Sobre A Nova Lei De Parcelamento, Uso E Ocupação Do Solo Do Recife - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
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Francisco Cunha

Sobre a nova lei de parcelamento, uso e ocupação do solo do Recife

*Por Francisco Cunha

Desde os bancos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde me graduei em Arquitetura e Urbanismo, que achava esquisito o contraste entre a quantidade de leis urbanísticas existentes no País e a má qualidade da urbanização das cidades brasileiras.

Depois que me formei, tomei outro rumo profissional, comprei um carro, entrei nele e passei 25 anos “fora da cidade” (isso porque, mais adiante entendi, que quem só se locomove de carro fica fora da cidade mesmo que continue morando nela).

A coisa continuou assim até que decidi ilustrar um livro que estava escrevendo sobre a história de Pernambuco com fotos do Recife contemporâneo baseado no entendimento de que “O Recife é o museu vivo da história de Pernambuco”, frase do historiador Leonardo Dantas Silva. Fazendo, de dentro do carro, o registro dos locais para o estudo fotográfico, me dei conta de que não conseguia ver tudo e decidi que, terminado o livro, iria caminhar pela cidade para tentar descobrir o que não estava conseguindo de forma motorizada.

15 anos depois dessa decisão e após ter caminhado cerca de 50 mil quilômetros dentro do Recife (mais do que a circunferência da Terra, o que me faz dizer que “circulei o mundo inteiro sem sair do Recife”), uma realidade completamente nova se abriu para mim. Mergulhei no estudo do Urbanismo que havia deixado na faculdade (tão profundamente que hoje me considero “pós-graduado em Urbanismo pelos pés”) para entender o mal-estar que havia me causado o retorno pedestre à cidade.

francisco cunha chico caminhada

A conclusão a que cheguei, depois de muito estudar, caminhar e refletir, inclusive refletir caminhando, foi a de que o Recife, após ter estado, até a década de 1940, na vanguarda da discussão urbanística nacional (e, mesmo, mundial), a partir de então foi vitimado por um duplo “atropelamento”: (1) populacional (a população passou de cerca de 500 mil habitantes em 1950 para 1 milhão em 1970); e (2) automobilístico (a frota passou de alguns raros veículos para cerca de 800 mil atualmente, caminhando rapidamente para atingir em breve o recorde de 1 milhão, quase um por habitante).

O resultado foi que o controle urbanístico restou na prática perdido e a cidade se transformou no que passei a chamar de “quebra-cabeças desmontado”, uma espécie de “colcha de retalhos” de loteamentos acrescentados ao tecido urbano sob a regulação de uma legislação profusa, confusa e, em boa medida, contraditória, com a completa perda das visões de modelo de organização urbanística e estratégica de longo prazo.

As antigas estradas (de João de Barros, de Dois Irmãos, do Arraial, das Ubaias, do Encanamento, de Água Fria, de Beberibe, de Pau D’Álho, de Limoeiro etc., onde só transitavam pessoas a pé, de cavalo ou de carroça) se viram transformadas em avenidas de quatro faixas de rolamento, cheias de carros que passaram a ocupar todos os espaços públicos disponíveis, inclusive as calçadas para estacionamento. Em consequência, o Recife passou a aparecer nas pesquisas e nas manchetes como uma das mais engarrafadas do país e, mesmo, do mundo.

Para piorar, no início do Século 21, o Recife começa a despontar no noticiário nacional como a capital mais violenta do País. Foi então que um grupo de pessoas que militava na cidadania empresarial resolveu, em 2008, criar o Observatório do Recife para tentar entender, via indicadores, o que estava acontecendo. Como eu já fazia caminhadas em pequenos grupos, recebi o convite do Observatório para guiar as caminhadas temáticas Olhe Pelo Recife e, antes da campanha eleitoral de 2012, coordenar o projeto O Recife que Precisamos. Essas duas iniciativas possibilitaram, após a escuta de especialistas e da população, a construção de uma proposta que enfatizava cinco prioridades: (1) Retomada do Planejamento de Longo Prazo; (2) Retomada do Controle Urbano; (3) Destravamento da Mobilidade; (4) Recuperação do Centro da Cidade; e (5) Revitalização do Rio Capibaribe.

Essas prioridades foram apresentadas a todos os candidatos a prefeito e amplamente discutidas na campanha, a ponto de serem incluídas no programa de governo da chapa vencedora (Geraldo Julio / Luciano Siqueira). Como consequência, desde então (já que o projeto foi renovado e reapresentado a cada eleição subsequente): já estamos na segunda edição do Plano Recife 500 Anos (durante as discussões, descobrimos que o Recife será a primeira capital brasileira a completar 500 anos em 2037); os outros modos de deslocamento sustentáveis que não o motorizado (a pé, de bicicleta, por transporte coletivo) foram ampliados com melhores calçadas, maior malha cicloviária e faixas azuis para o transporte público; foi criado o programa Recentro com um gabinete do Centro do Recife e um plano de longo prazo chamado O Centro do Recife na Rota do Futuro; e, por último mas não menos importante, o Parque Capibaribe, resultado de uma pioneira pesquisa (que durou sete anos), aplicada de urbanismo, realizada pela Prefeitura do Recife e a UFPE.

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No meio de todo este percurso foi ficando ainda mais evidente o emaranhado legal, incluído o resultante de um plano diretor mal feito e mal revisado (com uma pandemia pelo meio), leis superpostas, com dispositivos conflitantes e desatualizadas, numa verdadeira barafunda jurídica, apenas sobressaindo-se, como exceção “benigna”, a chamada Lei dos 12 Bairros (Lei Ordinária Nº 16.719 de 2001) que definiu parâmetros urbanísticos mais “civilizados” para os 12 bairros lindeiros ao Rio Capibaribe pela sua margem esquerda (Derby, Espinheiro, Graças, Aflitos, Jaqueira, Parnamirim, Santana, Casa Forte, Poço da Panela, Monteiro, Apipucos e parte do bairro Tamarineira). Por conta deste reconhecimento tive, inclusive, a oportunidade e a satisfação de escrever um livro, em parceria com Luiz Helvécio, Norma Lacerda e Paulo Reynaldo, sobre a importância da Lei dos 12 Bairros para o Recife.

Esta situação de confusão legal perdurou até que, na atual gestão municipal, o secretário de Desenvolvimento Urbano, Felipe Matos, liderou, em boa hora, a equipe do Instituto Pelópidas Silveira (a instituição responsável pelo planejamento urbano da cidade) na revisão da legislação defasada e na construção participativa de uma nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo do Recife (LPUOS) que dirimisse as contradições e dotasse a cidade de um arcabouço legal mais avançado.

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Foram feitas várias discussões técnicas, inclusive na universidade e no Conselho da Cidade, além de uma audiência pública da qual tive oportunidade de participar e, inclusive, de falar. Disse, na ocasião, que considerava mais do que louvável a iniciativa em virtude da explícita intenção de, não só uniformizar os dispositivos legais como, ainda, avançar no conceito de cidade-parque, esboçada na revisão do Plano Diretor a partir dos achados da pesquisa do Parque Capibaribe, e, sobretudo, ampliar para os demais bairros da cidade os avanços preconizados e postos em prática pela Lei dos 12 Bairros, já com quase 25 anos de vigência.

Disse também reconhecer não se tratar de uma lei ideal mas de uma lei possível, oportuna e necessária, além de esboçada com seriedade e na busca de uma avanço considerável na qualidade do marco legal de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano do Recife, vítima de acentuado embaralhamento promovido pelo desmantelo quase caótico da concepção urbana da cidade, lamentavelmente fragmentada nas décadas anteriores.

Por fim comentei que, promulgada a nova lei (que, inclusive, mantém a proibição de espigões nos 12 bairros), entendia ser necessário começar imediatamente a discussão da próxima revisão do Plano Diretor para que possamos ter tempo de esgotar os conceitos que estão sendo trabalhados pelas novas pesquisas em andamento, em especial a sucessora do Parque Capibaribe, chamada Recife Cidade Parque – Plano de Qualidade da Paisagem, incorporando a realidade das mudanças climáticas e da mudança essencial do paradigma do planejamento urbano eminentemente rodoviarista de que foi vítima o Recife, em 1943. Naquele ano foi adotado, no âmbito da ditadura do Estado Novo, o chamado Plano Ulhoa Cintra, inspirado no Plano das Avenidas de São Paulo, que firmou entre nós o conceito de radiais e perimetrais.

O novo paradigma foi testado na pesquisa do Parque Capibaribe que lançou a hipótese de que a reinvenção do Recife, como cidade-parque, não só seria possível como deveria ancorar-se no planejamento por bacias hidrográficas (do Capibaribe ao centro, do Beberibe ao norte e do Tejipió ao Sul), além da frente marinha, um verdadeiro parque marítimo para esta cidade que, na feliz expressão de Joaquim Nabuco, “sente a palpitação do oceano no mais profundo dos seus recantos”.

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Portanto, torço para que a muito bem-vinda nova LPUOS seja logo aprovada e sancionada para que possamos já passar para a fase seguinte que é discutir articuladamente os novos conceitos fundantes do futuro. Fico por aqui, literalmente, num pé e noutro para isso!

*Francisco Cunha é consultor empresarial e sócio da TGI

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