Para resolver os problemas dessa população, que aumentou após a pandemia, gestores públicos, sociedade civil e a iniciativa privada acreditam serem necessárias iniciativas articuladas entre os diversos atores sociais.
*Por Rafael Dantas
Robson Pessoa, 49 anos, morou 12 anos nas ruas da capital pernambucana. Com o Auxílio Acolhida, um benefício temporário para pessoas em vulnerabilidade social, ele passou a morar de aluguel. Apesar de ter se formado na área de tecnologia da informação, ele não conseguiu emprego e trabalha como entregador de comida por aplicativos.
Hoje ele atua como coordenador local do MNPR (Movimento Nacional da População de Rua) e como representante do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para População em Situação de Rua. Robson entende na pele as dores de pelo menos 1,8 mil pessoas que dormem nas praças, calçadas, debaixo das marquises ou dependendo de abrigos no Recife. Número, inclusive, que ele considera estar subestimado.
“O movimento participou desta contagem, mas acreditamos que a quantidade de pessoas nas ruas é muito maior. Poucas crianças e adolescentes foram contabilizados e sabemos que são muitos que vivem nas ruas”, avalia Robson. O censo foi realizado pelo Instituto Menino Miguel, da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), em parceria com a Prefeitura do Recife.
Apesar de trabalhar como entregador, ter se formado e representar politicamente essa população, Robson considera que permanece em vulnerabilidade de moradia. Sonhando com uma bike elétrica para conseguir fazer suas entregas com menos sofrimento, ele acredita que ao ter a suspensão do Auxílio Acolhida, o risco de voltar às ruas é real.
De acordo com a secretária de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas do Recife, Ana Rita Suassuna, dessa população vulnerável, 1.443 pessoas estão nas ruas e as demais em equipamentos de acolhimento. Apesar de combater o problema localmente, ela destaca que se trata de uma agenda que está bem além das fronteiras da cidade.
“A problemática urbana do crescimento da população em situação de rua é mundial e não encontra barreiras econômicas nos países dos mais diversos extratos de PIB. Estudos realizados pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais, apontam para um número de cerca de 300.868 brasileiros em situação de rua em todo o Brasil”.
Há recortes de gênero e de raça bem definidos dentro da população de rua recifense. Os homens representam 76%; os pretos e pardos somados resultam em 81% desse grupo. “Os conflitos familiares, uso prejudicial de álcool e de de drogas ilícitas, perda de moradia e de trabalho estão entre as causas que levam cidadãos e cidadãs à situação de rua na capital pernambucana”, afirmou Ana Suassuna, baseada no censo.
Para metade dos entrevistados, as desavenças com os parentes são o principal motivo que os levam a abandonar suas casas. O envolvimento com drogas ilícitas foi apontado por 25% como a causa central, enquanto que a perda da moradia ou do emprego foi mencionada por cerca de 20% das pessoas. Já o uso prejudicial de álcool foi citado por 15% dos participantes do censo.
As vozes de Robson, de Ana e das entidades que atuam na as sistência aos moradores de rua e dos representantes do poder judiciário e do Ministério Público se uniram na semana passada no seminário População em Situação de Rua no Centro do Recife promovido pela CDL Recife (Câmara dos Dirigentes Lojistas do Recife). A entidade, que discute ativamente diversos problemas que envolvem o Centro da cidade, atentou para o agravamento dessa situação após a pandemia. O Censo, por exemplo, identifi cou um crescimento de 30% em relação ao último levantamento, que tinha sido feito antes da crise sanitária.
Encontrar alternativas de forma integrada para reverter esse qua dro foi a motivação da CDL Recife de promover, junto com a OAB-PE, o seminário. Paulo Monteiro, diretor institucional da CDL Recife, acre dita que a reversão desse cenário passa pela união e coordenação de diversos atores envolvidos na pauta. Ele propõe que instituições como a polícia, a igreja, o Governo do Estado, a Prefeitura do Re cife, o Poder Judiciário e o Ministério Público se juntem em um esforço conjunto para enfrentar o problema. Segundo ele, “não é uma questão de polícia, mas também não é uma questão só social, é uma questão que envolve todos esses atores”, destacan do a necessidade de uma abordagem integrada para lidar com a complexidade da situação.
A falta de articulação atual entre as entidades interessadas em apoiar as populações de rua gera, inclusive, desperdício de refeições doadas, segundo o diretor da CDL. A ausência de comunicação das diferentes instituições resulta na distribuição de comida por grupos distintos em um mesmo local com diferença de uma ou duas horas.
AUMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO DE RUA
Mais que o crescimento das pessoas que vivem nas ruas e das dificuldades de articulação entre os grupos de assistência, a violência urbana é um fator que escalou no último mês, contabilizando inclusive assassinatos. “Em 20 dias perdemos quatro crianças e adolescentes, entre a Praça Maciel Pinheiro e a Praça da Independência. Isso apenas no Centro do Recife”, lamentou o coordena dor do MNPR na capital pernambucana, Robson Pessoa.
O avanço do crime organizado nos edifícios ocupados no Centro do Recife é um dos motivos que tem tornado essa população de rua ainda mais vulnerável, segundo Paulo Monteiro. “O narcotráfico se infiltrou nessas ocupações e eles passaram, inclusive, a ameaçar a integridade física desse povo, que já vive em uma condição desumana”.
Em outras palavras, a vulnerabilidade alimentar, a falta de mo adia e de diversos outros direitos humanos negados foram somados, nas últimas semanas, ao risco de morte por estar numa calçada ou em um banco de praça.
Os problemas de segurança, que têm escalado contra essa população ao patamar mais grave que são os homicídios, surgiram há bastante tempo nos levantamentos feitos junto às pessoas que circulam pelo Centro do Recife. Uma sondagem realizada pela CDL Recife em 2017 identificou que 88,9% das pessoas que circulam na região central se sentiam inseguras. O problema que há sete anos afugentava os consumidores do comércio dessa área da cidade, hoje está ceifando também a vida dos moradores de rua.
Sobre esse aspecto, Ana Suassuna lembra que, em diversas ocasiões, as pessoas em situação de rua são colocadas no lugar de protagonistas de episódios violentos e pouco se fala sobre a violência extrema à qual estão expostas. “Por vezes, essas violências acabam sendo silenciadas ou não recebem a mesma projeção quando ocorrem as denúncias de abusos sofridos. A população de rua é “uma fração” dos tantos recortes populacionais que circulam pelo nosso território, por vezes compartilhando estratégias de sobrevivência com pessoas domiciliadas, mas que estão nas vias públicas em busca de doações diversas e/ou na prática de subempregos”.
Ela explica que os episódios fatais que ocorreram no último mês envolveram jovens com histórico de “uso desorganizado de substâncias psicoativas e com vinculação familiar parcialmente preservada, mas que viviam em um contexto vulnerável, reforçando a necessidade de ações preventivas em parceria com outras políticas, como as de saúde, educação, habitação e qualificação”.
A secretária destaca ser necessário ter cautela com argumentos falaciosos que orbitam as discussões sobre a população em situação de rua, pois podem gerar mais preconceito do que soluções. “Essa perspectiva pode flertar com conceitos higienistas e aporofóbicos (medo, rejeição ou aversão às pessoas pobres ou em situação de vulnerabilidade) que em geral costumam mascarar a problemática vinculada ao assunto e não pavimentam caminhos de superação. Devemos combater o desconhecimento sobre o tema, divulgar nossas ações e promover mais espaços ampliados de discussões, na expectativa de fomentar caminhos de convivência que não violem os direitos de quem quer que seja”.
AÇÕES EM ANDAMENTO
Ana Suassuna explica que desde o seu lançamento em 2021, o Pro grama Recife Acolhe tem se destacado como uma iniciativa para enfrentar os desafios da população em situação de rua. O programa visando a expandir e fortalecer as ações socioassistenciais da Prefeitura do Recife, promovendo a execução de novos projetos nas áreas de moradia, saúde, segurança alimentar, educação, empregabilidade e renda. Entre os investimentos está a criação de novos centros de acolhimento e a ampliação de serviços de saúde e alimentação.
Até setembro de 2024, mais de 70% das ações planejadas no lançamento do Programa Recife Acolhe foram concluídas. Um dos esforços principais foi a inauguração de novos Centros Pop (unidades de atendimento que servem como pontos de acesso a serviços básicos como banho, guarda de pertences e encaminhamentos a outras redes de apoio) e a ampliação dos serviços de saúde e alimentação.
Ela também registrou a criação de um Centro Popinho para crianças e adolescentes e a ampliação da Cozinha Comunitária de Gurupé, como exemplos de como o programa tem ampliado a oferta de serviços. Outra frente é o investimento em capacitação profissional e a atuação para reinserção no mercado de trabalho, com 26 indivíduos já contratados pela prefeitura.
Outra ação em andamento é o Consultório na Rua. Trata-se de uma política pública do Ministério da Saúde que foi implantada pela Prefeitura do Recife em 2014, a princípio nos Distritos Sanitários I e VI por terem mais pessoas em condições de vulnerabilidade e com os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados. “Atualmente, esse programa está presente nos distritos I, IV, V e VI. O objetivo é ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde. As atividades são desenvolvidas de forma itinerante e, quando necessário, em parceria com as equipes das unidades da Atenção Básica do território”, afirmou a coordenadora do programa, Bárbara Castro. Nessa política, a coordenadora explica que a Secretaria de Saúde do Recife conta com quatro equipes multidisciplinares, composta por agentes sociais, assistentes sociais, enfermeiras, técnicas de enfermagem, médicas e psicólogas.
SOLUÇÕES EM CONSTRUÇÃO
Ana Suassuna considera que o Recife vivencia a necessidade de obtenção de mais recursos para a ampliação e fortalecimento da rede socioassistencial que já existe, custeada, em sua maior parte, pelos fundos do tesouro municipal. “As estratégias de criação de frentes de discussão e atuação compostas por múltiplas secreta rias são um dos caminhos assumidos por esta gestão para tirarmos a intersetorialidade dos cadernos teóricos e conseguirmos diluir os obstáculos encontrados para a garantia de direitos em favor da população em situação de rua”, afirmou.
Ela destaca que há, historicamente, a necessidade de fortalecer as estratégias de retaguarda da Região Metropolitana do Recife e de todo o Estado. “A fragilidade ou a ausência das redes locais provocam o fluxo migratório para a capital, e precisamos entender como estão nossos vizinhos e de que forma podemos com partilhar nossas experiências. Não somos assistencialistas, nossa bandeira é a garantia de direitos e desta forma alcançar a construção de uma realidade mais digna para quem está no extremo da vulnerabilidade social” afirmou Ana Suassuna. A preocupação destacada pela secretária é para o fato de o Recife receber pessoas de vulnerabilidade social de outras cidades da RMR, do interior e até mesmo de outros Estados.
Durante os encontros com os candidatos à Prefeitura do Recife promovidos pela CDL Recife, o consultor Francisco Cunha apresentou a proposição da entidade que foi elaborada a partir do seminário População em Situação de Rua no Centro do Recife com os players que atuam na proteção das pessoas em situação de rua. “Uma das propostas da CDL aos prefeituráveis é avançar na política de acolhimento à população em situação de rua do Centro da cidade, considerando cada caso individualmente, com estreita articulação dos agentes envolvidos, ordenamento da distribuição de alimentos e redobrado esforço de preservação da qualidade dos espaços públicos, de modo a que seja possível restaurar a plena habitabilidade da região”.
Uma das propostas centrais de Paulo Monteiro é organizar melhor a doação de alimentos para os moradores de rua. Ele sugere que, em vez de doações aleatórias diretamente nas ruas, os alimentos sejam encaminhados para cozinhas comunitárias, bancos de alimentos e outras instituições que possam distribuir de forma planejada. Essa abordagem, segundo ele, ajudaria a evitar o desperdício e o uso inadequado dos alimentos, como a troca por substâncias ilícitas. Paulo ressalta a importância da integração dessas doações com a estrutura existente, como as 13 casas de acolhimento e os restaurantes populares já mantidos pela prefeitura.
Além disso, defende a descentralização das ações, levando mais Centros POP e as cozinhas comunitárias para os bairros e comunidades de onde muitos dos moradores de rua se originam. Ele acredita que isso facilitaria o acesso a serviços essenciais e ampliaria o alcance das ações de apoio. “Essas cozinhas comunitárias podem ser no Alto Santa Terezinha, no Coque ou em outros bairros do Recife” propõe, sugerindo que uma distribuição mais estratégica dos recursos poderia atender a uma população maior e reduzir a pressão sobre o Centro da cidade.
Robson Pessoa propõe que a primeira e mais importante medida para melhorar a situação dos moradores de rua é a implementação de políticas habitacionais. Ele sugere que prédios ociosos do Recife sejam transformados em moradias ou projetos sociais voltados para essa população. Segundo ele, “não se pode falar em pessoas de rua, sem falar em habitação, o primeiro passo é tirar a pessoa da calçada, debaixo de uma marquise, e colocar dentro de uma moradia digna.”
Além disso, o líder do movimento destaca a necessidade de unir esforços entre movimentos sociais, entidades da sociedade civil, governos e empresários para enfrentar essa problemática de forma eficaz. Ele acredita que a habitação deve ser o ponto de partida para outras políticas de apoio. “A partir daí precisam vir as demais políticas – saúde, educação, trabalho e renda – e assim poderão ser implementadas com mais eficácia,” afirma Robson.
Ele também sugere que se considere a inclusão social no desenho das políticas culturais. Propõe que iniciativas como o Recentro devem considerar a cultura como uma ferramenta de inclusão, não apenas como lazer. Ainda nessa agenda, ele menciona que os centros de convivência possam oferecer atividades culturais e educativas para crianças e adolescentes em situação de rua, também como forma de inclusão social e redução da vulnerabilidade.
Diante do agravamento da situação dos moradores de rua no Recife, as propostas ressaltam a urgência de políticas mais eficazes e integradas. A combinação de iniciativas que promovam habitação digna, articulação entre diversos atores sociais, e inclusão social por meio da cultura pode ser o caminho para transformar a realidade de milhares de pessoas que vivem em extrema vulnerabilidade. A avaliação de quem está na iniciativa privada, no poder público e de quem já dormiu na rua é de que apenas com um esforço conjunto e coordenado será possível construir um futuro mais justo e humano para essa população.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)