Nesta última reportagem da série "3 Rios, 3 Comunidades, 3 Desafios", o destaque é a Vila Arraes, banhada pelo Capibaribe. A produção é apoiada pelo Programa de Acelerando a Transformação Digital, desenvolvido pelo International Center for Journalism (ICFJ) e Meta, em parceria com associações brasileiras de mídia.
*Por Rafael Dantas
*Fotos: Felipe Karnakis
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As famílias de Daniela Moura, 36 anos, e Edna Souza, 47 anos, moram a poucos metros do Rio Capibaribe, na Vila Arraes, e a poucos quilômetros da Universidade Federal de Pernambuco. A primeira está no bairro desde a infância e há mais de uma década lida com a entrada das águas em sua casa. A segunda mora há cinco anos na região e nunca tinha vivido a experiência de ver seus móveis boiando. No ano passado, ambas viram suas casas serem inundadas, uma até o telhado e a outra chegando no primeiro andar. Hoje, o pior já passou, mas os rastros emocionais, econômicos e sociais permaneceram. O sono de ninguém é mais o mesmo. O medo é que “do nada” as chuvas elevem o nível do rio mais uma vez.
As águas e curvas sinuosas do Capibaribe que estão a poucos metros de Daniela e Edna foram a inspiração de muitos versos de João Cabral de Melo Neto. Além da natureza, ele olhou para os seus habitantes. O poeta denunciava em 1950 no clássico Cão sem Plumas a miséria da época vivida na capital. O cenário não é o mesmo, mas as mudanças climáticas, com suas torrenciais chuvas, colocaram a lama na casa de milhares de ribeirinhos. Porém, o mesmo rio que mostrou sua força nas enchentes, também é o motor da perspectiva de uma nova cidade para o futuro, enfrentando problemas tanto do passado, como do presente.
AS ÁGUAS PASSARAM, AS MEMÓRIAS PERMANECEM
Aquele rio / está na memória / como um cão vivo / dentro de uma sala. Assim o poeta descreve o Capibaribe. A memória dos pernambucanos sobre os dias mais revoltosos do rio remonta às cheias dos anos 1960 e 1970. Houve um episódio menor em 2010 e uma nova grande enchente em 2022.
Daniela Moura comprou sua casa há 11 anos, mas desde os 7, está na comunidade. Dona de casa, com três filhas, uma especial de 15 anos e outras de 14 e 8, ela chegou no local, após um antigo morador ter ido embora, depois da enchente de 2010. Desde então, estava acostumada às marés altas que levam águas para dentro de sua residência. Mas, ela nunca pensou que passaria por uma cheia como a de 2022, quando até o telhado ficou submerso.
“Todo ano minha casa sempre enchia, mas nunca pensei que teria uma cheia de tomar uma proporção tão grande. Foi muito rápido. Não tive tempo de pegar nada. A única coisa que fiz foi abraçar minha filha que é especial, peguei as outras no braço. Abracei a gordinha e saí correndo no meio da água, que já estava na cintura. Eu sou baixinha. Tive que sair pulando. Foi uma cena que infelizmente não consegui esquecer. Até hoje tomo remédio controlado, tenho depressão. As pessoas dizem: passou. Passou para quem não estava ali naquele lugar. Mas quem conviveu foi a pior coisa que vi na minha vida”.
As águas não voltaram a entrar na sua casa. Mas a memória permanece dentro da sala e no choro das filhas quando começa a chover. Apesar de Daniela já ter sobrevivido a uma queda de barreira, que ainda deixou marcas no seu corpo, a enchente é a pior lembrança que ainda a atormenta.
Em outra região da mesma comunidade, pertinho de outra margem do rio, está a família de Edna Souza. A localidade é conhecida como Beco da Baiúca ou Malvinas. Ela morava antes em Camaragibe. Com o marido e uma filha já adulta, mudou-se para deixar o aluguel. Apesar da proximidade, o rio nunca havia adentrado em sua residência, que tem um primeiro andar.
Em 2022, com a chuva forte, ela recebeu em casa sua netinha com 2 anos, confiando que as águas não chegariam. Mas o rio tomou todo o térreo e no primeiro andar ficou na altura da sua coxa. Diante da situação de muito risco, seu marido abriu um buraco na parede do banheiro do andar superior para a família deixar a casa.
“Ao lado da minha casa tem umas placas que o vizinho colocou para fazer uma divisão do terreno. Essas placas ficaram boiando. Os vizinhos juntaram as placas e fizeram um cordão humano para a gente passar. Minha neta estava dormindo com a gente, porque já tinha entrado água na casa de uma das minhas filhas. Foi rápido demais. Foi horrível. Já ficamos amedrontados. Em dia de chuva já não dormimos. Nosso psicológico não é mais o mesmo. Eu não queria voltar, chorava. Mas é a casa da gente”, contou Edna.
Além da saúde mental, elas lamentam a perda dos bens construídos por toda uma vida que se diluíram nas águas em poucos minutos. Um mínimo de conforto construído em décadas que precisou ser removido junto à lama, após a descida das águas. E ainda agradeceram pelo fato de não terem perdido ninguém de suas famílias.
O professor Wemerson Silva, do departamento de Ciências Geográficas da UFPE, destaca que essas ocupações de baixa renda são resultado de um processo histórico de especulação imobiliária. “Os melhores espaços da cidade foram deixados para classe média e alta, enquanto lugares que não teriam condição de habitação, sejam perto do rio, sejam áreas de morro, sobraram para população que está à margem social. Foram processos de ocupação espontânea sem um mínimo de planejamento. Essas pessoas não deveriam estar ali, mas estão por não terem condições financeiras e por não haver políticas habitacionais para locais mais seguros”.
MONITORAMENTO POPULAR E DEMANDA POR INFRAESTRUTURA
Com os impactos da enchente, o trabalho da Associação Gris Espaço Solidário foi amplificado. A ONG criada pela cientista social Joice Paixão, em 2018, nasceu para promover aulas de reforço escolar para crianças com dificuldades de aprendizagem e auxílio lúdico-terapêutico. Durante a pandemia, o foco virou assistencialista. Mas após a cheia, a pauta climática, que sempre esteve presente, entrou forte na atuação da associação.
“Muitas das nossas ações no primeiro semestre foram voltadas para criar um plano comunitário de adaptação às chuvas”. A ONG elaborou, por exemplo, um Relatório do Levantamento de Risco e Vulnerabilidade da Comunidade de Vila Arraes, em que aponta a situação de 166 residências. Em paralelo à preocupação climática, o centro segue com atividades específicas de educação e lazer para crianças, além de focar no atendimento às mulheres empreendedoras.
Como os moradores têm dificuldade de acesso (e mesmo de leitura) aos relatórios emitidos pelas agências de climatologia, Joice se dedicou a entender todos os gráficos de alertas da Apac, por exemplo, e a traduzir esses informes para a população. Quando chove, ela grava áudios que circulam nos diversos grupos de WhatsApp dos moradores da comunidade. Foi criado até um conjunto de vídeos, a série Se Liga, Bença!, para oferecer dicas de como a população deve proceder, se proteger e cuidar de si e de suas famílias durante as fortes chuvas. Além das orientações do que fazer, ela também precisa desmistificar as fake news que circulam. Para uma população traumatizada, as mensagens falsas de que “a barragem foi aberta” geram mais angústias e preocupações.
Mais que mobilizar doações para as famílias que perderam tudo, manter o apoio às crianças mais carentes e emitir os comunicados, a associação tem um papel na cobrança por mais infraestrutura de resiliência climática da comunidade. “As demandas da vila são de longe o saneamento básico, a drenagem e o abastecimento d’água. Esses são os três principais problemas pensando apenas em infraestrutura”, enumera Joice Paixão.
Ela também relata as dificuldades para o escoamento das águas. “Temos um problema de drenagem porque o rio abraça a vila. Temos duas entradas que alagaram no ano passado”, explica Joice, que é secretária da Rede de Adaptação Climática Antirracista e coordenadora do projeto Governança Intersetorial Inclusiva para o enfrentamento do Racismo Ambiental. Para enfrentar a falta d’água, muitos moradores, segundo ela, cavaram poços, mas devido à proximidade do rio que está poluído, a água não tem segurança sanitária.
SOLUÇÕES PARA A CIDADE, NO CURTO E LONGO PRAZO
A grande expectativa dos especialistas é para o Promorar-Recife (Programa de Requalificação e Resiliência Urbana em Áreas de Vulnerabilidade Socioambiental). O programa nasceu como uma resposta à necessidade de intensificar os investimentos em prevenção e o fortalecimento da capacidade de adaptação da infraestrutura urbana da capital pernambucana aos eventos extremos das mudanças climáticas. A prefeitura mobilizou o investimento de R$ 2 bilhões, sendo a maioria captados via BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), com o objetivo de beneficiar 40 comunidades na capital.
Em nota, o poder municipal afirmou que: “A Prefeitura do Recife esclarece que uma solução para a comunidade Vila Arraes está em fase de estudo. Já foi feito o levantamento aerofotogramétrico, houve reuniões com os moradores para iniciar o processo de escuta das reivindicações e as soluções técnicas possíveis estão sendo avaliadas”.
As moradoras mencionaram terem tido contatos iniciais com representantes da prefeitura. Daniela e Edna querem sair das proximidades do rio. As preocupações são de não serem deslocadas para muito longe da comunidade onde moram ou de receberem uma indenização insuficiente para comprar um imóvel.
As soluções para o tamanho do desafio da Vila Arraes e das comunidades ribeirinhas ao longo do rio não são simples, nem podem ser resolvidas de forma individualizada, segundo a doutoranda em Geografia pela UFPE, Camilla Monte. Ela estudou o processo de habitação às margens do Rio Capibaribe e também, especificamente, o bairro da Várzea.
“Historicamente a Várzea enfrenta as cheias. O nome do bairro vem justamente da geomorfologia local do relevo. É uma área baixa, próxima ao rio. É comum na várzea dos rios ocorrerem cheias. Com a maré alta e mais chuvas, o rio vai transbordar para área mais próxima. Esse é um dos bairros mais suscetíveis para alagamento do Recife. Mas é preciso pensar numa estratégia a nível da cidade, pensar em conjunto com os outros bairros, afinal o alagamento não ocorre só ali, naquela comunidade”, afirmou Camilla. O processo histórico de ocupações espontâneas, acelerado durante a implantação da UFPE, com a construção de casas cada vez mais próximas ao curso d’água, somados aos aterros no rio e nas áreas de mangue, compõem esse quadro que foi agravado pelas mudanças climáticas, segundo a pesquisadora.
Uma solução urbana de longo prazo em construção é o Parque Capibaribe, que promove o conceito do Recife como uma cidade-parque. A iniciativa é um convênio da UFPE com a Prefeitura do Recife, que prevê um sistema de parques integrados ao longo das duas margens do rio na capital pernambucana, totalizando 30 km. O projeto foi estendido, recentemente, para os rios Beberibe, Tejipió e a frente marinha (a orla da cidade) e é denominado de Recife Cidade Parque.
“A Cidade Parque é um conceito que surgiu a partir dos estudos feitos com o projeto Parque Capibaribe. O que seria um parque linear, viu-se a necessidade de se criar uma zona parque, ao longo do Rio Capibaribe, com 500 metros de cada lado. Não funciona construir um parque às margens do rio se não integrá-lo às comunidades adjacentes”, defende o arquiteto e urbanista Luiz Vieira, que é professor da UFPE e um dos coordenadores do Projeto Parque Capibaribe.
O projeto teve como duas primeiras peças de conexão o Jardim do Baobá, na Jaqueira, e o Parque das Graças, no bairro das Graças. Ambos numa área mais central da cidade. Porém, os próximos passos do projeto já prevêem a chegada em regiões de baixa renda da cidade. “No momento estamos terminando o Parque das Graças, que vai inaugurar em fevereiro a ligação entre as pontes da Torre e da Capunga. Devemos ter em breve a licitação do trecho entre a Jaqueira e a Ponte da Torre. Estamos analisando outros trechos, a partir de um novo convênio do Recife Cidade Parque na Ilha Joana Bezerra, do Coque até a Vila Brasil. Haverá também uma área na Caxangá, perto da área do bairro do Cordeiro”, antecipou Luiz Vieira.
Um dos conceitos que norteia a iniciativa é a participação comunitária para construir soluções. “Se a população não se desenvolve com o projeto, basicamente não funciona. Você pode ter um melhor desenho, mas se não atende a necessidade daquela comunidade e se ela não se identifica, torna-se um projeto sem alma. O trabalho em conjunto da universidade, instituições públicas e com a população é muito importante”, afirmou Luiz Vieira.
Com as mudanças climáticas, além da destinação a lugares mais seguros para os moradores, Wemerson Silva sugere extinguir a prática de canalizar os rios. “É uma ideia muito usada e ultrapassada, que aumenta o fluxo de velocidade da água com as chuvas e intensifica episódios de inundação. É preciso investir na renaturalização dos canais fluviais e na preservação de áreas à margem dos rios ou criação de espaços públicos que não sejam de moradia”.
O Parque Capibaribe vai ao encontro deste pensamento. “O projeto apresenta um sistema de parques e ruas de infiltração integrados à malha urbana da Zona Parque, ao longo do rio. Essas ações tendem a amenizar as mudanças climáticas por meio do sequestro de carbono, pelas práticas de sustentabilidade e plantio de árvores. Isso ameniza a temperatura pelo sombreamento e pela ventilação”, explica o urbanista. “As intervenções ajudam ainda a reter as águas das chuvas por meio de jardins drenantes, lagoas de retenção e pisos permeáveis, contribuindo para melhorar a drenagem urbana. Também amortiza o impacto das enchentes pela preservação dos manguezais e restituição da mata ciliar”, esclarece o urbanista. .
João Cabral de Melo Neto escreveu que “Aquele rio / é espesso / como o real mais espesso. / Espesso / por sua paisagem espessa, / onde a fome / estende seus batalhões de secretas / e íntimas formigas. (…) Espesso, / porque é mais espessa / a vida que se luta / cada dia, / o dia que se adquire / cada dia / (como uma ave / que vai cada segundo /conquistando seu vôo)”.
A luta dos moradores ribeirinhos é espessa, tornou-se ainda mais com a intensidade das mudanças climáticas e da crise socioeconômica que se agravou com a pandemia. Os caminhos para soluções do Capibaribe, Tejipió e Beberibe, destacados nesta série, também são densos de propostas – que vem dos movimentos populares especialistas e dos gestores públicos – e precisam ganhar corpo nas suas execuções.
A Vila do Tetra, banhada pelo Beberibe, em Olinda, o bairro de Coqueiral, entranhado no Tejipió, e a Vila Arraes, abraçada pelo Capibaribe, são três comunidades simbólicas dos desafios nunca superados de moradia no Estado e no País. Problemas atravessados pela desigualdade social e pelos eventos extremos do clima, mas que têm hoje soluções em andamento. Com recursos já captados pela Prefeitura do Recife, com os estudos acadêmicos desenvolvidos por anos pelas universidades locais e com a atuação de lideranças comunitárias fortes nos territórios, existe uma equação possível no horizonte dessas cidades, desses rios e dessas famílias historicamente invisibilizadas.
*Rafael Dantas é jornalista, doutorando em comunicação pela UFPE e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)