatia do poeta e crítico literário César Leal, editor do caderno de literatura do Diario de Pernambuco. Os piratas faziam lançamentos na rua, na escadaria da Faculdade de Direito, na Ponte da Boa Vista, coisa séria, original, sem porralouquice.
Em 1982, 1983, criaram o selo Piratinha, com livrinhos voltados para crianças com festas de lançamento nas praças do Derby e de Casa Forte, quando participei com duas historinhas bestas, criadas pra menino dormir.
A Pirata também contava com o aconchego da poetisa Celina Holanda, em encontros e saraus no seu apartamento ali no Derby.
O nível elevado da produção dos poetas, a divulgação na imprensa fez a Geração 65 inspirar seguidores e motivou o surgimento de outros grupos no mesmo cenário: o território compreendido entre o Beco da Fome, ruela espremida entre o Edifício Pirapama e a Lojas Americanas, em frente da banca de Manuel Português, o casarão onde funcionou também a Disco 7, loja especializada em música boa, a Livro 7, o trailer de Anselmo, o bar Calabouço (sucessor do Bier House), a lanchonete Cascatinha, o fiteiro de Biu e a livraria Síntese, esquina da Rua 7 e a Riachuelo.
Foi na Síntese que surgiram os recitais do grupo Escritores Independentes de Pernambuco, uma turma meio rebelde, um tanto underground, mas que lançou gente boa, despojada de requintes e de uma garra admirável. Assim surgiu, Eduardo Martins, Cida Pedrosa, Hector Pelizze – um poeta argentino perdido na Mauriceia desvairada, Fátima Ferreira, Eickson Luna, Jorge Lopes e o irreverente Chico Espinhara.
Entre 1984 ou 1985, surgiu a Edições Bagaço, criada por um grupo de palmarenses – vindos nas cheias do Rio Una, que seguiu os passos da Pirata, então enferma, com o propósito de lançar novos e resgatar talentos que mantinham escritos ocultos na gaveta.
No âmbito da Livro 7, participei da Calçademia, das agendas anuais editadas por Tarcísio, nas quais uma página era ocupada por um texto dos escritores daqui e a outra com espaço para a pessoa anotar coisas. Acho que as agendas circularam de 83 a 88.
Escrevi um texto num livreto comemorativo aos 15 anos da Livro 7. “Minha namorada de todo dia’’ comparando a livraria com uma menina de 15 anos, com a qual mantinha relação amorosa.
Apaguei um incêndio na livraria: não por coragem, mas por instinto. Vinha chegando num final de tarde, quando houve um curto circuito na instalação de umas divisórias lá no terraço, junto do estacionamento; quando vi o fogo pegando na madeira, parti pra cima e com as mãos comecei a bater nas chamas, até que a tomada de corrente desligou. Herói por alguns minutos.
Apareci na TV. Uma noite, em 88 ou 89, a Manchete chegou para fazer uma matéria na livraria. O repórter quis entrevistar um autor e Tarciso mandou o empregado Da Vinci chamar qualquer escritor que estivesse bebendo no Calabouço. Sobrou pra mim. Peguei um exemplar meu nas prateleiras e menti o que pude.
A Livro 7 e o Plano Collor. No dia do famigerado anúncio do bloqueio da poupança, cheguei na livraria e subi preocupado para o escritório:
– Sete, e teu dinheiro?
– Está todo aqui.
E apontou para o interior da livraria. Todo dinheiro dele estava investido em livros. Quem poderia confiscar?
Fatos retidos na memória. Para concluir essa conversa comprida, vou contar uns “causos”.
Numa noitada no Beco da Fome, na discussão sobre qualquer coisa, as vozes aumentaram de volume. Alguém incomodado, jogou do primeiro andar uma caixa de sapatos cheia de trecos na cabeça de Jaci Bezerra. Paramos o bate-boca e sobrou pra mim de novo: levei o poeta para o HR com um corte na testa.
Havia um bêbado assíduo do Calabouço, Romerito, que chegava no meio da tarde acompanhado de mulheres da vida fácil e bebiam até umas oito da noite. Aí Carlos, o garçom, ia até o estacionamento, trazia o carro do biriteiro, acomodava o cara no banco do motorista, prendia ele no cinto de segurança e dizia:
– Tá, vai te embora.
Romerito seguia até Olinda, sem qualquer intercorrência. Numa dessas noites, quando o garçom foi aprumar Romerito na direção, uma das acompanhantes quis se alojar no banco da frente, mas o bebo protestou:
– Você não, mulher feia vai atrás.
Esse garçom tinha a vantagem de espantar pedintes chatos e bêbados inconvenientes. Quando uma dessas figuras queria grudar na nossa mesa, ele vinha em socorro com a flanela de limpar as mesas e tome lapada no intruso.
Mas o momento de grosseria maior de Carlos foi outro. Uma vez um flanelinha chamado Lebre, vindo da Conde da Boa Vista, parou na frente do bar e gritou:
– Carlos, fulano deu uma porrada na mulher ali na esquina.
E o garçom disparou:
– Se foi na mulher dele, tá tudo certo.
O poeta Chico Espinhara tinha umas tiradas inusitadas. Estava eu sozinho, curtindo um chope com amendoim, quando surge Espinhara acompanhado de dois desconhecidos. Parou, olhou pra mim e disparou:
– Paulo Caldas, paga três chopes pra mim.
O terreno em frente à Livro 7, onde ficava o trailer-bar de Anselmo, foi comprado pela Igreja Universal. Num lançamento do jornal Papa Figo, fruto do deboche impresso de Bione, Teles e Ral, um grupo de evangélicos veio pregar a palavra de Deus. Naturalmente, os cervejeiros levaram a pregação na troça. Diante do desdém, uma das irmãs foi possuída por um demônio de plantão.
A reação do pastor foi gritar:
– Sai satanás!
E os bêbados retrucavam: Fica satanás.
*Paulo Caldas é escritor