*Por Eduardo Martins
“Todos os crimes, que a imaginação pode conceber, desde o lançamento ao mar de centenas de homens vivos até a morte, tudo cai como uma responsabilidade enorme de sangue sobre nossa cabeça. Eis por que hoje quando queremos livrar-nos sem abalo desse mal, não o podemos. Ele tem a idade de nosso país: nascemos com ele, vivemos dele. Foi como um vírus que se embebeu longos séculos em nosso sangue.”
A citação foi retirada do primeiro capítulo do livro “A Escravidão”, do pernambucano Joaquim Nabuco, que ele começou a escrever quando retornou ao Recife em 1869, com seus vinte anos ainda incompletos. Ainda hoje, 151 anos depois do que foi escrito pelo célebre abolicionista, o vírus do preconceito racial continua vivo e encarangado em nossa sociedade.
Infelizmente, os fatos mais recentes contribuem para isso. Nos EUA, o ex-segurança norte-americano George Floyd, homem negro de 46 anos, morreu asfixiado em 25 de maio de 2020, depois que Derek Chauvin, então policial de Minneapolis, ajoelhou-se no pescoço dele por pelo menos sete minutos.
Aqui, no Brasil, o menino Miguel Otávio, de 5 anos, morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo no Centro do Recife na última terça-feira (2). O endereço é onde a criança, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, morreu depois de ser enviado sozinho de elevador pela patroa da mãe, Sarí Côrte Real, a um andar mais alto e cair de uma altura de 35 metros enquanto a procurava. Autuada por homicídio culposo, a patroa pagou 20 mil reais de fiança para responder o processo em liberdade.
A cor da pele não deveria nos diferenciar uns dos outros, mas casos como estes nos mostram exatamente o contrário.
Milhares de pessoas foram às ruas nas duas últimas semanas, no mundo inteiro, e ainda continuam indo, para lutar contra o preconceito racial e atrocidades cometidas por alguns policiais. #BlackLivesMatter ou #VidasNegrasImportam se tornaram o nosso lema atual.
Mesmo passando por um dos piores momentos da nossa história recente, por conta da Pandemia da Covid-19, não podemos baixar a cabeça contra o racismo, que ainda ruge nos quatro cantos do planeta. Além dos protestos*, o saber, o aprendizado e a informação correta pode mudar toda uma cultura. Toda uma sociedade.
E, inserido no mesmo cenário, as histórias em quadrinhos tornam-se um poderoso instrumento de educação e de transformação social.
Contudo, assim como em outras formas de expressão artística – principalmente no cinema feito em Hollywood – os quadrinhos também possuem obras pejorativas e carregadas de preconceitos que mancharam um período passado de sua história. Desde dos primórdios da arte sequencial, pessoas negras vêm sendo retratadas de forma equivocada.
Nos quadrinhos norte-americanos de super-heróis, a integração de personagens negros sempre foi motivo de controvérsia. Homens e mulheres negras foram durante décadas relegados a meros coadjuvantes, impregnados de estereótipos, as vezes na selva, outras na periferia.
Inverter a ordem do protagonismo do herói nos quadrinhos americanos mainstream aconteceu com mais vigor no final dos anos 60 e ao longo da década de 70, quando explodiu nos Estados Unidos o movimento cinematográfico conhecido como Blaxploitation. Influenciando uma geração inteira, não apenas no cinema, mas também no campo da música, pintura, teatro e literatura, o movimento também acertou em cheio o universo dos quadrinhos.
Em junho de 1972, Luke Cage faz sua primeira aparição em “Luke Cage - Hero for Hire #1”, se tornando o primeiro super-herói negro como protagonista a ter um título próprio com o nome estampado na capa. Criado durante o auge da blaxploitation, Luke Cage é um ex-presidiário preso por um crime que não cometeu.
Após ser submetido voluntariamente a um procedimento experimental, ele adquire uma força sobre-humana e sua pele se torna inquebrável. Livre da prisão, ele se torna o “Herói de Aluguel” da Marvel Comics, combatendo o crime nas ruas de Nova Iorque.
Já a editora DC Comics também surge com seu primeiro super-herói negro e protagonizando seu próprio quadrinho: John Stewart, O Lanterna-Verde, co-estrelado pelo Arqueiro-Verde. O preconceito racial, o tráfico de drogas e a violência urbana transformam o arquiteto John Stewart no paladino no combate às injustiças acometidas ao povo afro-americano.
O movimento Blaxploitation surgiu para confrontar o modelo de cinema Hollywoodiano da época, porém não deixou de ser tema de discussão sobre como os seus protagonistas ainda carregavam alguns estereótipos raciais. O que nos leva a outro super-herói da Marvel, O Pantera Negra.
Um personagem que não é ajudante e não tem sua origem preconcebida em preceitos de cor ou raça. Criado em 1966, um pouco antes da Blaxploitation, o Pantera foi o primeiro herói negro que conquistou o público jovem e na direção certa quando se discute a representação do negro na narrativa gráfica de super-heróis.
A história do Pantera Negra é essencialmente ambientada em Wakanda, um reino africano fictício – altamente rico e com tecnologia avançada, livre dos clichês associados aos personagens negros daquela época – que eventualmente apareciam em guetos escuros, sujos ou em cenários urbanos degradados. Além de invocar poderes místicos ancestrais, o Pantera conseguiu unir inteligência acima da média e habilidade física fora do comum para combater seus inimigos.
Saindo um pouco do campo dos quadrinhos de super-heróis, existem diversas obras mais realistas e/ou biográficas, que mostram como o racismo sujou e continua sujando a história da humanidade até os dias atuais. Uma graphic novel em particular, merece menção: A Marcha, Livro 1: John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade. Lançada no Brasil em 2018 pela editora Nemo.
Este quadrinho surgiu depois que o assessor Andrew Aydin descobriu que seu chefe, o parlamentar John Lewis, um ícone nos Estados Unidos e uma das principais figuras do movimento pelos direitos civis, foi influenciado pelo quadrinho de 16 páginas conhecido como “Martin Luther King & The montgomery story”, de 1950. A partir disso, ele ajudou o próprio John Lewis a escrever a trilogia A Marcha.
O quadrinho retrata a longa batalha de Lewis pelos direitos humanos e civis, seu encontro com Martin Luther King Jr. e a luta para dar fim às políticas de segregação no país. Tudo isso magistralmente desenhado com toques de nanquim e aquarela pelo premiado quadrinista Nate Powell.
Do lado de cá, duas obras recentes do quadrinista brasileiro Marcelo D’Salete são fundamentais para entender o período de escravidão do Brasil: Cumbe e Angola Janga. Ambas publicadas pela editora Veneta, com edições lançadas em diversos países como EUA, Áustria, Espanha, França, Itália, Polônia, Portugal, entre outros.
Em Cumbe, Marcelo D’Salete conta a história de luta de negros escravos no período colonial. Lançado em 2014, o trabalho é fruto de uma pesquisa sobre o Quilombo dos Palmares, que o autor começou em 2006. Protagonizado por escravos, o romance gráfico mostra-nos de maneira inovadora a luta e a resistência dos negros contra as atrocidades que aconteciam nas senzalas. Em 2018, a versão americana do HQ, “Run for it”, conquistou o Prêmio Eisner, o Óscar dos quadrinhos.
Alimentado das pesquisas iniciadas em 2006 para escrever e desenhar Cumbe, depois de 11 anos, D'Salete nos presenteia com magnífico “Angola Janga - uma história de Palmares”. O traço marcante, carregado de técnicas de nanquim, aperfeiçoou-se e a narrativa nos prende do início ao fim, com a história de Zumbi e o Quilombo dos Palmares.
Não deu outra: Em 2018, o livro ganhou o Troféu HQ Mix de "melhor edição especial nacional" e o Prêmio Jabuti de "melhor história em quadrinhos". Isso prova o quanto o talento do quadrinista Marcelo D’Salete ainda vai elevá-lo à categoria de mestre dos quadrinhos.
“Pele me ajudará inclusive a corrigir uma injustiça histórica: apesar de ser um de meus primeiros personagens, o Jeremias nunca havia protagonizado uma revista sequer. E o faz agora, em grande estilo. Tanto que esta história forte, verdadeira, emocionante e profundamente necessária chacoalhou o nosso estúdio e, daqui pra frente, estaremos mais atentos à realidade que nos cerca. E os leitores verão essas mudanças também nos nossos gibis mensais”, disse Maurício de Souza em trecho do prefácio da HQ “Pele - Jeremias”, do roteirista Rafael Calça e o desenhista Jefferson Costa, lançada em abril de 2018.
Criado em 1960, por Maurício de Souza, para fazer parte da “Turma da Bermudão”, Jeremias é o primeiro personagem negro da Turma da Mônica. A reinterpretação da dupla Rafael-Jefferson é tudo que o personagem precisava para se fincar no primeiro escalão. Chico Bento sempre foi o meu personagem preferido, mas depois de ter lido “Pele” o meu favoritismo ficou dividido.
Jeremias vai enfrentar pela primeira vez o preconceito por causa da cor da sua pele. Não pense que é uma história para criança. O quadrinho é duro, realista e emociona a cada quadro. A dor que Jeremias sente é impossível não levar qualquer um às lágrimas. Com um final surpreendente, o quadrinho nos mostra uma triste verdade cotidiana e como Jeremias teve que aprender a luta diária contra o preconceito de cor.
As obras comentadas aqui: A Marcha, Cumbe, Angola Janga e Jeremias - Pele, deveriam ser conteúdos obrigatórios na formação escolar, tanto na rede pública, quanto na rede privada. Além deles, cito mais duas obras essenciais: em primeiro, a novela gráfica “Tungstênio”. Ela foi escrita e desenhada pelo ganhador do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, Marcello Quintanilha - que se passa em Salvador e retrata o cotidiano de personagens mais pobres da capital baiana.
Em segundo, a websérie em quadrinhos “Confinada”, de Leandro Assis e Triscila Oliveira, que mostra o racismo e desigualdade entre patroas e empregadas na pandemia do Covid-19. Com mais de 500 mil seguidores, a série ainda está em andamento, toda semana é publicado uma nova página, e a gente falou um pouco mais sobre a obra na estréia da Coluna Gibitown.
Educar através dos quadrinhos, desde cedo até a fase adulta, é transformar e modificar cabeças, cortando o preconceito e o fascismo pela raiz. E lembre-se: racismo é crime. Denuncie.
*Protestos pacíficos são a forma mais limpa e eficaz para combater a imprudência, a truculência e o preconceito. Através dos quadrinhos, Martin Luther King, Jr., defendeu os princípios da não-violência. Faça sua parte e nunca abaixe a cabeça. Vidas Negras Importam.
Sobre a Gibitown – Parafraseando Chico Science, a cidade do mangue ergueu uma nova e assim surge a Cidade do Gibi. O assunto aqui é quadrinhos. Marvel, DC, Image, editoras nacionais, quadrinhos independentes. Do clássico ao contemporâneo, vamos trazer o que existe de melhor no universo da nona arte em Pernambuco, no Brasil e ao redor do mundo. Sem distinção. A coluna é escrita pelo empresário e jornalista pernambucano Eduardo Martins. Para envio de materiais, sugestões e críticas, mande e-mail para edmartins@gmail.com