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Francisco Cunha

Olinda tem que ser também patrimônio de Pernambuco

Vista da caixa D'agua - sé Olinda_ por Hugo Acioly

*Por Francisco Cunha

Depois de uma longa convivência com a Olinda histórica, cheguei à conclusão de que, embora ela seja patrimônio da humanidade, infelizmente não é patrimônio de Pernambuco e só tem salvação se vier a sê-lo, inclusive com uma rubrica permanente no orçamento do Estado.

Até me tornar um jovem adulto, não conhecia Olinda direito. Praticamente só ia por lá na época do Carnaval ou como resultado de uma ou outra ida furtiva, sempre dentro de um automóvel. De dia, ao Alto da Sé ou, à noite, ao Cantinho da Sé e ao saudoso bar Relicário onde hoje funciona o Museu de Arte Sacra, antigo Palácio Episcopal, e nada mais. Isso, até que tive que comparecer, quando cursava a faculdade de arquitetura, num dia normal de semana, a uma aula de campo de história, marcada pelo inesquecível professor José Luiz Mota Menezes, a ser dada na igreja de Nossa Senhora da Graça, uma das mais antigas do Brasil, junto ao Seminário, no ponto mais alto da colina histórica.

Saí de casa, no Bairro do Espinheiro, de ônibus, depois do almoço, saltei no Varadouro e subi a pé, bem devagar, a ladeira Quinze de Novembro quando a tarde já ia quase pelo meio. Então, de súbito, comecei a ser arrebatado pela beleza da velha Marim dos Caetés. Primeiro, a uniformidade das casas de porta e janela, de um lado e do outro da ladeira, depois a chegada na Rua de São Bento, junto à prefeitura, antigo Palácio dos Governadores. Uma parada para respirar e duas visões arrebatadoras: ao sul, o Recife no fundo, já visto parcialmente do alto; e, a leste, a bela igreja do Convento de São Bento, ambos emoldurados pelo casario histórico.

Segui pela rua olhando de ambos os lados os sobrados, alguns com mais de 300 anos, passei pela casa de Ivaldevan e Sônia Calheiros, sede do bloco carnavalesco Eu Acho é Pouco, até chegar no Mercado da Ribeira, na frente do qual um pedaço de muro do antigo Senado de Olinda registra, escrito numa estrela de mármore, o pioneiro “grito da república” dado entre nós por Bernardo Vieira de Melo, em 1710, durante as escaramuças da chamada Guerra dos Mascates, conforme citado no hino de Pernambuco:

A República é filha de Olinda

Alva estrela que fulge e não finda

De esplender com seus raios de luz

Liberdade! Um teu filho proclama!

Dos escravos o peito se inflama

Ante o Sol dessa terra da Cruz!

Continuando meu percurso, desço a ladeira, chego aos Quanto Cantos, aquele mesmo citado na famosa música de J. Michilis, imortalizada por Alceu Valença pelos carnavais afora (Me Segura Senão Eu Caio): 

Nos quatro cantos cheguei

E todo mundo chegou

Descendo ladeira

Fazendo poeira

Atiçando o calor...

Embalado pela lembrança dos frevos rasgados que já tinha ouvido por ali, resolvi enfrentar a fatídica Ladeira da Misericórdia. No meio da subida, mesmo com falta de ar, olhando para os lados, me veio à cabeça o belíssimo poema Olinda do grande Joaquim Cardozo que fala de calçadas “cascateado nas ladeiras”:

Olinda,

Das perspectivas estranhas,

Dos imprevistos horizontes,

Das ladeiras, dos conventos e do mar. (...)

Muros que brincam de esconder nas moitas,

Calçadas que descem cascateando nas ladeiras.

Chego resfolegante ao topo, do lado da Igreja da Misericórdia e defronte da Academia Santa Gertrudes, no local onde o Capitão Temudo opôs a última resistência olindense aos holandeses na invasão de 1630. Quando me viro, a vista do Recife funciona melhor do que um balão de oxigênio. Refeito do esforço, sigo pela primeira rua de Olinda, no topo da colina, passo pelo Observatório (aquele citado no poema de Cardozo: “Sábio silêncio do Observatório / Quando à noite as estrelas passam sobre Olinda”) e pela caixa d’água de 1936, primeira construção modernista daquela altura no Brasil, até chegar na frente da Catedral da Sé, antiga Igreja do São Salvador do Mundo, construída pelo nosso primeiro capitão hereditário, Duarte Coelho Pereira.

No largo, restabelecido da subida da Misericórdia, me deparo com a vista, esta sim de tirar o fôlego, do Recife e não tenho como não lembrar dos versos de Carlos Pena Filho:

De limpeza e claridade

é a paisagem defronte.

Tão limpa que se dissolve

a linha do horizonte.

As paisagens muito claras

não são paisagens, são lentes.

São íris, sol, aguaverde

ou claridade somente.

Olinda é só para os olhos,

não se apalpa, é só desejo.

Ninguém diz: é lá que eu moro.

Diz somente: é lá que eu vejo.

Em seguida, enfrento, como obstáculo final, a ladeira do Seminário para chegar a meu destino, a igreja onde seria ministrada a aula de campo. Trata-se de um belo exemplar da arquitetura colonial-maneirista, na época recém-restaurada, com uma singela nave na qual, sentados nos bancos, assistimos a extraordinária aula de José Luiz.

Terminadas as obrigações acadêmicas, descemos a ladeira do Seminário e paramos no Cantinho da Sé para brindar com algumas cervejas geladas o final da tarde e a descoberta de uma Olinda paisagística e histórica até então insuspeitada. Terminamos, como no poema de Cardozo, presenciando o momento em que “as estrelas passam sobre Olinda”.

seOlinda

Esse episódio que classifico, à moda do poeta Manuel Bandeira, de “meu primeiro alumbramento” olindense se deu antes da elevação de Olinda, em 1982, pela Unesco, a patrimônio da humanidade como resultado de uma iniciativa liderada pelo renomado designer pernambucano Aloísio Magalhães, na época secretário de Cultura do MEC.

Depois, passei a ir regularmente à cidade até que resolvi escrever um livro sobre o Recife e entendi que deveria começar por Olinda já que acreditava, como ensinou Gilberto Freyre, ser a velha Marim dos Caetés a “mãe do Recife” (assim como Igarassu pode ser considerada a “avó”). Na verdade, atirei no que vi e acertei no que não tinha visto. Inicialmente pensei em dedicar um fim de semana para percorrer o sítio histórico mas fiquei, junto com o amigo de infância Plínio Santos, quase um ano frequentando a área todos os domingos e, no final, terminamos por escrever um guia (Um Dia em Olinda) que, pelo que me consta, continua sendo o único existente até hoje.

Tanto como resultado da pesquisa feita para escrever o guia quanto pelas inúmeras Caminhadas Domingueiras que guiei desde então, chego contemporaneamente à conclusão que, embora Olinda seja patrimônio da humanidade, ela não é patrimônio de Pernambuco, por mais incrível que isto possa parecer. A impressão que tenho é que ela é, para a maioria dos pernambucanos, aquilo que era para mim antes do meu primeiro “alumbramento” olindense: um local que se frequenta no Carnaval ou esporadicamente para algum compromisso eventual. Poucos tiveram a chance de andar com calma por suas ruas e ladeiras, admirar seus monumentos notáveis, surpreender-se com suas vistas inusitadas, seus “imprevistos horizontes”, encantar-se com sua história fantástica, arrebatar-se com sua beleza especial...

Além disso, dada a penúria dos orçamentos municipais das cidades com poucas alternativas econômicas como, infelizmente, é o caso de Olinda, um dos menores municípios do País, a mim parece absolutamente essencial que o nosso único patrimônio da humanidade tenha uma rubrica permanente no orçamento do Estado para a sua manutenção e desenvolvimento. Tudo isso com base num plano estratégico de longo prazo, elaborado com ampla participação da sociedade pernambucana, para além das divisões políticas e/ou partidárias. Afinal, pela sua preciosidade especialíssima, Olinda deve ser uma espécie de partido único de Pernambuco.

Sugiro, portanto, uma campanha suprapartidária neste sentido para que possamos ter essa nossa joia urbana, histórica, cultural e natural adequadamente preservada como todos os olindenses, pernambucanos, brasileiros e humanos merecemos. 

Viva Olinda como patrimônio da humanidade, de fato, pernambucano!

*Francisco Cunha é consultor e sócio da TGI

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