Quarenta anos após sua morte, o político mineiro permanece como símbolo da transição democrática frustrada
*Por Francisco Cunha
Há uma espécie de entendimento socialmente compartilhado no Brasil de que o melhor presidente da história republicana foi Juscelino Kubitscheck de Oliveira, o nosso JK. O que é perfeitamente compreensível, dadas as características pessoais do personagem (otimismo, alegria, obstinação, elegância, charme pessoal) somadas com as da época histórica em que governou: desenvolvimentismo, industrialização, “50 anos em 5”, Sudene, arquitetura brasileira “falando para o mundo”, construção de Brasília, campeonato mundial de futebol, Bossa Nova, Cinema Novo etc.
Todavia, um outro personagem, mineiro como JK e seu companheiro de geração, que passou a vida política inteira se preparando e articulando para assumir a suprema magistratura nacional, estando eleito e a um passo da Presidência, foi abatido pela tragédia pessoal e morreu sem tomar posse do cargo por tanto tempo cobiçado. Falo de Tancredo de Almeida Neves que, em 21 de abril passado, completou 40 anos de falecido aos 75 anos de idade.
Entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPE em 1976, em plena ditadura, e, desde então, acompanho atentamente a vida política nacional, participando do movimento estudantil e da sociedade civil da época pelo restabelecimento da democracia. E, desde lá, procurava quem poderia liderar a transição de um regime autoritário para um regime onde fossem reinstaladas as garantias democráticas. Nesta procura, desde cedo, comecei a prestar atenção em Tancredo, então deputado federal por Minas Gerais, depois de ter sido ministro da Justiça de Getúlio Vargas e primeiro-ministro do breve regime parlamentarista instalado após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961.
Depois, Tancredo foi eleito senador e governador de Minas, tornando-se um dos líderes da luta pela redemocratização, inclusive do turbilhão em que se transformaram os movimentos Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, Diretas Já e Quero Votar para Presidente levando milhões de pessoas às ruas do País. Com a frustração dos movimentos pela eleição direta, Tancredo fez uma grande negociação com os políticos, a sociedade civil organizada e os militares, tornando-se candidato indireto à Presidência, concorrendo e ganhando no Colégio Eleitoral do Congresso Nacional contra o oponente Paulo Maluf, candidato das forças que apoiavam a ditadura.
Acompanhei tudo isso atentamente, fazendo, inclusive, campanha ostensiva para Tancredo por acreditar ser ele o único líder político capaz de conduzir a transição pacífica da qual o País tanto precisava depois de mais de 20 anos de ditadura. Ele, inclusive, foi o único candidato a qualquer cargo eletivo, ainda que no caso indireto, que teve um adesivo em meu carro. Além disso, eu andava com o botton de Tancredo para todos os lugares, até no casamento (neste caso, por dentro do paletó, considerando que ainda estávamos em pleno regime autoritário) de um amigo que teve como padrinhos Maluf e o próprio Tancredo, sendo esta, talvez, a única vez em que estiveram num mesmo ambiente público durante a campanha eleitoral, já que não havia ainda debates entre candidatos a presidente. Assisti emocionado o seu discurso, logo após a vitória no Colégio Eleitoral:
“Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão. Se todos quisermos, dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, podemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la!”
Então, qual não foi meu espanto quando, chegando em casa, na noite anterior à posse, vindo de uma comemoração antecipada, ligo a TV e vejo o noticiário dando conta de que o presidente eleito havia sido internado para uma operação de emergência. Depois da internação e do espanto, se sucederam a angústia e a tristeza no acompanhamento da via crucis de 38 dias pelas mãos de médicos incompetentes, hospitais e cirurgias. Até hoje, sou acometido de uma ponta de angústia quando ouço a música Coração de Estudante cantada por Milton Nascimento e transformada no hino do martírio e da morte de Tancredo.
Minha maior frustração nessa história toda foi termos perdido a oportunidade do exercício da presidência de uma pessoa que teve uma trajetória política maiúscula e se preparou a vida inteira para ocupá-la como uma espécie de expoente de uma geração de grandes políticos da estirpe de Ulisses Guimarães, Franco Montoro, Teotônio Vilela, Mário Covas, José Serra, Fernando Henrique Cardoso e outros de grande valor, impossíveis de comparar com os da atualidade.
Penso que toda a geração daqueles que lutamos e torcemos pelo fim da ditadura e pela transição pacífica para a democracia perderam a chance de ter Tancredo como presidente no lugar de ter-se transformado no melhor presidente que o Brasil não teve. Uma grande frustração e a concordância com a frase que ele teria dito na UTI: “Eu não merecia isso”. Não merecia mesmo! Nem ele nem nós!
*Francisco Cunha é consultor e sócio da TGI