Passos que contam histórias: 15 anos das Caminhadas Domingueiras - Revista Algomais - a revista de Pernambuco
Passos que contam histórias: 15 anos das Caminhadas Domingueiras

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Movimento que une lazer, memória e mobilidade urbana segue transformando a relação dos recifenses com a cidade e inspirando novas formas de ocupação do espaço público.

Andar com fé eu vou / A fé não costuma faiá. A letra do clássico de Gilberto Gil bem que poderia ser o hino das Caminhadas Domingueiras. Há 15 anos, o grupo percorre as ruas do Recife e de Olinda, unindo lazer, encontros e movimento. Mais do que exercitar o corpo e conviver nas ruas da cidade, essas caminhadas têm despertado o olhar para os valores históricos e arquitetônicos da capital pernambucana, além de alertar sobre os desafios da infraestrutura para pedestres. Mas, lembrando a canção, esse grupo segue percorrendo com fé as calçadas da cidade, na expectativa de encontrar novas paisagens em seus trajetos futuros.

Os primeiros passos desse grupo foram dados pelo seu idealizador, o consultor e arquiteto Francisco Cunha. Ao caminhar pela cidade, ele passou a perceber muitos detalhes que não eram visíveis na velocidade e da janela do automóvel. Sensível às causas urbanas e incomodado com a degradação de lugares históricos, os seus passeios inicialmente individuais, passaram a contar com amigos, pequenos grupos e assim foram crescendo. “As Caminhadas Domingueiras foram pioneiras. Eu andava sozinho, sem ninguém nas ruas nos domingos de manhã. Depois surgiram vários grupos que promovem passeios pelo Recife”.

O surgimento do grupo está diretamente ligado a um período desafiador para o Recife, quando a cidade enfrentava altos índices de violência no País. Foi nesse contexto que nasceu o movimento Observatório do Recife (ODR), com o objetivo de organizar indicadores estratégicos para subsidiar a formulação de políticas públicas. Além desse trabalho, o movimento convidou Francisco Cunha para liderar outro passeio, que acontecia aos sábados, o Olhe pelo Recife!

“Uma das atividades do Observatório do Recife, além da produção de indicadores estratégicos da cidade, e do fomento ao debate sobre eles, foi o incentivo às caminhadas para observação in loco das dificuldades e também belezas, inclusive his- tóricas, do Recife, gerando novas dinâmicas microeconômicas e, sobretudo, novas relações urbanas que proporcionam trocas entre espaço público e seus usuários”, destacou o professor da UFPE, Roberto Montezuma, em sua tese de doutorado em urbanismo, pela Universidade de Lisboa.

As Caminhadas Domingueiras e o Olhe pelo Recife se fundiram e o grupo seguiu crescendo. A caminhada temática das pontes, por exemplo, chegou a reunir mais de 250 pessoas. Em média, atualmente, são 100 em cada oportunidade. A cada mês, muitas pessoas estão participando desses passeios pela primeira vez. Entrando e saindo em igrejas, fortes, museus ou simplesmente passando por ruas icônicas do Recife, Francisco reuniu um pequeno exército de pessoas apaixonadas por caminhar que foram se tornando também amantes da cidade.

Mais do que uma atividade de lazer, as Caminhadas Domingueiras vêm se consolidando como uma forma de redescobrir a cidade e compreender suas mudanças ao longo do tempo. A professora do departamento de História da UFRPE e coordenadora do Laboratório de Estudos e Ensino sobre o Recife (RecLab), Mariana Zerbone, ressalta a importância desse movimento para a valorização do espaço urbano e da memória coletiva. “As Caminhadas Domingueiras são muito importantes para a cidade. É uma forma de as pessoas que vivem na cidade e também os turistas conseguirem conhecer os espaços públicos, a paisagem, identificar a transformação que a cidade sofre ao longo do tempo a partir dos registros que ficam impressos na paisagem”, destaca.

Ela ressalta, no entanto, que para decifrar esses vestígios do passado é essencial a presença de especialistas que guiem os participantes e os ajudem a interpretar a paisagem. “Lógico que é preciso que tenha sempre alguém que faça esse trabalho, que guie, pois a paisagem não revela tudo. Os pesquisadores precisam fazer essa mediação com o público que acompanha para mostrar questões interessantes do que foi a cidade e do que ela é hoje”, declara Mariana.

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"As Caminhadas Domingueiras são uma forma para as pessoas que vivem na cidade e também os turistas conseguirem conhecer os espaços públicos. Lógico que é preciso que tenha sempre alguém que guie, pois a paisagem não revela tudo." Mariana Zarbone

Pequenos detalhes do cotidiano urbano podem passar despercebidos, mas carregam um rico histórico sobre a formação e as transformações do Recife. “Às vezes um trilho no chão ou uma fachada diferente, uma placa. E tem muita história por trás de tudo isso. É importantíssimo saber ler a cidade”, exemplifica a professora, reforçando a necessidade de um olhar mais apurado para a cidade.

Nas Caminhadas Domingueiras, além da própria condução de Francisco Cunha, que é um estudioso sobre a história do Recife, que já publicou o livro Pernambuco Afortunado, em parceria com o historiador Carlos André Cavalcanti, alguns passeios contaram também com parceria de especialistas nas temáticas escolhidas para o mês. O jornalista Paulo Santos, por exemplo, autor da A Noiva da Revolução: Romance da República de 1817, esteve no passeio que marcou os 200 anos desse movimento.

Os temas desses encontros pela cidade passam pela história, pelos engenhos do Recife, pelas escolas arquitetônicas, entre outros. O grupo já atravessou as fronteiras da capital pernambucana, visitando Olinda, bem como já caminhou por algumas das periferias urbanas.

CAMINHANTES DE ONTEM E DE HOJE

Andar pelas ruas do Recife em grupo se tornou uma oportunidade de reencontro com a cidade, suas histórias e contrastes para o empreendedor e ex-secretário de Inovação Urbana da Prefeitura do Recife, Tullio Ponzi. Ele considera que essas jornadas a pé representam mais do que simples passeios: elas permitem enxergar o Recife para além do cotidiano apressado e revelam uma cidade que, muitas vezes, seus próprios habitantes desconhecem.

“A gente às vezes conhece Miami, conhece a Europa, mas muitas vezes não conhece a nossa própria cidade. E para o Recife, isso continua sendo uma oportunidade de promover uma integração socioeconômica, mostrar que é possível um só Recife, que a cidade formal e a cidade informal podem e devem cada vez mais reduzir os abismos entre si. As caminhadas aos domingos sempre simbolizaram esse sonho, esse redescobrimento de cada cantinho da cidade”, afirma Ponzi.

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Para Túlio Ponzi (na foto com Francisco Cunha), as Caminhadas Domingueiras permitem enxergar o Recife para além do cotidiano apressado e revelam uma cidade que, muitas vezes, seus próprios habitantes desconhecem.

Entre 2015 e 2019, ele participou de diversas edições do grupo, muitas delas com centenas de pessoas percorrendo diferentes áreas da cidade. Caminhar pelos morros da Zona Norte e vivenciar Brasília Teimosa pela primeira vez, após sair do Marco Zero, foram algumas das experiências marcantes que ele relembra. “São momentos muito especiais da gente viver o Recife, de redescobrir a nossa própria cidade”, resume.

Um dos caminhantes frequentes é o historiador Alexandre Cesario. Ele conheceu o grupo há 10 anos, por meio da jornalista Letícia Lins, do blog Oxe Recife, que também é assídua nos passeios. “Passei a participar das Caminhadas, vislumbrando a arquitetura urbanística da Cidade do Recife. Quando comecei a participar, adquiri conhecimento e passei a ver com os olhos certas precariedades da cidade, abandono e a insegurança”.

Além de ampliar o conhecimento histórico e o olhar crítico sobre o espaço urbano, as Caminhadas Domingueiras também fortaleceram laços de amizade. Para Alexandre, a força desses encontros foi essencial em um momento difícil de sua vida. Em 2022, ele precisou interromper sua participação no grupo após enfrentar problemas de saúde. O apoio dos amigos que fez ao longo das caminhadas foi fundamental para seu retorno. “Fiz grandes amizades que passaram a fazer parte da minha vida. As Caminhadas Domingueiras foram uma fisioterapia, pois passei por um quadro de chikungunya, que desencadeou artrite reumatóide, me deixando em cadeira de rodas. Aos poucos, voltei a andar e a caminhar. Tenho uma imensa gratidão pelos incentivos que recebi para regressar”, relembrou.

Alexandre historiador Recife

"Fiz grandes amizades. As Caminhadas foram uma fisioterapia. Tive chikungunya, que desencadeou artrite reumatoide, me deixando em cadeira de rodas. Voltei a caminhar. Tenho gratidão pelos incentivos que recebi para regressar". Alexandre Cesario

Os relacionamentos reais nos passeios ganharam também uma camada virtual, desde o início desse movimento. As redes sociais ajudaram a mobilizar essa comunidade, que possui um grupo ainda no Facebook (3,5 mil membros) e uma página no Instagram (3,9 mil seguidores), por onde são divulgados os roteiros e horários. A divulgação boca a boca pelos caminhantes e o espaço que esse evento foi tomando até na imprensa contribuíram para a sua longevidade e para a entrada no debate público do Recife.

Quem se juntou aos caminhantes há cerca de um ano e meio foi a servidora pública Érika Crisóstomo. Sempre que via as divulgações dos passeios tinha vontade de conhecer, até que após o primeiro encontro não conseguiu mais ficar em casa. “Sempre que há caminhada, eu procuro ir. Gosto muito das explicações. É uma atividade física, associada ao conhecimento, junto de um guia que se dedica tanto para entregar todo conhecimento para os caminhantes”.

Ela revela que houve um impacto significativo na sua percepção sobre a cidade. “Quando estamos caminhando ou andamos de bicicleta temos uma percepção melhor das coisas do que de carro e na correria no dia a dia. Temos outra visão de como funciona a cidade e de pontos por onde nunca andamos. É uma oportunidade de conhecer locais que a gente nunca visitou”. Ela destacou que os encontros pós-caminhadas também são especiais de confraternização.

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"Sempre que há caminhada, eu procuro ir. Gosto muito das explicações. É uma atividade física, associada ao conhecimento, junto de um guia que se dedica tanto para entregar todo conhecimento para os caminhantes." Érika Crisóstomo

Por motivos diferentes, os três caminhantes ressaltaram a caminhada pelos Morros do Recife. As visitas ao Centro da cidade, que são as mais frequentes, também ficaram na memória dos participantes, que tiveram a oportunidade de entrar em alguns espaços que nunca tinham visitado.

INFLUÊNCIA NO DEBATE PÚBLICO

As diversas inserções de Francisco Cunha em entrevistas e debates na TV e nas rádios pernambucanas desde o início das caminhadas conseguiram influenciar o debate público sobre a mobilidade urbana e mesmo sobre a valorização do Centro do Recife. Por mais de cinco anos, por exemplo, ele foi responsável por uma coluna na Rádio CBN sobre a temática, que contribuiu para sistematizar as discussões sobre a cidadania a pé. Nesse ínterim surgiram ainda o movimento "Olhe Pelo Recife - Cidadania a Pé" e os talões das “Multas Cidadãs”, além de publicações de livros e cartilhas, que foram frutos desse impulso de andar pelas ruas em grupo.

“Conseguimos mobilizar um pouco a consciência da população da cidade da importância da mobilidade a pé. E terminei sendo representante disso. A experiência da caminhada me levou a escrever um livro sobre a história do Recife, que está sendo preparado. Cada capítulo é uma caminhada que distingue um tempo histórico da ocupação da nossa cidade”, destacou o arquiteto.

Anos após o despertar da degradação do Centro do Recife, que foi sendo visto de perto por cada vez mais pessoas, a cidade instituiu o Recentro, que é uma secretaria focada nesse território histórico e estratégico para a cidade. O próprio Jardim do Baobá, a primeira peça do Parque Capibaribe, foi criado em um local que foi alvo de várias caminhadas, que destacavam o valor ambiental daquele espaço que estava subutilizado como estacionamento no passado.

As Caminhadas Domingueiras se consolidaram como mais do que um simples passeio: tornaram-se um instrumento de educação urbana, valorização do espaço público e fortalecimento da cidadania. Mais do que olhar para o passado da cidade, as caminhadas ajudam a projetar um futuro onde ruas, praças e edifícios históricos sejam mais acessíveis, preservados e reconhecidos pelo seu valor.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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