Pessoas oram de mãos dadas vociferando numa língua difícil de entender, conhecida no meio evangélico como “língua estranha”. Outros de mãos erguidas abençoam bancadas e objetos, enquanto alguém, de Bíblia na mão, discursa em alta voz. Não, elas não estão dentro de um templo. Tudo acontece em um lugar nada comum à tal prática: a câmara dos deputados. A cena que aparece logo nos primeiros minutos de “Apocalipse nos Trópicos”, documentário de Petra Costa, serve de prenúncio ao que está por vir.
Registros de bastidores revelam nuances que não costumam aparecer em palavras e gestos de figuras públicas quando orientadas por uma assessoria em entrevistas para a imprensa. É o que mostra o novo trabalho de Petra. A diretora teve acesso privilegiado a conhecidos nomes da política como Sóstenes Cavalcante, líder da bancada evangélica, e o presidente Lula, da mesma forma que em “Democracia em Vertigem”, filme indicado ao Oscar em 2020.
De todos os personagens, um chama a atenção por sua influência na política brasileira nos últimos anos: Silas Malafaia. A câmera acompanha o pastor em situações longe dos púlpitos e palanques. Uma cena inusitada mostra Malafaia dirigindo e batendo boca com um motoqueiro. O religioso justifica a atitude lembrando que Jesus também foi duro ao chicotear pessoas que faziam comércio na frente do templo. Em outro momento, Malafaia orgulha-se da liberdade que tinha na relação com Jair Bolsonaro e da influência que exercia nas decisões do ex-presidente, como aconteceu na escolha do pastor presbiteriano André Mendonça para o STF, o ministro “terrivelmente evangélico”.
O documentário é apresentado em capítulos, costurado por reflexões em off da diretora, ilustradas por pinturas de temáticas apocalípticas que exibem inferno e morte, obras de artistas como o holandês Hieronymus Bosch. Inferno e morte representados da mesma forma nas sequências seguintes por áudios de profissionais da saúde de Manaus desesperados por falta de oxigênio e cenas de tratores cobrindo de terra centenas de covas em enterros coletivos durante a pandemia de Covid.
“Apocalipse nos Trópicos” expõe a contradição de um discurso dominador e excludente que clama por liberdade na ânsia por um governo teocrático. Tipo de discurso que culminou na tentativa de golpe no fatídico 8 de janeiro. A história mostra quão sombrios foram os períodos em que religião e política decidiram marchar juntas. Para o bem da democracia, que esse cálice seja afastado da política brasileira.
“Apocalipse nos Trópicos” foi exibido no Janela Internacional de Cinema do Recife. Ainda sem previsão de estreia no circuito comercial.