Qual o Centro do Recife que precisamos? Essa é a provocação da Aries (Agência Recife para Inovação e Estratégia) para entender os anseios dos moradores da cidade sobre a região central da capital pernambucana. A organização está realizando uma pesquisa de percepção com o objetivo de orientar a reabilitação urbana, dinamização econômica, conservação ambiental e melhoria da qualidade de vida nos bairros centrais. Embora abrigue monumentos e prédios históricos, muita atividade comercial e tecnológica, o Centro viveu um drástico esvaziamento de moradias e passa por um avançado processo de degradação urbana. Um quebra-cabeça entre potenciais e desafios que precisa ser remontado com a participação popular e de olho nas tendências de sustentabilidade do mundo contemporâneo.
A remontagem das peças que estão fragmentadas no território do Centro do Recife, na percepção dos especialistas, passa tanto por quem ainda resiste na região, a exemplo dos moradores ou profissionais, como pelos habitantes de toda a região metropolitana. Os incômodos e anseios são diferentes, para o comerciante, o universitário, o artista, mas alguns consensos apontam os caminhos de retomada.
A necessidade de qualificar a segurança do Centro e a revitalização do espaço, atualmente degradado, são algumas das percepções comuns. Outros fatores que são quase unanimidade no processo de reconexão deste território são a necessidade de oferecer moradia e a promoção de uma revitalização integrada e duradoura da região.
REPOVOAR O CENTRO
O arquiteto e urbanista Washington Fajardo considera que o aspecto fundamental para revitalizar o Centro do Recife é repovoar com moradores “Nenhum processo de reabilitação urbana tem sustentabilidade se não tiver pessoas morando”, assegura. Com o crescimento da capital, é nas outras cidades e nas periferias da Região Metropolitana do Recife onde a população foi encontrando suas moradias. Toda a economia imobiliária decorrente desse fenômeno criou uma conjuntura favorável para a expansão dos demais municípios e contribuiu para o esvaziamento da área central.
A reversão desse cenário não é fácil, na análise de Fajardo. “É preciso estimular tanto a oferta (disponibilização de unidades habitacionais), como a demanda. É necessário dispor de opções para quem tem desejo [de morar na região central do Recife]. Mas para despertar esse desejo é preciso se sentir bem no Centro. Com uma sensação de segurança. Um bom parâmetro é olhar para as crianças. É um lugar onde você viveria com seus filhos?”
A ausência de imóveis residenciais à disposição de moradores interessados é um dos motivos para a dificuldade de reocupação do Centro do Recife, segundo o presidente da CDL (Câmara de Diretores Lojistas), Fred Leal. Ele sugere que no processo de recuperar o Centro é preciso adotar medidas rápidas, além de pensar a governança e um plano integrado para a região.
“A primeira consideração é que as medidas para revitalizar o Centro da cidade precisam ser implementadas de forma imediata, mas abrangendo também o médio e o longo prazos. Precisamos de um plano geral, abrangente, como o que a Aries está desenvolvendo, pois o Centro precisa ser ocupado com moradias para dar vida a outras melhorias. Esse retorno de moradores é fundamental para esse espaço”, afirmou o presidente da CDL Recife, Fred Leal. “Outra sugestão é que todas as entidades, sejam municipais, federais ou estaduais, retornem ao Centro, trazendo secretarias e autarquias para a região”.
Nesse esforço para estimular moradias, Leal destaca a importância de evitar a favelização do Centro. Para o empresário, a retomada não pode ser apenas de imóveis de luxo, sendo necessário ofertar moradias acessíveis também. A Prefeitura do Recife divulgou a criação de uma parceria público-privada, na modalidade de concessão patrocinada, para a construção, manutenção e operação de quatro empreendimentos de habitação de aluguel social e dois empreendimentos habitacionais direcionados tanto à população de baixa renda quanto ao mercado popular, na cidade do Recife. Também há uma consulta pública online sobre a PPP Morar no Centro.
A secretária-chefe do Gabinete do Centro do Recife, Ana Paula Vilaça, revela que após focar em ações de curto prazo, como a zeladoria, os incentivos fiscais e a promoção da cultura, material e imaterial, o gabinete está voltado para ações mais amplas e estratégicas. “Atualmente, está sendo elaborado o Recentro na Rota do Futuro – Plano do Centro do Recife de médio e longo prazos. Trata-se de uma ação que visa a formular prioridades estratégicas que promovam o desenvolvimento, combinando reabilitação urbana, dinamização econômica, conservação ambiental e patrimonial na região central da capital pernambucana, com foco nos bairros do Recife, São José e Santo Antônio”.
CONHECER PARA CUIDAR
Para recuperar a atenção e o cuidado dos recifenses pelo Centro, o consultor e presidente do Conselho de Administração da Aries, Francisco Cunha, defende que sejam adotadas ações para ampliar o conhecimento da população sobre esse território estratégico para a cidade. “Como se diz popularmente: ‘quem ama cuida’. Todavia, para amar é preciso conhecer. Suspeito que exista pelo menos uma geração inteira que nunca pisou no Centro do Recife, em especial em Santo Antônio e São José. Pode até passar de bicicleta no domingo mas, pisar mesmo, nunca pisou. Como, então, preservar o desconhecido?”
A escuta da população sobre esse território é um passo importante na análise do consultor. “O conhecimento que reputo indispensável pode e deve ser ampliado para aquele referenciado por pesquisas científicas e de opinião em cujo âmbito se inscreve a presente pesquisa. Afinal, quem não conhece, não gosta, nem cuida. Isso serve para os planos também”, afirmou Francisco Cunha.
O conhecimento, que pode gerar desejo de ocupar ou morar, é um dos combustíveis para a reativação desse território. “Não tem como pensar em revitalizar, em restaurar, em reconfigurar o Centro do Recife, sem haver um desejo, uma vontade”, apontou o músico, pesquisador e ex-secretário de Cultura de Pernambuco Silvério Pessoa. “A gente pensa em revitalizar, reconfigurar, eu acho que até o termo correto seria humanizar o Centro. A tração para esse retorno ao Centro necessita de vontade política, inclusive buscando recursos do Governo Federal e de um diálogo amplo, participativo e frequente com a sociedade.
Além das pesquisas da Aries e da consulta da PPP Morar no Centro, o próprio Recentro dispõe de uma estrutura de governança cidadã, que integra 80 entidades públicas, privadas e do terceiro setor, que já geraram cerca de 300 sugestões e demandas para o Recentro. “Esse diálogo constante e democrático com a sociedade deu origem a Coordenação Colegiada da Instância de Governança Cidadã do Recentro (IGCR), que é um espaço de escuta social que visa a discutir projetos e promover debates sobre temas relacionados ao Centro do Recife”, afirma Ana Paula Vilaça. Dos 80 atores estratégicos do Centro, 70% deles são de instituições privadas, academia e terceiro setor.
ESCUTA AMPLA, ALÉM DOS ATORES ATUAIS DO CENTRO
O artista e pesquisador Silvério Pessoa defende, inclusive, uma escuta mais ampla dos moradores dos bairros centrais sobre esse processo de retomada. “O Centro do Recife pertence a todo pernambucano. E isso inclui principalmente as áreas periféricas, os subúrbios, as favelas, as quebradas, as comunidades, pertence também a todas as expressões culturais, à religiosidade popular, ao Carnaval, ao São João, ao Natal, a um turismo religioso.” Ele enfatiza a importância de ouvir líderes comunitários, representantes de diversas expressões culturais e artistas de diferentes áreas.
Essa preocupação de uma leitura mais plural das demandas para o Centro do Recife também foi destacada por Fajardo, que ressaltou o desafio da cidade de atrair moradores das periferias e de outros municípios da região metropolitana para morar nos bairros centrais.
Estudante de publicidade, Iasmin Ferraz, 20, mora no bairro do Jordão, mas por muito tempo estudou nos bairros centrais do Recife. Ela testemunha ter visto muitas mudanças na região durante sua vida escolar, mas ressalta desafios que ainda não foram vencidos. “Uma sugestão que tenho para melhorar ainda mais o Centro do Recife é investir na revitalização das áreas públicas. Praças e parques bem cuidados não apenas embelezam a cidade, mas também criam espaços onde as pessoas podem se reunir, relaxar e apreciar o ambiente urbano. Isso poderia ajudar a atrair mais moradores e turistas para o Centro. A região tem um rico patrimônio histórico que deve ser preservado. Investir na restauração de edifícios antigos é uma maneira de manter viva a cultura e a história da cidade”, sugere a estudante. “O Centro que eu quero é um lugar onde a história encontra o futuro e onde a comunidade prospera. É um espaço onde as pessoas se reúnem para viver, aprender e crescer, tornando-se verdadeiramente o coração pulsante da cidade”.
Investir na segurança para garantir a sensação de se estar seguro no Centro do Recife é uma defesa que encontra unanimidade de especialistas, aos comerciantes e consumidores. Essa sugestão vem muito acompanhada da crítica à iluminação pública da cidade. “Reforçar a presença policial e melhorar a iluminação pública seria um grande passo para aumentar a sensação de segurança nas ruas. Ruas bem iluminadas, policiamento eficiente e a presença de câmeras de segurança garantem que todos se sintam mais seguros ao explorar o Centro, independentemente da hora do dia”, considera Iasmin Ferraz.
Apesar de apreciar o Centro do Recife e guardar boas memórias dos tempos em que estudou no Ginásio Pernambucano, ela afirma que morar nos bairros centrais da cidade nunca esteve no seu radar. “Nunca pensei em morar no Centro, principalmente devido à minha preferência pelo ritmo mais tranquilo da vida nos subúrbios. Eu sempre valorizei a serenidade das manhãs com o canto dos pássaros e o ambiente mais espaçoso e sereno que os subúrbios proporcionam. Embora o Centro da cidade ofereça muitas comodidades e oportunidades, como vida noturna vibrante e fácil acesso a museus e restaurantes, minha preferência pelo ambiente mais calmo sempre foi a principal razão para não considerar a ideia de morar no Centro”.
SERVIÇOS MODERNOS E POSICIONAMENTO INTERNACIONAL
O consultor, fundador do Iperid e ex-secretário executivo de Relações Internacionais do Governo de Pernambuco, Gilberto Freyre Neto, destacou que o Centro do Recife possui uma rica história como cidade comercial, remontando aos tempos em que era um ponto na famosa Rota da Seda chinesa no Século 16. Ele avalia que a cidade tem a oportunidade, neste momento, de refletir sobre seu papel no mundo contemporâneo e recuperar seu protagonismo na distribuição de produtos e serviços, aproveitando sua localização estratégica e olhando para o comércio moderno, muito mais internacionalizado que se diferencia daquele de 500 anos atrás.
“O Recife tem tradicionalmente sua história de cidade-mascate”. Gilberto Freyre Neto considera que a cidade tem condições de se posicionar de forma estratégica na oferta de produtos e serviços modernos, atendendo tanto o Nordeste, onde o Estado tem uma condição logística favorável de acesso, como ao exterior, incluindo as oportunidades comerciais com o continente africano. Ele destaca a referência recifense em tecnologia, configurada no Porto Digital, por exemplo, que ancora a economia do Bairro do Recife.
“Pernambuco e o Recife, como sua capital, têm a condição de olhar e de fazer parte desse novo modelo de desenvolvimento comercial. A logística sempre falando alto e a produção e a prestação de serviços modernos, juntamente com o fornecimento de mercadorias, transitando com a belíssima condição de liderança nos campos da tecnologia, da saúde e numa diversidade de outros campos que faz com que Pernambuco e o Recife trilhem o caminho do futuro a sua melhor condição”, destacou Gilberto Freyre Neto.
O PAPEL DA CULTURA NA RETOMADA
Embora o comércio e as empresas tecnológicas do Porto Digital tenham papéis protagonistas na dinâmica da área central do Recife, a cultura tem um grande potencial a ser explorado. Silvério Pessoa destaca a importância do setor na reativação dos bairros centrais do Recife, onde estão concentrados, por sinal, os principais teatros e muitos dos museus da capital. O artista defende que esse território não pode ser mobilizado apenas em suas festividades sazonais, como o Carnaval e o Natal, mas carece de uma operação regular e eficaz de todo o patrimônio público nele localizado. “O Cinema São Luiz, os museus estão ali no Centro, a Casa da Cultura, o Teatro Valdemar de Oliveira que pede socorro, as pistas de skate, as praças como Parque 13 de Maio, a orla do Capibaribe. É preciso fazer com que esses espaços funcionem. Constantemente, constantemente”.
Diante de um conjunto relevante de espaços voltados para cultura e associados ao turismo e lazer, Silvério considera que a mobilização completa desses lugares só seria possível a partir da parceria entre as Secretaria de Cultura do Estado e do Recife, da Fundarpe, da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, das Secretarias de Turismo do Estado e do Recife e da Empetur.
UM CENTRO ACESSÍVEL
Na visão da universitária Jéssica Pacheco, que tem a doença dos “ossos de vidro” e usa uma cadeira de rodas motorizada para se deslocar, o Centro do Recife deve ser um lugar que celebre a diversidade humana e promova a acessibilidade de maneira abrangente. Ela enfatiza que a região precisa ser inclusiva, valorizando as singularidades de todas as pessoas e espaços. A acessibilidade é um tema central em sua visão.
“O Centro que eu preciso retrata todas as pessoas e de todos os espaços. Nele precisa ‘caber toda a diversidade humana’, que seu valor em particular seja reconhecido e realçado. Indo direto ao ponto, eu estou querendo falar da acessibilidade. Nela há, no mínimo, sete dimensões, a arquitetônica, a comunicacional, a programática entre outras. Porém, a mais importante é a atitudinal. Esta se refere às nossas posturas frente a situações de pessoas. Assim, essa é a realidade atual, que repetidamente é menosprezada, como evidenciado, por exemplo, com as calçadas que, de tão degradadas, me permitam até falar que são inexistentes”.
Jéssica também ressalta a necessidade de melhorias práticas, como sinalizações táteis, placas com indicações em Braille e sons em faixas de travessia, para tornar o cenário urbano mais acessível. “No dia a dia, os acessos aos serviços comerciais e públicos, ao lazer, à mobilidade em transporte, são difíceis e inacessíveis. Eu me surpreendo quando eu consigo fazer o que eu quero. Sim, eu devo poder escolher o que eu quero e não me contentar com o que está disponível. Tudo com autonomia, conforto e segurança, esses são os pilares da acessibilidade. O Centro do Recife, como qualquer outro espaço, deve ser o espelho de quem nele habita, diverso, vibrante e sem inimigos para ser o seu máximo”.
OUVIR, PLANEJAR E GOVERNAR
Fajardo considera que o Recife teve passos importantes para recuperar o Centro, como despertar a vocação tecnológica para revitalizar o Bairro do Recife e construir um gabinete específico para a região central, o Recentro. “O Recife tomou uma decisão muito acertada de ter priorizado a governança. Isso não é muito comum. Geralmente as cidades fazem um estudo, um plano, um projeto. As cidades passam anos tentando entender, fazendo diagnóstico. O Recife fez de maneira correta ao criar o gabinete do Centro. Se estamos fora desse território há muito tempo, significa que não o conhecemos em profundidade, é preciso imersão. O gabinete é um compromisso com o território e com as pessoas de lá. Tenho que aprender primeiro, conhecer, fazer perguntas e ouvir”.
Após essa imersão no território, o momento é da escuta mais ampla da população para a formulação das políticas públicas. A revitalização do Centro do Recife passa por remontar o quebra-cabeças do seu tecido urbano, que foi fragmentado no passado, já com muitas peças perdidas. As novas peças, no entanto, precisam dialogar com desejos cotidianos da população, como iluminação e limpeza, e tendências globais do século 21, como a sustentabilidade e as novas tecnologias. A escuta da população sobre o Centro que os moradores do Recife querem é indicado pelos especialistas como um passo estratégico na montagem da política pública – e não apenas de governo – que apontará para a re-humanização dos bairros centrais da capital.