Para atravessar a Era dos Extremos

*Por Rafael Dantas

O ano de 2023 foi marcado por cenas que ilustram eventos de intensos conflitos no mundo, no Brasil e em Pernambuco: duas guerras com imagens chocantes, catástrofes naturais que inundaram várias cidades ou eventos climáticos que levam o Sertão à desertificação e, na política nacional, a destruição da Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro. Inspirado na obra clássica do historiador britânico Eric Hobsbawm, A era dos extremos chegou, como atravessá-la foi o tema e a provocação da palestra do consultor Francisco Cunha na 25ª edição da Agenda TGI, para compreender o ano que passou e indicar perspectivas e desafios relevantes para 2024.

O consultor da TGI elencou cinco fatores relevantes a serem observados para entender as tensões mais inflamadas do Brasil e do mundo: extremos da geopolítica, da política nacional, da segurança pública, do clima e da tecnologia.

CONFLITOS GLOBAIS

O mundo, que iniciou o ano ainda aflito pela invasão da Rússia na Ucrânia, assistiu ao atentado do Hamas em Israel e, na sequência, aos ataques à Faixa de Gaza. Além desses dois conflitos, que dominam o noticiário internacional, Francisco Cunha lembrou de outras guerras que seguem em curso pelo planeta, como em Burkina Faso, no Sudão, em Mianmar, na Somália e no Iêmen.

“Essas são guerras que estão acontecendo. São extremos da geopolítica, mas temos também extremos de polarização, como da China e dos Estados Unidos”, afirmou Francisco Cunha. A tensão político-econômica entre as duas maiores potências do mundo foi chamada pelo consultor de Guerra Fria 2.0. A incerteza sobre o futuro político dos EUA, com a possibilidade de retorno de Donald Trump à Casa Branca, é uma das peças chaves do tenso tabuleiro internacional.

Além dessa disputa, o consultor pontuou o avanço da Índia no cenário internacional. “A China tem uma disputa regional com a Índia, que já ultrapassou a China em população e se aproxima em renda per capita. Essa é uma realidade geopolítica, mais regional, que está dentro desse espectro mundial da chamada Guerra Fria 2.0”, analisou o consultor.

Na América do Sul, duas novidades no tabuleiro geopolítico regional terão desdobramentos para 2024. O primeiro é a ascensão de Javier Milei à presidência da Argentina. Com uma campanha ilustrada pela motoserra, o político que se intitula anarcocapitalista foi eleito com um discurso que prometia mudanças bem heterodoxas, como a dolarização da economia e a extinção do Banco Central. O segundo é a ameaça de guerra entre a Venezuela e a Guiana pela região de Essequibo, que representa 70% do território guianês e é reivindicada pelo país do ditador Nicolás Maduro.

ECONOMIA MUNDIAL PARA ALÉM DOS CONFLITOS

Tanto a OCDE, como o FMI têm apontado um crescimento da economia mundial um pouco menor em 2024 comparado ao desempenho de 2023. As estimativas para o próximo ano são respectivamente de 2,7% (na projeção da OCDE) e 2,9% (segundo o FMI). Ao olhar o cenário internacional, Mauro Rochlin, coordenador do MBA de gestão estratégica e econômica de negócios da FGV, avalia que para o Brasil um dos grandes movimentos externos que podem trazer efeitos locais são os juros praticados pelos EUA. “No cenário internacional é importante observar o movimento da taxa norte-americana. Ela é o preço dos preços e se o Banco Central americano iniciar um ciclo de queda em maio, que o mercado agora passou a considerar, isso é positivo para o Brasil porque vai permitir que uma política monetária mais frouxa seja adotada aqui. Isso pode acelerar o ritmo de queda da taxa Selic, o que vai certamente estimular o consumo e o investimento”.

O panorama da economia internacional não é animador para Rochlin. “O cenário externo não é dos mais auspiciosos, a gente vê a economia americana crescendo abaixo de 2% para ano que vem, economias europeias também, muitas, aliás, estagnadas. A China vem crescendo menos do que cresceu nas últimas décadas e, portanto, o cenário internacional também não favorece um crescimento maior”.

Em um olhar mais estrutural de longo prazo, o economista Marcos Troyjo, que participou da I Conferência Internacional dos Guararapes, promovida pela Iperid (Instituto de Pesquisas Estratégicas em Relações Internacionais e Diplomacia ), destacou que é importante observar no crescimento populacional do mundo as oportunidades que surgem desse fenômeno. “Entre 2048 e 2050, a população mundial será de 10,5 bilhões de pessoas, o que significa que nós vamos ter um acréscimo líquido de 2 bilhões de pessoas sobre o nosso planeta. Imagina qual o tamanho do impacto sobre a demanda de alimentos, de água, por energia, por infraestrutura, resultante desse aumento populacional tão significativo que nós veremos nos próximos 25 anos”.

O Troyjo, que é ex-presidente do Banco dos BRICS, destacou as oportunidades que esse fenômeno deve gerar para o Brasil, que é um grande produtor de alimentos. Troyjo também ressaltou o rearranjo da demanda desse comércio internacional, visto que além do avanço populacional da Índia, que já ultrapassou os chineses, outros players em ascensão nesse indicador são Nigéria e Paquistão. Apenas oito países — todos asiáticos ou africanos — devem concentrar metade do crescimento do número de habitantes até 2050.

FOTOGRAFIAS DA TENSÃO POLÍTICA

Entre as cenas de 2023, duas marcaram o mês de janeiro. A primeira, com a subida da rampa do Palácio do Planalto de representantes do povo brasileiro, para a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, após uma acirrada eleição. Uma semana depois, outra imagem do mesmo cenário tomou o mundo, com a depredação dos prédios da Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro. “Estavam querendo promover um golpe de estado, numa invasão da sede dos três poderes”, declarou Francisco Cunha.

Para contrastar com os atos de 8 de janeiro, Francisco Cunha lembrou o árduo percurso de reconquista da democracia no Brasil quando a população tomava as ruas para pedir Diretas Já e para participar da Constituição Cidadã de 1988. No ano em que o País comemorou os 35 anos da promulgação da sua Carta Magna, a tentativa de golpe falhou.

Em contraposição ao extremismo da tensão política, ao longo do ano, em vários momentos o presidente e os governadores eleitos, mesmo de posições antagônicas, se reuniram, assinaram contratos e promoveram encontros democráticos, como a fotografia recente entre Lula e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freiras (Republicanos) ou mesmo as inúmeras agendas do presidente com Raquel Lyra (PSDB). Os embates entre congressistas e o poder executivo também escalaram em alguns momentos, mas mesmo assim aprovaram medidas importantes para o País, como a Reforma Tributária. Em 2024, o desafio do horizonte são as eleições municipais que acontecerão em todo o Brasil.

Além dos extremos políticos, Francisco Cunha ressaltou a necessidade de encontrar alternativas para a violência urbana. “Chamo de extremos do crime a grave crise da segurança pública com o crescimento exponencial do crime organizado, a partir do Rio de Janeiro, mas não só. Tivemos crises acentuadas na Bahia, no Rio Grande do Norte e até aqui em Pernambuco. Essa situação só terá um encaminhamento de solução a partir de um enfrentamento direto por um presidente da República que coloque esse tema como uma prioridade”, avalia o consultor.

De acordo com dados do FMI (Fundo Monetário Internacional), a criminalidade na América Latina já afeta a produtividade dos países da região. As estimativas fornecidas por membros da instituição indicam que o crime tende a dificultar a acumulação de capital, potencialmente desencorajando investidores preocupados com roubos e violência. Além disso, acredita-se que diminua a produtividade, pois, provavelmente, desloca recursos para investimentos menos eficazes, como medidas de segurança doméstica. Solucionar a criminalidade nos países com as mais altas taxas de homicídio poderia ampliar o crescimento do PIB em cerca de 0,8 por cento.

Ao abordar os extremos do clima, o consultor lembrou que vivemos o ano mais quente da história. Após um longo período sobre o aquecimento global, uma nova expressão está sendo tratada para abordar os desafios ambientais do planeta: a era da ebulição global. “Já foi constatado que o aumento do nível do mar em 30 anos foi de 10 centímetros. Se isso se exponencializar e chegar num ponto que não tenha controle, vai subir muito mais. E uma das cidades mais afetadas no mundo será o Recife. Os efeitos econômicos já são dramáticos”, declarou o consultor.

ECONOMIA DO PAÍS SUPEROU EXPECTATIVAS DO MERCADO

Francisco Cunha destacou no Painel Anual da Agenda TGI 2024 que “apesar das convulsões políticas, a economia termina imperando”. Nesse aspecto, a fotografia dos indicadores econômicos do Brasil em 2023 contribuiu para amenizar os ânimos extremados da política. A maioria das estimativas de crescimento econômico para o Brasil em 2023 apontavam um desempenho inferior a 1%. A maioria em torno de 0,75%. Os dados, trimestre a trimestre, no entanto, revelaram um avanço aproximado de 3%. As previsões erraram bastante.

Além do crescimento do PIB, outros indicadores macroeconômicos acalmaram os mercados. O controle da inflação é um deles. O índice, que gira em 4,49% segundo o Boletim Focus do Banco Central, está abaixo do teto da meta de 4,75%.

Outro dado relevante é a queda do desemprego, atualmente em 7,7%, segundo a PNAD Contínua, do IBGE. O indicador é o mais baixo desde fevereiro de 2015, quando Dilma Rousseff ainda era presidente. Neste trimestre, o Brasil registrou o recorde de população ocupada, que atingiu o patamar de 99,8 milhões. O avanço foi marcado especialmente pela elevação do trabalho formal neste ano.

O reajuste definitivo dos R$ 600 do Bolsa Família, e o sucesso do programa Desenrola Brasil, que retirou 7 milhões de pessoas da inadimplência, foram duas medidas populares para aliviar a crise financeira do cidadão de menor renda. Além dessas iniciativas de curto prazo, o consultor destacou a aprovação do Arcabouço Fiscal e da Reforma Tributária, como conquistas mais estruturais para a economia do País.

“A reforma tributária pode ser o Plano Real de Lula”, afirmou Francisco Cunha, repetindo as palavras do economista Samuel Pessôa. Com a simplificação da arrecadação tributária do País, a expectativa apontada por Pessôa é de impactos muito positivos sobre a produtividade e organização da economia dentro do horizonte de 10 a 15 anos.

Para 2024, Mauro Rochlin tem uma previsão menos otimista do que foi realizado em 2023. “Não dá para falar nada muito diferente do que o relatório Focus revela e do que o próprio Ministério da Economia prevê: dificilmente o crescimento vai superar 2% ano que vem, e isso é uma previsão otimista, e essa previsão se deve muito fortemente ao impacto da altíssima taxa de juros que ainda se pratica”.

Apesar da redução da taxa de juros aplicada pelo Banco Central nos últimos meses, o País ainda se posiciona entre as maiores do mundo. “A taxa de 13,75%, que foi o pico do ciclo de alta que aconteceu até este ano, ainda faz estragos que são percebidos agora no quarto trimestre de 2023, em que a gente deve ter um número próximo a zero para o PIB do último trimestre. Essa desaceleração já é percebida nas mais diferentes pesquisas mensais de serviço. Então, as perspectivas para o ano que vem, por força de uma taxa de juros ainda muito severa, não deve ultrapassar 2%”, afirmou o professor da FGV.

DESAFIOS DE PERNAMBUCO E DO RECIFE

Com grande parte do território pernambucano inserido no semiárido do Nordeste e diante das fragilidades socioambientais do Recife à elevação do nível do mar, tanto o Estado como a sua capital têm desafios relevantes para enfrentar os extremos climáticos e para construir os caminhos de desenvolvimento futuros.

Para o Estado, Francisco Cunha tem insistido na necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento de Pernambuco. A avaliação dos analistas que se debruçam sobre o tema, nos encontros recentes da Rede Gestão, é de que o modelo esboçado na década de 1950 pelo Padre Lebret, consultor convidado pela Codepe (Comissão de Desenvolvimento de Pernambuco), está esgotado.

“As evidências levam a crer que o modelo de desenvolvimento de Pernambuco, assim como o brasileiro, gestado em meados do século passado, simplesmente esgotou-se sem que se saiba ainda pelo que será substituído. Urge, portanto, discutir, seriamente, que futuro precisamos para o Estado”, disse o consultor.

A construção da Transnordestina, um dos projetos estratégicos previstos no plano de desenvolvimento pré-desenhado por Lebret, ainda está sob a ameaça. O futuro da linha ferroviária que conectaria Suape ao Sertão e a outros Estados do Nordeste (Piauí e Ceará) segue com muitas indefinições. Além dela, outros empreendimentos mais ligados à economia do Século 21, como a indústria de produção de hidrogênio verde, por enquanto, vão passando mais distantes de Pernambuco.

Sobre a capital pernambucana, o Francisco Cunha avalia que o Projeto Recife Cidade Parque, que propõe o conceito do Recife como uma cidade-parque, é o caminho encontrado para a redenção do município e a recostura do seu território. Além das intervenções urbanas nas margens do Rio Capibaribe, os especialistas da UFPE envolvidos nessa pesquisa defendem que as mesmas bases sejam aplicadas às margens do Rio Beberibe e do Rio Tejipió. O projeto urbanístico propõe a reurbanização na borda dos três rios e dos seus acessos, em torno de 500 metros de cada lado. Ele ressaltou também o papel do Recentro para a revitalização da região central da cidade, que foi abandonada nas últimas décadas.

Um fator relevante de 2023 tanto para o Estado como para o Recife, que difere muito dos anos anteriores, foi a capacidade de captação de recursos por parte da Prefeitura e do Governo para realização de investimentos. Na cidade, o grande montante está no Promorar Recife, que foi captado junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), para requalificação e resiliência urbana em áreas de vulnerabilidade socioambiental, em torno de R$ 2 bilhões a ser aplicado em 40 comunidades no último ano da gestão do mandato de João Campos à frente da PCR.

No Governo do Estado, Raquel Lyra comemorou ao longo do ano a aprovação da captação de um conjunto de investimentos. Houve a contratação de R$ 1,7 bilhão pelo Finisa (Financiamento à Infraestrutura e ao Saneamento) da Caixa Econômica Federal, além de R$ 900 milhões captados junto ao Banco do Brasil para a recuperação da malha rodoviária. Foi contratado com a Caixa Econômica outra uma operação de crédito no valor de R$ 650 milhões e, por fim, outro empréstimo com o Banco do Brasil, no valor de R$ 197,6 milhões. O montante total é de R$ 3,4 bilhões em contratações de operações de crédito. Além desses recursos já garantidos, duas instituições estratégicas para o financiamento de projetos de interesse regional são conduzidas por pernambucanos.

A Sudene, dirigida por Danilo Cabral; e o Banco do Nordeste, presidido pelo ex-governador Paulo Câmara. Ambas vivem um momento de aumento da liberação de crédito em relação aos anos anteriores. A Sudene teve um montante recém-aprovado de R$ 37,8 bilhões para os setores produtivos. Pernambuco terá uma parte significativa, totalizando R$ 4,6 bilhões, com a perspectiva de desbloquear projetos antigos e inaugurar novas iniciativas. Já o Banco do Nordeste teve um crescimento de contratações de 20,7% em comparação com o total de 2022, que atingiu R$ 32,22 bilhões, em suas diferentes operações de crédito. A projeção de Paulo Câmara para este primeiro ano de gestão é que Pernambuco recebeu R$ 5,8 bilhões em investimentos do banco.

Para o próximo ano, a Agência Condepe/Fidem não tem ainda projeções do crescimento do PIB pernambucano. O último dado estimado da economia do Estado foi do segundo trimestre de 2023, com crescimento de 1,4% no acumulado do ano em relação ao mesmo período do ano passado. Combinando dados do sistema de Contas Regionais e as estimativas trimestrais, a agência avaliou que os setores da agropecuária e dos serviços já possuem produção superior ao período pré-pandêmico, respectivamente 16,3% e 2,9% superior aos de 2019. Já a indústria não conseguiu recuperar o nível produtivo de 2019, estando ainda 4,9% abaixo.

No enfrentamento aos extremos socioeconômicos que o País viveu com a pandemia da Covid-19 e de sucessivas crises econômicas, a superação dos problemas passa pela construção das soluções a partir do diálogo e com os olhos voltados para as tendências do Século 21. Como mencionou o consultor Fábio Menezes na abertura da Agenda TGI, as palavras do poeta mineiro Altino Caixeta de Castro, são uma inspiração para os próximos passos de Pernambuco, do País e, porque não dizer, do mundo: “Aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar”. Exercitando a escuta, a reflexão e evitando o risco do aprisionamento dos extremos é possível encontrar algumas das respostas aos desafios que vem se impondo ao Estado e ao Brasil.

*Rafael Dantas é jornalista, repórter da Revista Algomais e assina a coluna Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)
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