"O Problema Da Violência De Adolescentes Na Internet Não é Responsabilidade Apenas Dos Pais, Mas Da Sociedade" - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
"O problema da violência de adolescentes na internet não é responsabilidade apenas dos pais, mas da sociedade"

Revista algomais

Psicóloga e professora da UPE, Jacqueline Queiroz analisa a série Adolescência – que tem chocado o público – e a realidade de crianças e jovens impactados por conteúdos violentos nas redes sociais. Ela fornece dicas de como os pais podem lidar com essa geração conectada e defende que eles não são os únicos responsáveis pelo cuidado dos filhos, mas toda a sociedade.

“Onde foi que eu errei?”, indaga-se, angustiado, o personagem Eddie Miller (interpretado por Stephen Graham) na minissérie Adolescência. Ele é pai de Jamie (Owen Cooper), que comete um brutal assassinato, influenciado por conteúdos misóginos da internet. Esse desconhecimento sobre por que teria falhado na educação do filho e também sobre o comportamento de Jamie – que ele imaginava estar seguro, sozinho no quarto com seu celular – tem mexido com o público em todo o mundo. A série tornou-se um fenômeno de audiência e é uma das mais assistidas da Netflix em vários países.

adolescencia netflix

Debatida na mídia, nas escolas e em conversas no cotidiano das pessoas, Adolescência abriu caminho para uma reflexão sobre a influência das redes sociais nos valores e na violência dos jovens. Também deixa um grande questionamento em relação a como impedir que a garotada nessa faixa etária esteja vulnerável e exposta a esses corrosivos conteúdos. Questões que foram analisadas pela psicóloga escolar Jacqueline Travassos de Queiroz, professora da Faculdade de Psicologia da UPE (Universidade de Pernambuco) nesta entrevista concedida a Cláudia Santos. 

Ela fala da misoginia dentro e fora das redes sociais e de como estar próximo do adolescente e acompanhar sua atuação na internet.  Ao defender uma visão de que não se deve culpar mães e pais por essa impactante realidade, ela afirma que eles não são os únicos responsáveis pelo comportamento de crianças e adolescentes que é, também, de toda a sociedade, incluindo as big techs, que ganham bilhões de dólares com a propagação do discurso misógino, as escolas, os governantes. Ou seja: Eddie Miller não errou sozinho, mas junto com toda a sociedade.

Há um intenso debate sobre a série Adolescência acerca da violência relacionada às redes sociais digitais. No Brasil, por exemplo, um jovem ateou fogo num morador de rua e transmitiu online. Como a senhora analisa essa influência do uso das redes pelos adolescentes? 

Para entender como as tecnologias influenciam os adolescentes, é preciso alterar a forma de compreender as coisas. Há diferença entre o comportamento da geração que viveu adolescência há 10 anos para os adolescentes de hoje que usam tecnologias, como prints, áudios e compartilhamentos via redes digitais. 

A grande contribuição da série é desmistificar a ideia que se tem de que o assassino ou o violento é o preto, periférico, que está num espaço de negligência parental. A série, pelo contrário, constrói o perfil de assassino em um menino branco, bem-cuidado, mostrando que a tecnologia insere todos nessa possibilidade de violência. Além disso, não acredito na ideia de que são apenas os conteúdos ou as tecnologias que causam violência ou morte, como a da menina de 11 anos que faleceu, em Pernambuco, após usar desodorante spray no rosto, debaixo de um lençol, sob influência de um desses desafios da internet. É claro que o compartilhamento direto influencia, principalmente crianças e adolescentes que estão sozinhos no quarto tendo acesso a esses conteúdos.

Adolescencia 2

Para além do excesso de telas, é importante refletir também sobre o esvaziamento das relações. Essa tecnologia é mais voltada à individualização. O adolescente está sentado, fechado, num quarto onde não é acompanhado, e traz a ideia de segurança para os pais por estar em casa, por ele não estar na rua.  Além disso, os conteúdos compartilhados na internet têm contribuído para a formação desses meninos, conforme a série mostra, em relação ao ódio para contra as meninas. E isso é grave. 

Qual o papel da escola diante desse problema? 

Na verdade, a escola tem contribuído para isso porque temos visto que ela é um espaço de guerra, de disputas na infância, mas principalmente na adolescência, com as pressões relacionadas à profissionalização, em que o adolescente pensa em que carreira seguir. É nessa pedagogia do exame, em que a escola é o lugar que aprova ou reprova, que a escolarização tem contribuído para o adoecimento, para dificultar essas relações. Antes, a importância de estar na escola era vista com mais tranquilidade, era a oportunidade de encontrar os amigos. Hoje, para além das violências no ambiente escolar, a própria escolarização e cobrança de aprovação, de ser melhor do que o outro, tem contribuído para esse adoecimento em geral. Deveríamos trabalhar para inverter essa lógica reforçando a ideia de que a escola seja um espaço de crescimento, de olhar para si, de descobrir seus interesses. 

Uma dica que eu sempre oriento, é que nunca pergunte ao seu filho, depois da prova, qual nota ele vai tirar. O ideal é perguntar se ele teve dúvidas, qual a facilidade ou dificuldade que ele encontrou na avaliação. Porque a escola tem sido um lugar de buscar notas, alcançar metas, principalmente na adolescência, em meio a cobranças do Enem, por exemplo, com uma grande quantidade de conteúdos e uma pressão para tirar 1000 na redação que anula a criatividade. 

REdacao Enem Agencia Brasil

E qual a responsabilidade das big techs?

A responsabilidade com o cuidado é coletiva, e uma dessas responsabilidades é o papel do estado em regular essas empresas. Somos bombardeados por qualquer acesso, qualquer busca. Eu li uma pesquisa em que jovens criaram perfis fakes e, em um deles, uma jovem se colocou na plataforma como cristã. Em pouco tempo, começaram a aparecer discursos fascistas, de ódio contra as mulheres, uma exaltação à masculinidade. 

Então, acredito, sim, que é preciso regular, não apenas punir. Também acho que as universidades têm que contribuir com pesquisas nesse sentido.  É papel de todo mundo interferir para que seja ofertado um serviço de melhor qualidade, de menos risco. Até mesmo em relação à fiscalização etária do conteúdo na internet. Ou seja, não é papel só da família fiscalizar se o conteúdo que as crianças acessam é adequado para a sua idade mas, também, das big techs.  

A senhora se referiu à misoginia na internet. Como analisa o contato dos adolescentes com essas narrativas?   

Ser mulher tem sido cada vez mais difícil nesses espaços, com o uso de filtros no Instagram que modificam a aparência, afinam o rosto, afilam o nariz, retiram traços negroides para que as pessoas se sintam mais bonitas. Isso deveria ser proibido. Gera uma cobrança ainda mais forte. Esse refinamento tecnológico, que vai encontrar celulites nos corpos, reforça ainda mais o lugar da mulher em busca da beleza estética e impacta seu bem-estar emocional, desenvolvendo a ideia de vulnerabilidade e incapacidade ao tentar conquistar essa beleza. 

Em relação à misoginia ela não está só nos homens, também está nas mulheres, por exemplo, quando vemos comentários em postagens de mulheres famosas, muitos deles são de outras mulheres perguntando, por exemplo, “Como você posta essa foto com uma barriga dessas?” Além disso, sob influência das redes sociais, a mulher é cada vez mais cobrada em relação à criação dos filhos e atuação do mercado de trabalho. 

Eu sou mãe de três filhos planejados em um casamento planejado e percebo que as pessoas ainda se surpreendem com meu perfil, porque fiz mestrado, doutorado, sou professora universitária. A mulher é sempre mais cobrada que o homem para permanecer em casa. Quando viajo a trabalho, já ouvi comentários do tipo “seu marido é quem fica em casa com os meninos? Que marido maravilhoso”.  E, se a gente for falar da mulher preta, é ainda pior, tem que ser submissa. Algumas vezes, me reconheço mais respeitada na universidade, nas relações com os estudantes, porque eu sou uma mulher casada dentro de uma estrutura heteronormativa, com filhos. 

Pesquisas mostram que adolescentes homens tendem mais para a violência e as mulheres para a autoviolência, como automutilação. Até que ponto essa cobrança às mulheres nas redes sociais influencia tal comportamento? 

Quando fiz meu estágio, em 2007, já havia casos de meninas que se automutilavam e hoje é raro ver estudantes que não estão com algum corte e, muitas vezes, essas marcas são associadas a essa angústia mesmo. Com o final da pandemia, observamos algumas crianças e adolescentes defendendo a permanência do uso da máscara apenas para esconder os rostos. Eram pacientes com demandas de autoestima. Outras usavam casacos de frio com capuz também para cobrir o rosto. 

A busca pela beleza, intensificada pela tecnologia das redes sociais, vem prejudicando todos os lados. Vai possibilitar o isolamento. Eu até vejo uma violência praticada pelas meninas, dentro da rede social, do compartilhamento de fotos das outras discutindo sobre roupa, sobre beleza.  As meninas é que se impactam mais, dentro dessa angústia, desse isolamento de não alcançar o padrão. 

Já acompanhei casos em escolas no Recife em que foram compartilhadas fotos com montagens de corpos nus utilizando o rosto de meninas. Há inclusive casos de suicídio. É uma violência que extrapola mas que está sempre relacionada ao corpo da mulher. Há também essa busca da mulher por independência, por se posicionar, mas ao mesmo tempo, enfrenta uma cobrança de ser uma mulher submissa. Casar ou não casar? Ou você se encaixa em tudo isso ou você é uma revolucionária e, aí, acontecem acusações de que, se você é feminista, odeia homens. Acho que estar por trás do celular, da câmera, do computador, possibilita o ódio ao outro, o ódio à mulher, o cancelamento das pessoas. Então, ou eu amo, ou odeio e vou transmitir e compartilhar ações de muito ódio. Está tudo muito binário. Eu acredito que é muito difícil ser adolescente hoje.

Existe um perfil de adolescente que seja mais vulnerável à violência nas redes?

A adolescência é uma etapa de vida em que há uma ruptura com a família. A criança é muito moldada nessa orientação parental do cuidado direto da família, de obedecer aos pais, de seguir regras. Já a adolescência, sempre foi marcada por esse rompimento, é a hora em que se corta esse cordão umbilical e vai se encontrar com os demais, com os colegas. Acho que há a vulnerabilidade pela independência que se tem, que é a marca da adolescência. 

Atualmente, a relação com os colegas é reforçada pelo uso das tecnologias. Os adolescentes geralmente estão inseridos em algum grupo de WhatsApp, mesmo que não seja apenas para bater papo, porque a própria escola, muitas vezes, solicita que eles criem grupos para resolver trabalhos. Nessa faixa etária, os pares tomam força na formação da pessoa, mas também há, na nossa sociedade atual, uma necessidade do uso de tecnologia. A criança que não acessa tecnologia hoje está fora. Pais são criticados por não deixarem a criança usar telas e, aí, ela pode sofrer alguns problemas de relacionamento dentro do grupo porque desconhece o conteúdo, desconhece o domínio.  Muitos adolescentes sentem-se excluídos, não têm sociabilidade. 

Entretanto, não é possível traçar um perfil do adolescente violento, problemático, porque isso é muito diverso. Mas, quando a gente olha para os jovens que cometeram crimes ligados à questão da tecnologia, existe o perfil de uma criança, um adolescente mais fechado, menos comunicativo, com dificuldade de socializar. Por outro lado, a ideia de um jovem violento pode ser até o contrário disso. Ou seja, um jovem superpopular, bem-quisto, com muitas curtidas, muitas postagens, praticar violência. Em relação ao perfil do criminoso, o isolamento e a dificuldade de socialização talvez fossem o grande destaque, mas a questão do jovem violento ligado à rede social hoje é muito mais ampla e inclui também o perfil “super pop”. 

O distanciamento dos pais em relação ao mundo dos filhos também influencia no perfil de um jovem violento? Na série, por exemplo, os pais se perguntam onde erraram.

É preciso ter cuidado para não buscar culpados. Nossa sociedade costuma culpabilizar, por exemplo, mulheres que precisam sair para trabalhar e não há uma substituição da presença delas no cuidado com a criança. É preciso reforçar a ideia de que a criança não é responsabilidade apenas dos pais, assim como o problema da violência de adolescentes na internet, mas da sociedade como um todo. 

A tecnologia favorece essa situação, porque a criança vai passar muitas horas no celular e isso gera um comodismo.  É uma a tarefa para as mães e pais entenderem ser preciso sair desse comodismo. Os jogos digitais são legais, mas não podem ser a única forma de cuidado de uma criança. Precisamos falar sobre jogo, jogar junto, entrar nesse mundo. Não é uma busca de culpados e nem a solução é retirar todas as tecnologias, isolando a criança. 

É preciso ir dosando o uso das tecnologias para fazer essa integração, é necessário estreitar os laços com os filhos, olhar para esses adolescentes, conversar, nem que seja pelo Whatsapp, não no viés de fiscalização, que acho que é outro caminho em que as famílias têm errado. É reorganizar a sociedade para suprir a ausência dos pais no cuidado quando necessário e estreitar esse laço, respeitando a individualidade, o espaço, especialmente do adolescente. 

E como acontece essa fiscalização do uso da internet sem invadir a privacidade dos adolescentes? 

É preciso construir uma relação de liberdade vigiada, em que seja possível ter acesso ao celular dos filhos sem que isso pareça uma agressão. É importante para o desenvolvimento, para a formação social e pessoal dele, esse espaço mais individual, mas sabendo que os pais têm essa possibilidade de fiscalizar. Ou seja, o filho pode explorar o mundo virtual, atuar na rede social, mas os pais estão por perto para proteção e para impedir e bloquear determinados acessos e conversas. É muito nessa relação de confiança e não de fiscalização, pois as tecnologias possibilitam também mentir para os pais com facilidade. 

A que tipos de comportamentos ou indícios os pais devem ficar atentos para saber se o filho está passando por algum sofrimento ou problema relacionado ao uso das tecnologias? 

A tudo o que mude o perfil da criança, do adolescente, que o impeça de atuar no mundo da forma que normalmente atua. Ou seja, se ele está passando mais horas no celular do que geralmente passava, se deixa de encontrar colegas da rua, se cancela atividades presenciais com amigos do prédio para ficar mais tempo na internet. Isso é problemático. 

Outro ponto é não romper totalmente as relações do adolescente com a família. Claro que ele vai preferir estar com seu grupo mas, também, vejo algumas famílias permitindo que esse adolescente não esteja nas atividades familiares. Acho que se tem normalizado a ideia desse rompimento total, desse afastamento das relações do adolescente com a família, com os irmãos de idades diferentes, por exemplo. Outra questão que os pais precisam estar atentos e que interfere fisiologicamente e mentalmente na saúde dos filhos é o sono. Acompanhar que horas seu filho vai dormir e em que hora está acordando, porque à noite, em um quarto fechado, a possibilidade de acesso a conteúdos proibidos é maior. 

Também é importante ficar atento a mudanças drásticas na alimentação. Por exemplo, se ele se recusa a comer algo de que gosta para passar mais tempo jogando na internet. O grande clique é olhar para as mudanças de comportamento. É preciso respeitar, sim, o crescimento do filho e sua mudança dos gostos, mas mudanças de comportamento e o grande isolamento são sinais de alerta. A escola também é um meio de acompanhar o comportamento, a escola é um regulador social, faz com que os filhos cumpram horários e tarefas. Daí, a importância da parceria entre a família e a escola para observar se o filho está realizando as atividades, se está faltando muito. 

Deixe seu comentário

Assine nossa Newsletter

No ononno ono ononononono ononono onononononononononnon