Com obras previstas até 2029, o trecho Salgueiro-Suape da ferrovia volta à pauta como prioridade federal, mas enfrenta incertezas orçamentárias, desconfiança política e mobilizações locais por mais abrangência e integração.
*Por Rafael Dantas
A construção do trecho entre Salgueiro e Suape da ferrovia Transnordestina deu sinais mais claros de retomada. Após ser retirado do empreendimento em 2022, no Governo Bolsonaro, a linha pernambucana que corta do sertão ao litoral foi assumida pela estatal Infra SA que anunciou neste mês um calendário para as licitações e obras. Há, porém, preocupações quanto ao financiamento e ao longo prazo para ser concluído, pois a entrega está prevista apenas para 2029, cerca de dois anos após a linha cearense ser inaugurada.

Representantes da Infra SA e da Secretaria Nacional do Transporte Ferroviário participaram de eventos promovidos pela Fiepe (Federação das Indústrias de Pernambuco) e pela Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) neste mês, quando apresentaram o cronograma das obras e algumas informações sobre os primeiros editais. A linha entre Salgueiro e Suape foi dividida em nove lotes.
Desde que assumiu o empreendimento, a Infra SA contratou a elaboração dos projetos básicos de 365 quilômetros entre Custódia e Suape e os estudos de levantamento da situação das obras já executadas entre Salgueiro e Custódia. Outra frente é a gestão fundiária e as desapropriações que já contam com empresa contratada. A estatal iniciou ainda os estudos e o licenciamento ambiental da ferrovia e está nas tratativas com a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), o Ministério dos Transportes e o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes) para formalizar a delegação da execução das obras.
Depois de uma década sem obras, a Infra SA concluiu os estudos iniciais e informou que serão contratadas, ainda neste semestre, as obras para os lotes 4 e 7. O edital deve ser apresentado em agosto e o início dos trabalhos está previsto para o primeiro semestre de 2026. Esses trechos são respectivamente os 73 quilômetros entre Custódia e Arcoverde (que já tem 37% das obras realizadas) e os 53 quilômetros entre Cachoeirinha e Belém de Maria.

As estimativas indicam que o custo total da obra em Pernambuco seria entre R$ 3,5 bilhões e R$ 4 bilhões para ficar pronto. O investimento entre Custódia e Arcoverde é de R$ 600 milhões. O lote entre Cachoeirinha e Belém de Maria tem perspectiva de aportes na ordem de R$ 620 milhões. Os demais lotes devem ter editais lançados apenas em 2026. Essa estratégia de divisão da linha por lotes permite que várias dessas obras possam ser feitas de forma simultânea, o que acelera o processo. Porém, aguardar mais quatro anos, em um cenário de crise econômica e de uma eleição presidencial no meio desse prazo, ligam um sinal de alerta na classe política e empresarial local.
SENTIMENTOS CONFLITANTES
Desde que a linha Salgueiro-Suape foi retirada da Transnordestina, entidades técnicas e empresariais como o Crea-PE (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco) e a Fiepe se tornaram vozes ativas para reversão desse cenário. Os recentes anúncios e os compromissos assumidos pelo Governo Federal e pelo ministro dos Transportes, Renan Filho, foram um alívio para a preocupação da exclusão do Estado da malha ferroviária da região. Ou seja, um fato a comemorar. Mas ainda existe uma desconfiança sobre o avanço das obras devido ao panorama político e econômico do País.
O presidente da Fiepe, Bruno Veloso, considera que a sinalização de retomada da Transnordestina é animadora: “O presidente da Infra trouxe essa notícia de que no segundo semestre vai haver licitações e a ideia é que se iniciem as obras ainda neste ano. Isso nos deixa felizes, otimistas, porque estamos vendo que vai caminhar. Mas temos preocupações. Primeiro, por ser uma obra que deve beirar os R$ 4 bilhões. Precisamos que esses recursos estejam disponíveis para que a obra seja executada e sabemos que a dificuldade de caixa no País é grande. É necessário que as classes política e empresarial continuem lutando juntas, senão essa obra não sai”.

O prazo de 2029 é considerado também longo, visto que são pelo menos mais quatro anos que os setores produtivos de Pernambuco seguirão dependendo de outras soluções logísticas de transporte rodoviário, que são mais caras. “Esse prazo longo atrapalha no sentido da urgência da obra, estamos há muitos anos aguardando-a e temos que ter em mente esse sentimento de urgência. Temos muitos setores esperando uma ligação do interior até Suape para escoar a sua produção. Temos também muitas cargas de retorno possíveis”, destacou Veloso.
Um sentimento semelhante de preocupação orçamentária foi compartilhado pelo deputado estadual João Paulo, presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Ferrovia Transnordestina em Pernambuco. “Estamos preocupados com o orçamento nacional, com as emendas parlamentares de R$ 50 bilhões, isso compromete os investimentos estratégicos regionais”, alertou.
Ele faz a conta de que apenas 10% do que é destinado a emendas parlamentares em um ano seria mais que suficiente para executar todos os investimentos necessários da linha Salgueiro-Suape. João Paulo se mostra menos preocupado com o horizonte de 2029, mas considera que a luta dos agentes locais deve ser para que, ao menos, se cumpra esse cronograma. “Quatro anos passam num instante, como dizia Arraes. Mas precisamos garantir que essa meta seja cumprida. O cenário econômico internacional preocupa, assim como a limitação orçamentária do Governo Federal.”

Em encontro promovido pela Sudene, o consultor em gestão pública Laércio Queiroz alertou para a necessidade de haver um esforço coletivo no Estado para que sejam garantidos os investimentos dessa obra. “Em nenhum momento se falou que o dinheiro (para execução das obras em Pernambuco) está garantido. E o dinheiro não está garantido. A gente precisa brigar e ajudar o Governo Federal e do Estado. Senão o trecho do Ceará funcionará em 2027 e nós só vamos ter a Transnordestina aqui em 2035 ou 2040.”
O Ministério dos Transportes, que é liderado pelo ministro Renan Filho, informou por meio da sua assessoria de imprensa, que dos 544 quilômetros de extensão da linha pernambucana, 38% já foram executados. “O trecho Salgueiro-Suape, incluído no Novo PAC como prioridade do Governo Federal, encontra-se em fase de atualização dos projetos para a retomada das obras, pela empresa Infra SA”. Além da retomada das obras públicas, os próximos passos para o futuro do empreendimento são a realização de estudos para “uma nova modelagem de concessão para acelerar a implantação e operação do trecho pernambucano”.
Acerca do trajeto que segue com a concessionária Transnordestina S.A., entre Eliseu Martins (PI) e Pecém (CE), o ministério afirmou que esse percurso “possui 1.206 quilômetros de extensão, com 65% de avanço físico e um orçamento estimado em cerca de R$ 15 bilhões, dos quais R$ 7,1 bilhões já foram aplicados. No final de 2024 foi assinado um aditivo de R$ 3,6 bilhões pela Sudene, que possibilita o início de novas frentes de obra”.
SUDENE NO CENTRO DO DEBATE DA TRANSNORDESTINA

Além de ter um papel central na captação de recursos para a Transnordestina, com R$ 4,2 bilhões já aportados, a Sudene tem realizado uma articulação também para ampliar o contato entre os representantes do Governo Federal e da Infra SA com a classe política e empresarial local. Neste mês, por exemplo, a superintendência provocou um encontro com o secretário nacional de Fundos e Instrumentos Financeiros do MIDR (Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional), Eduardo Tavares, e o secretário nacional de Transporte Ferroviário, Leonardo Cezar Ribeiro, vinculado ao Ministério dos Transportes.
“Essa obra é importante não só para o Nordeste mas, também, fundamentalmente para Pernambuco. E a gente ratifica o que já é a decisão política do Governo Lula de que essa obra se materialize. É uma obra integral da região Nordeste, não interessa individualmente ao Piauí, ao Ceará, nem a Pernambuco, nem ao conjunto de municípios que ela vai atravessar. Mas é uma obra importante para que a gente possa ter uma melhoria da infraestrutura, da logística e da competitividade da região e, a partir disso, mudar a vida das pessoas”, afirmou o superintendente da Sudene, Danilo Cabral.
Além do trecho pernambucano e mesmo da Transnordestina no Ceará, foram apresentados no encontro todos os avanços para a retomada do transporte ferroviário na região. O panorama apresentado por Leonardo Cezar Ribeiro indicou que os projetos para o Nordeste juntos somam R$ 46,3 bilhões, em um total de 5.255 quilômetros. Além de Pernambuco, Ceará e Piauí, esses outros projetos incluem ainda obras no Maranhão e na Bahia.
Trata-se, portanto, de um grande esforço nacional de recuperação da malha ferroviária do Nordeste que foi abandonada poucos anos após a privatização que aconteceu no final da década de 1990. Embora esse mapa de investimentos já seja desafiador, ele não prevê ainda a retomada da antiga Malha Nordeste, que conectava os portos dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, além do trecho ainda em operação entre o Maranhão e o Ceará.
“Corre-se, portanto, o risco de desaparecer a malha métrica viária que liga o Nordeste Oriental, ou seja, hoje nós estamos na iminência de Suape não se interligar aos portos do Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas. Essa malha métrica está simplesmente abandonada”, alerta o consultor empresarial e sócio da TGI Francisco Cunha.
No encontro, em alinhamento com as informações repassadas pelo Ministério dos Transportes, Eduardo Tavares ressaltou que uma das articulações em andamento é a viabilização de um novo modelo de parceria para a linha pernambucana. “Além da retomada das obras públicas, estamos avançando na modelagem de concessão para acelerar a implantação e operação do trecho pernambucano. O novo concessionário terá acesso a incentivos fiscais, fundos constitucionais e de desenvolvimento”.
O engenheiro e professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Maurício Pina destacou que a retomada da obra evitaria a consolidação de uma diferença ainda maior entre os Estados na região. “É inadmissível que, além dos graves desequilíbrios interregionais que existem no Brasil, estejamos criando um grave desequilíbrio intra-regional porque o Porto de Pecém será atendido por 2.446 km de ferrovias (1.207 km até Itaqui e mais 1.239 km até Elizeu Martins) e um porto como Suape, o maior do Nordeste, com 0 km de ferrovia atendendo. Essa condição é insustentável e precisa ser equacionada”.
Além da urgente necessidade de retomada da ferrovia em Pernambuco, o consultor Francisco Cunha defendeu ser preciso refletir um novo projeto ferroviário e não apenas completar o que foi planejado no passado. “Esse redesenho exige uma discussão técnica, porque não é mais a mesma Transnordestina que foi pensada, esboçada e traçada. É outra. Ela tem rebatimentos técnicos que precisam ser aprofundados, pois não é só completar o que estava lá. Caso contrário, a gente vai fazer a ferrovia errada. Essa é a questão estratégica a ser feita a partir de agora”.
PORTO SECO

Se a linha ferroviária é estratégica para o Porto de Suape, os 23 municípios conectados ao Comagsul (Consórcio de Municípios do Agreste e da Mata Sul) veem que a estruturação de um porto seco seria uma redenção econômica para a região. Durante a reunião na Sudene, foi apresentada a proposta da criação de uma plataforma multimodal no Agreste, conectada à ferrovia Transnordestina.
A proposta busca transformar a região em um ponto estratégico de carga e descarga, fortalecendo a logística e atraindo investimentos para os municípios cortados pela ferrovia. A implantação de um porto seco é vista como alternativa viável para dinamizar a economia local e gerar empregos, especialmente em cidades que ainda sofrem com a ausência de indústrias e oportunidades de renda.
O presidente do Comagsul e prefeito de Altinho, Marivaldo Pena, destacou a urgência da iniciativa, ressaltando que a plataforma pode representar a “redenção econômica” para a região. Segundo ele, 7 dos 23 municípios do consórcio serão diretamente impactados pela passagem da ferrovia, o que reforça a importância de garantir que esses territórios não sejam apenas corredores logísticos, mas também beneficiários diretos do desenvolvimento gerado pela obra. “Vamos lutar para que essa estrutura não seja apenas implantada, mas se torne um polo gerador de oportunidades para nosso povo. Estamos unidos e mobilizados para mostrar que o Agreste tem potencial logístico e merece um papel protagonista nesse grande projeto nacional de infraestrutura”, reforçou Marivaldo.
CONEXÃO COM A FERROVIA NORTE-SUL
A economista Tânia Bacelar destacou que o atual momento da Transnordestina representa uma inflexão importante na forma como o Brasil enxerga sua infraestrutura. “A gente passou o Século 20 olhando para a rodovia. Agora, estamos começando a olhar para a ferrovia. Num país continental como o Brasil, não faz sentido negligenciar esse modal.” Ela também enfatizou a importância de compreender a Transnordestina como parte de um processo mais amplo de integração sul-americana.
Segundo Tânia, é essencial que o planejamento da Transnordestina vá além do trecho entre Salgueiro e Suape. “Temos que pensar em conectar esse projeto à Ferrovia Norte-Sul. A Bahia já está se mobilizando para puxar seu pedaço, e nós, acima da Bahia, precisamos fazer o mesmo. Ou a Transnordestina chega à Ferrovia Norte-Sul ou não conseguimos chegar nesse movimento que está acontecendo do lado de lá. Eu não faria uma campanha só para garantir o trecho atual. Já começaria articulando para ampliar. Com academia, com política, com o povo nas ruas.”
A importância da conexão com a Ferrovia Norte-Sul seria de ligar os portos do Nordeste aos estados que são protagonistas do agronegócio brasileiro. Atualmente, essas cargas não chegam ao Nordeste por falta de ferrovias. Questionado pela redação da Revista Algomais, o Ministério dos Transportes respondeu que “também estão previstos estudos por parte da Infra SA. para a conexão entre a Ferrovia Transnordestina e a Ferrovia Norte-Sul, possibilitando uma futura rede de desenvolvimento logístico integrada”.
TRABALHOS DA FRENTE PARLAMENTAR
O deputado estadual João Paulo reforçou a importância da Frente Parlamentar em Defesa da Ferrovia Transnordestina para pressionar a garantia da execução do trecho entre Salgueiro e Suape. “Fizemos convites ao representante da empresa, mas ele não compareceu. Agora, vamos entrar com um pedido de informação, um instrumento legal, para sabermos em que pé anda o projeto e sua execução”, afirmou o parlamentar.
Além desse pedido de informação à Infra SA, João Paulo também se comprometeu a pedir a publicidade dos estudos realizados pela McKinsey que teriam motivado a retirada do trecho pernambucano na Transnordestina no final de 2022. Os questionamentos direcionados ao Governo Federal também incluem solicitações detalhadas sobre o andamento do projeto, como os valores já desembolsados, os recursos ainda necessários para sua conclusão, o status do cálculo de indenizações e do processo de devolução do trecho Salgueiro-Suape à União.
Em 2023, a Algomais solicitou esses estudos realizados pela McKinsey ao Ministério dos Transportes, à ANTT e à Infra SA, mas apesar de terem sido viabilizados com recursos públicos, o documento não foi disponibilizado sob o argumento de conter informações estratégicas e comerciais da Transnordestina Logística S.A., da própria Infra SA. e de outros stakeholders. Segundo os órgãos, a confidencialidade é respaldada pelo Decreto nº 7.724/12 e pelas Leis nº 13.303/2016 e nº 6.404/76, que determinam a proteção de dados sensíveis em razão da relevância econômica do empreendimento e da concorrência no setor.
A Transnordestina é um divisor de águas para o Nordeste. O que está em jogo não é apenas uma linha férrea, mas o direito de Pernambuco a uma infraestrutura que conecte seu presente ao futuro. A retomada do trecho entre Salgueiro e Suape carrega um potencial transformador, tanto para a indústria pernambucana quanto para os municípios do interior cortados pela ferrovia. No entanto, esse potencial só se concretizará se houver união de esforços entre os entes públicos, a sociedade civil e a iniciativa privada para garantir a execução do cronograma. Sem isso, corremos o risco de transformar um projeto estruturante em uma promessa inacabada.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)