Figura imponente em postais sobre o Recife, o Rio Capibaribe parece encarnar uma serpente que rasga e divide regiões em todos os sentidos. Testemunha ocular de quão desigual pode ser uma cidade, o rio cruza bairros ditos nobres e, seguindo o fluxo, desliza sob humildes palafitas. Imponência que, de longe, anuvia o que, de perto, faz arder nossas narinas: o odor acre de águas enfermas de poluição, contaminadas pela ação do homem de consciência e moral igualmente enfermas. Extremos que serviram de matéria prima a João Cabral de Melo Neto ao escrever o poema O Cão Sem Plumas, e, anos depois, inspiraram a cineasta Katia Mesel a produzir o curta-metragem Recife de Dentro pra Fora.
O Cão Sem Plumas foi lançado em Barcelona, em 1950, antes da peça em versos, Morte e Vida Severina, trabalho mais conhecido do poeta, publicado cinco anos depois. O poema é dividido em quatro partes: a primeira e segunda recebem o título de Paisagem do Capibaribe. A terceira e quarta, Fábula do Capibaribe e Discurso do Capibaribe, respectivamente. Ainda que protagonista nos versos, o rio sempre tem sobre as margens a sombra do homem. A ligação rio-homem é intensa e íntima de tal maneira que os torna única essência, rio, homem, lama e pele.
Recife de Dentro pra Fora estreou em 1997. Com trilha sonora de Geraldo Azevedo, passou por grandes festivais, ganhando prêmios como o de Melhor Documentário no Festival de Vitória, Melhor Fotografia em Gramado e o Prêmio Multishow de Melhor Trilha sonora no Festival de Brasília. É possível considerar o curta uma adaptação cinematográfica do poema de João Cabral, até porque, para ser classificada assim, a obra fílmica não precisa necessariamente ser fiel a cada estrofe do texto.
O curta desvela, já no primeiro ato, detalhes da relação entre João Cabral e o Capibaribe, nas palavras do próprio poeta, que nasceu e viveu testemunha do correr das águas turvas e sujas do rio. Relação que, ouso dizer, não se deu por completa, pois, como revela, nunca se banhou naquelas águas.
Protagonista de uma grande tragédia, o Capibaribe avança e atua para uma plateia que, por vezes, participa do espetáculo. Público que assume o arquétipo de antagonista ao lançar no rio o pior de si. Como fez João Cabral em O Cão Sem Plumas, Katia Mesel inverte o ponto de vista que agora é do rio e não do homem. O rio encara a cidade e geme de dor. O cão em decomposição boiando é metáfora perfeita para um rio que corre, porém sem vida.