*Por Rafael Dantas
Na década de 60, o pastor estadunidense Martin Luther King pronunciou o famoso discurso em que dizia ter um sonho: que seus filhos vivessem em uma nação onde não seriam julgados pela cor da pele. Um olhar potente e sintético para o futuro que sobreviveu mesmo à morte do seu autor e que influencia até hoje o movimento anti-racismo no mundo. Poucos anos antes, no Brasil, Juscelino Kubitschek sonhou com uma capital e lançou o desafio de fazer o País avançar 50 anos em 5. Em Pernambuco, nessa época, chegou o padre francês Louis-Joseph Lebret, especialista em planejamento econômico e urbano. Ele projetou para o Estado um caminho de desenvolvimento que passaria pela construção de um grande Porto no Litoral Sul e pela atração de uma refinaria ou estaleiro, além de um ramal ferroviário. Décadas depois, com o Complexo de Suape, a maioria das projeções também se tornaram reais. Nos três casos, a criação de uma visão mobilizadora rendeu frutos e marcou a história.
A visão é uma declaração que sintetiza o futuro que um país, um estado ou organização pretendem alcançar. Trata-se, portanto, de uma imagem inspiradora e mobilizadora a ser atingida. Em Pernambuco, os especialistas avaliam que a visão proposta por Lebret já foi atingida – mesmo que a ferrovia Transnordestina, também citada pelo pensador, por exemplo, não tenha saído ainda do papel. Para desenhar um novo ciclo de desenvolvimento para o Estado, conectado com os novos desafios do mundo contemporâneo e com as tendências do novo século, é preciso a projeção de novos horizontes de longo prazo a serem alcançados.
“As formulações do Padre Lebret já deram os frutos que poderiam dar. A provocação dele antecipou o Porto de Suape, a refinaria, os estaleiros e até montadora de automóveis, além do ramal da Transnordestina. Mas tudo isso são realizações da era do petróleo, rigorosamente do final do Século 19. Esse ciclo se encerrou. Colocam-se diante de nós os desafios de desenvolvimentos do Século 21”, afirma o consultor Francisco Cunha.
A visão é um dos passos iniciais do processo de planejar o desenvolvimento. Essa prática, no entanto, foi perdida no País e em Pernambuco ao longo das últimas décadas. De acordo com o professor da UFPE, Roberto Montezuma, entre os anos 1930 e 1960, o Brasil tinha um projeto, que colocou o País na vitrine do mundo, de uma forma criativa e inovadora. O docente afirma ainda que houve um segundo ciclo de planejamento nos anos da ditadura militar. No entanto, após a redemocratização, as estruturas governamentais que atuavam nesse campo foram consideradas como burocráticas e, aos poucos, desmontadas.
“Em alguns momentos da história brasileira, tivemos avanços icônicos. Um deles aconteceu dos anos 1930 aos 1960, quando tínhamos um projeto de País. Um grande desafio do Século 20 era a construção das nações. O Brasil partiu de uma visão de que era possível formar a nação brasileira, o País do futuro”, afirmou Montezuma.
Desse impulso nasceram a arquitetura moderna brasileira, a Bossa Nova, o Cinema Novo, a ascensão da literatura e do teatro, entre outros marcos. A construção da capital federal, Brasília, está incluída nesse grande conjunto de realizações do País.
Montezuma cita o livro Brazil Builds, lançado em meados do século passado pelo Museu de Nova York, para explicar como o País conseguiu dar um salto. “Há uma máxima na abertura do livro, que é uma publicação fruto de uma exposição feita em Nova York. Ela pergunta como é que esse país, que sempre foi periferia do mundo, pode, de repente, ser uma vanguarda do mundo? Será que foi o talento dos profissionais? Ele diz que não. Na verdade, isso só foi possível porque existia uma força política para que isso ocorresse. Mas, no final do Século 20 foi desmontada toda estrutura construída na época que valorizava o planejamento e a projeção do futuro do País”, analisa Montezuma.
A exemplo do Brasil, Pernambuco também teve os dias áureos de projetar os grandes de – safios de longo prazo e construir projetos a partir da visão de futuro construída para o Estado. No centro desse período estavam instituições fortes como a Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste), o Condepe (Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco) e a Fidem (Fundação de Desenvolvimento Municipal). As três instituições foram enfraquecidas nas últimas décadas.
UMA TENTATIVA DE RETOMADA DA VISÃO DE LONGO PRAZO
Pernambuco teve durante o Governo Eduardo Campos a possibilidade de retomar a construção de uma visão de longo prazo. No ano de 2014, a partir do consórcio entre a TGI, a Ceplan e a Macroplan, com apoio do Governo do Estado e do Movimento Brasil Competitivo, nasceu o Pernambuco 2035. Além de traçar uma visão para o futuro, foi desenhada também uma Carteira com Projetos Estruturantes do Setor Público, que norteariam o Estado por duas décadas. Mas o documento não foi absorvido pela sociedade, nem pelo poder público estadual. Com o falecimento de Eduardo Campos, o Pernambuco 2035 foi esquecido.
“Uma novidade desse documento é que era um Plano de Estado e não para o período de um governo. Trazia orientações estratégicas para o governo, para a sociedade, para os empresários, para as organizações da sociedade”, explicou Sérgio Buarque, coordenador técnico do plano, em reunião mensal da Rede Gestão, lamentando a descontinuidade da inserção deste norteador nas ações traçadas pelo poder público.
O economista Sérgio Buarque, apontou que poucas metas previstas para essa primeira década foram atingidas no Estado. Algumas, inclusive, pioraram, como a competitividade, por exemplo. “Sobre a posição de Pernambuco no ranking de competitividade, a ambição que se tinha era que em 2035 a gente chegasse a ser 7º lugar no País. Em 2011 estávamos em 14º. A meta era reduzir à metade essa posição, ficando atrás apenas dos estados do Sul e do Sudeste. O que é que aconteceu? Os dados de 2021 apontaram que caímos para 15º lugar. Estamos atrás de estados como Ceará, Alagoas e Pará”, lamentou o economista.
Se na competitividade, o Estado esteve distante de avançar nas metas, os indicadores de educação obtiveram desempenhos bem próximos aos traçados para a primeira década do Pernambuco 2035.
NOVO OLHAR PARA O FUTURO DE PERNAMBUCO
Com a maioria dos projetos apontados pelo Padre Lebret eram conectados à economia do petróleo e diante da não implantação do Pernambuco 2035, os analistas consideram que o Estado carece de um novo esforço para a formulação de uma visão de futuro. Além dos desafios históricos ainda não superados, há mudanças bruscas no mundo contemporâneo, decorrentes da pandemia da Covid-19, do avanço da digitalização da economia, das mudanças climáticas e das tensões globais. “Um Estado pobre em recursos naturais como Pernambuco não pode abrir mão da prospecção contínua de futuros e do planejamento estratégico público permanentemente atualizado”, advertiu o consultor Francisco Cunha.
A capital pernambucana, por exemplo, construiu uma visão de longo prazo com a ideia do Recife Cidade Parque, articulando o desenvolvimento urbano, social e ambiental das três grandes bacias do seu território (dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió). Após estudos produzidos na UFPE, nasceu o conceito de árvore d’água na cidade (onde as raízes são o mar, o tronco é o encontro das bacias hídricas e os galhos são meus rios), que inspirou outros projetos em sequência, como o Parque Capibaribe.
Da mesma forma que o Recife alcançou essa ilustração da árvore d’água e fixou um desafio para o marco dos seus 500 anos, em 2037, para Roberto Montezuma, o Estado precisa criar uma visão mobilizadora para o longo prazo. “A visão tem que ser coletiva e precisa ser sintetizada em um esquema gráfico e em uma frase potente que encante as pessoas e faça com que a população se mobilize para contruí-la. A visão tem que ser redentora, com a capacidade de ‘virar a mesa’ e de ser sustentável, de desenvolvimento, com objetivos conectando desafios locais e globais”, afirmou Roberto Montezuma. “Em uma geração é possível transformar um país, um estado ou uma cidade”.
Após o longo período de esquecimento do Pernambuco 2035 e dos terremotos sociais, políticos, climáticos e sanitários que o mundo atravessou, Sérgio Buarque sugere ser necessário revisar todo o esforço iniciado em 2014. “Pensando em 2035, precisamos rever muitas coisas da estratégia e dos próprios projetos para nos preparar para os novos desafios”.
O economista destaca que ao traçar a visão e o planejamento de longo prazo, o Estado se antecipa às tendências que sinalizam mudanças importantes que vão impactar o nosso território. “Em 2014, algumas coisas que hoje são praticamente consensuais, que iriam impactar o mundo, foram tratadas de forma leve. Por exemplo, a aceleração da transformação digital. A gente falava, mas ganhou uma velocidade e uma escala que a gente não pensava. As mudanças climáticas também”, afirmou Buarque.
A transição demográfica, o avanço da internacionalização da economia e a mudança da matriz energética são outros fatores no radar do futuro, que guardam tanto desafios como grandes oportunidades para Pernambuco ou para quem se preparar. Temas mais novos, como a atração de investimentos em hidrogênio verde ou dos cabos submarinos (conexões submersas no oceano), e outros antigos, a exemplo da ferrovia, exemplificam as oportunidades que o Estado está vendo passarem ao largo.
O engajamento da sociedade para projetar esse futuro, o suporte de instituições técnicas e a abertura do poder público para ouvir a comunidade e se comprometer com as agendas de longo prazo compõem um tripé para o Pernambuco do futuro. Qual será essa visão e os projetos prioritários inseridos nela? Para os especialistas, só um amplo debate social, com engajamento real dos pernambucanos, pode apontar.