Violência nas escolas: Paz também se aprende

*Por Rafael Dantas

Ansiedade e tensão no ambiente escolar não são novidades. Mas, além das provas e exames de seleção para as universidades, os estudantes e professores convivem há algumas semanas com o medo dos casos extremos de violência. Os ataques que vitimaram quatro pessoas em uma creche de Santa Catarina e uma professora numa escola em São Paulo, somados a um turbilhão de notícias falsas que vieram em sequência, criaram uma crise aguda que está sendo enfrentada ainda pelas redes de ensino.

Além das pressões típicas do ano letivo e o legado emocional nocivo da pandemia, os desafios da educação brasileira e pernambucana em 2023 demandam soluções que perpassam por campanhas pedagógicas, atendimentos psicológicos e ações mais concretas de segurança. Algumas dessas iniciativas são mais focadas na tempestade que o setor educacional atravessa e outras devem permanecer de forma contínua.

VIOLÊNCIA QUE PULOU O MURO DA ESCOLA Na análise do advogado, cientista político e especialista em segurança pública Isaac Luna, o ataque à creche que chocou o Brasil é fruto de um cenário social que o País atravessa há alguns anos e que transbordou no ambiente escolar neste mês. “O Brasil viveu, na última década, uma expansão muito grande da violência em todas as suas manifestações. Nesse ambiente de tensão social os discursos de higienização, ódio e supremacia ganharam espaço e evoluíram para todos os setores da sociedade pelas redes sociais”.

Além disso, nos últimos anos houve a flexibilização do acesso a armas de fogo e o crescimento do discurso de extermínio como solução aceitável para solucionar conflitos. “Como a escola é um recorte do todo social, tende a refletir os valores cultivados e propagados no seu entorno. A naturalização da violência, o incentivo ao extermínio e até o crescimento aberto de grupos neonazistas potencializaram a violência nas escolas. Nós não temos uma escola violenta, o que temos é uma sociedade extremamente violenta, com números alarmantes de ocorrências de ameaças, agressões físicas, morais e sexuais e, finalmente, muitas mortes violentas”, contextualiza o advogado do escritório Herculano e Ribeiro Advocacia.

Os efeitos emocionais e psicológicos da pandemia, associados ao discurso de ódio pregado livremente nos últimos anos no Brasil são a equação que tem tido como resultado esses casos de violência aguda no contexto escolar, na análise do secretário de Segurança Cidadã do Recife, Murilo Cavalcanti. “A pandemia deixou um transtorno mental muito forte nas pessoas e isso se refletiu nesse setor das escolas. Cresceram os transtornos e suicídios durante a pandemia. Mas outra razão disso é a política do ódio disseminada nesse País por quatro anos. A mensagem do olho por olho e dente por dente, de fazer justiça com as mãos. Não podemos relevar isso de maneira nenhuma”.

Ao mencionar esse cenário, o secretário lembrou da cena do ex- -presidente Jair Bolsonaro ensinando uma criança com as mãos a fazer o gesto do uso de uma arma, em 2018, em Goiás. Em 2019, em outro evento em São Paulo, ele colocou no colo uma criança vestida de policial militar com uma arma de brinquedo em mãos. “Essa política do ódio reflete-se na cabeça dos meninos. Nesse período de crise, a mediação de conflitos, o esforço em perceber alunos alterados e a disponibilidade de um serviço psicológico são fundamentais”, sugere o secretário.

Apesar de o número de ataques às escolas não ser volumoso, ele aumentou na última década. Dados apresentados pelo mapeamento da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) sobre ataques em escolas por alunos ou ex-alunos revelam uma preocupante tendência de aumento. Desde o primeiro registro em 2002, foram listadas 22 ocorrências. Chama a atenção o fato de que mais da metade dos casos (13 ocorrências) aconteceram apenas nos últimos dois anos.

Há duas tipificações mais comuns dos agressores, segundo a psicóloga e professora do Unit-PE (Centro Universitário Tiradentes) Giedra Marinho. “Quem são os autores desses crimes, atentados e ameaças? Dois grupos: o primeiro é de adolescentes que sofreram bullying e perseguição em escolas. Alguns retornam na intenção de se vingar e com isso ter certa notoriedade. O outro é formado por adultos com transtornos mentais, que acharam um caminho para colocar em prática a perversidade e a maldade. É importante não divulgar essas pessoas. Ao darmos o palco, damos combustível para novos ataques”.

DESINFORMAÇÃO AUMENTA O PÂNICO

A quantidade de informações falsas de ataques e ameaças de novos episódios de violência em escolas aumentou o desgaste dos pais e da comunidade escolar de forma geral nas últimas semanas. Esse fenômeno da desinformação, que esteve presente nas eleições e no enfrentamento à pandemia, surge mais uma vez na sociedade, dificultando a ação das políticas públicas.

O fenômeno da desinformação nesse caso engrossou o discurso de que é necessário regular as redes sociais, que são os canais de circulação das fake news. “Temos uma sociedade doente pós-pandemia, parte dela precisa de tratamento, mas há uma parte que precisa de punição. O Poder Judiciário, com o apoio das polícias, precisa identificar quem está disseminando isso e punir. Disseminar fake news não é liberdade de expressão. Isso é terrorismo, que precisa ser severamente punido”, defende Murilo Cavalcanti.

A desinformação tem jogado contra as escolas, levando algumas famílias até a retirarem seus filhos dos sistemas de ensino por medo. “As redes sociais não têm controle. Um evento ganha proporções bem maiores porque a desinformação circula bem mais rápido. Muitas pessoas jogam qualquer informação nas redes, sem senso ou criticidade. Infelizmente isso tem alcançado muitas famílias, disseminando o medo e ódio. É preciso uma regulamentação das redes sociais”, afirma a pedagoga Cássia Souza, que coordena projetos de educação do Centro das Mulheres do Cabo, é ativista pela educação da Rede Malala e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

REAÇÕES DE SEGURANÇA NA REDE ESCOLAR

Desde os ataques que chocaram o País, o Governo Federal e os diversos sistemas de educação estaduais e municipais reagiram com medidas emergenciais para aumentar a segurança no ambiente escolar e prevenir novos casos. Em Pernambuco, por exemplo, foi criado o canal telefônico 197, voltado exclusivamente para emergências escolares. As ligações que chegarem por esse canal têm prioridade no atendimento das forças de segurança para investigar possíveis ameaças.

O Governo Federal informou inicialmente um investimento de R$ 150 milhões, por meio do Ministério da Justiça, para a segurança nas escolas. Nesta semana, o Ministério da Educação anunciou o aporte de R$ 3,1 bilhões em recursos para Estados e municípios promoverem um ambiente escolar mais seguro. A expectativa do poder público é de que os recursos reforcem a infraestrutura, promovam a compra de equipamentos de segurança e fomentem ações de formação e suporte à implantação de núcleos de apoio psicossocial em escolas.

Uma ação recorrente na rede pública e privada pelo País é o reforço de segurança policial no acesso às escolas. Entre os especialistas há divergências sobre a eficácia dessa medida. Issac Luna considera que a principal tarefa da segurança pública neste momento está no campo da inteligência, do monitoramento das redes sociais e dos grupos extremistas disseminados pelo País. “Não se trata de criminalidade comum, pois parte, na maioria das vezes, de gente sem passagem policial. São crianças, adolescentes, jovens ou adultos extremistas capturados por discursos de ódio e fanatismos que praticam esses atos em busca de um reconhecimento na bolha, de uma morte heroica para se tornarem mártires. Não é uma coisa que se vença só com repressão”.

Diante de uma ameaça terrorista, o Estado tem o dever de levar a sério qualquer que seja a ocorrência até que se descarte seu potencial letal. Essa é a análise de Gustavo Leal de Albuquerque, que é mestre em sociologia pela UFPE e especialista em Inteligência Estratégica pela FGV. “Ao estado não é dado o direito de negligenciar uma suspeita de atentado. Mesmo porque, há situações concretas de grave desvio psicológico individual e outros tantos de desestrutura familiar, recheadas de apologia a ideologias totalitárias e sanguinárias como o nazismo. No lado passivo da questão está a família, envolta numa atmosfera de insegurança e impotência, agravada simbolicamente por deixarem suas crianças nas escolas ‘sozinhas’, sem poder ficar junto e protegê-las”.

Gustavo avalia que se houver uma reprodução de casos de violência escolar, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos após o massacre em Columbine, será necessário criar um programa nacional de prevenção de ataques terroristas do gênero.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública fez um balanço nesta semana sobre o monitoramento dos riscos de violência escolar. Em um boletim, Flávio Dino informou que mais de 200 pessoas foram presas ou apreendidas, houve a intimação de quase 700 adolescentes e adultos para prestar depoimento em delegacias e foram derrubados mais de 750 perfis em redes sociais por influenciar ou estimular ataques violentos.

CAMINHO DE SOLUÇÕES DE CURTO E LONGO PRAZO

A intensificação das ações de controle de acesso às armas é outro fator relevante, de acordo com Isaac Luna. Ele destaca, no entanto, que não são apenas as armas de fogo que precisam ser combatidas, mas também as brancas e as impróprias (instrumentos criados com finalidade diversa, mas que são usados para prática de delitos). “Nesse particular é muito importante a atenção dos pais, pois o acesso a facas, punhais, machadinhas ou coisas do tipo, geralmente ocorre no ambiente doméstico, e a revista, ou busca pessoal levada a cabo pelas forças policiais envolvendo menores pode provocar implicações jurídicas”.

O especialista em segurança pública defende ser preciso organizar onde não tem e reestruturar onde já existem as patrulhas escolares das polícias e das guardas municipais. “Essas patrulhas devem ter treinamentos específicos para tratar conflitos entre menores em fase de formação, com expertise em mediação e conciliação. Devem ser patrulhas escolares mas, sobretudo, patrulhas comunitárias, que conhecem e convivem com o entorno na melhor definição do que se convencionou chamar de polícia cidadã. Se não conseguirmos garantir um ambiente de tranquilidade social e segurança dentro das escolas, não seremos capazes de fazê-lo em nenhum outro ambiente social”, destacou Luna.

Cássia Souza avalia que o aumento da segurança armada que estamos observando em várias cidades é uma resposta imediata para o medo que a população está vivendo, mas defende que sejam tomadas outras medidas para a prevenção de fato da violência. “A segurança ostensiva nas escolas não vai resolver a situação, é um paliativo e pode até aumentar os casos de violência. A escola é o reflexo da sociedade, que está adoecida e violenta. É importante promover a criatividade, a criticidade, a reflexão, a educação inclusiva nos espaços escolares”.

Ela defende a participação dos pais e das demais esferas que compõem a comunidade escolar para construir as estratégias de prevenção. “É importante a gente pensar e refletir em um planejamento das ações, esse problema não será resolvido com uma medida, mas por meio da participação de toda a sociedade. É fundamental entender as demandas dos pais, alunos e alunas, profissionais de educação e do governo, que vai executar a política”, defende a pedagoga.

A oferta de serviços psicológicos e de campanhas regulares com o apoio desses profissionais é o caminho de prevenção sugerido por Giedra Marinho. “Infelizmente muitas escolas e faculdades não têm cultura preventiva, não olham para a saúde psicológica. Chamam o psicólogo como bombeiro, quando a coisa já está instalada. É importante ter psicólogo em todas as escolas. Hoje há uma demanda muito grande de adolescentes com ansiedade, depressão e ideação suicida. Nunca se falou tanto em adoecimento emocional. Para evitar que se chegue ao suicidio ou outras formas de violência, deveríamos atuar de forma contínua, fazendo campanhas, não só emergência para apagar incêndio”.

Todos os especialistas destacam a importância dos pais, neste momento mais crítico, no sentido de acalmar as crianças e não elevar a tensão a partir das notícias falsas que estão circulando nas redes sociais. “O principal agora é calma. Todas as escolas estão empenhadas em promover segurança, tanto as particulares quanto as públicas. Se não se sente seguro um dia, fica em casa. Não é preciso forçar. Mas percebo que muitos pais não estão conseguindo passar calma e tranquilidade para as crianças. Devemos falar com elas, sim. Mas numa linguagem que ela entenda, de um jeito simples e sem muitos detalhes. E dizer que ela está em um ambiente seguro. O momento é de promover calma e tranquilidade”, orienta Giedra.

O Governo de Pernambuco anunciou nesta semana a campanha Propague a Paz. O objetivo é reafirmar o espaço escolar como território de refúgio contra a violência, intensificando ações pedagógicas nas escolas da rede estadual para fortalecer a cultura de paz. “A campanha acontece durante todo o mês em todas as escolas estaduais, considerando a demanda que temos atualmente, que está assustando toda a comunidade escolar. Tomamos uma série de providências e realizamos ações em parceria com a SDS (Secretaria de Defesa Social) no sentido de garantir segurança e reconhecermos a escola como espaço de acolhimento. Vamos fortalecer essa ideia porque a comunidade está assustada. Precisamos dar visibilidade a ações de fortalecimento de cultura de paz e dos direitos humanos nas escolas”, afirma Tárcia Silva, secretária executiva de Desenvolvimento da Educação.

No conjunto de atividades propostas pela Secretaria de Educação de Pernambuco estão reuniões com os pais e responsáveis, rodas de conversas sobre violência na escola, orientações curriculares sobre a importância do combate a fake news e uso das redes sociais. Estão contempladas também as iniciativas de produções artísticas de poesia, pintura, teatro, música e dança que evidenciam como a cultura de paz vem sendo construída na rede escolar.

Além do cenário de violência aguda que vivemos, Tárcia ressalta que a escola apresenta outras violências que estão impregnadas na sociedade, como o racismo e o etarismo, que precisam ser igualmente enfrentadas. “São demandas que estão presentes na escola e que precisamos tratar pedagogicamente e com o suporte de equipes multidisciplinares. Não podemos pensar no enfrentamento desse problema como uma ação pontual, um evento, mas em uma política de governo dentro da Secretaria de Educação”, destacou a secretária.

Os esforços para combater o trauma dos recentes ataques e ameaças estão em andamento e são prioridade das redes públicas e privadas de ensino neste primeiro semestre de 2023. A promoção da cultura de paz, que já tem destaque há alguns anos nas políticas públicas em Pernambuco, pode ser a protagonista nesse momento para virar a chave da cultura de violência implantada no País. A escola, que foi vítima desse fenômeno social, enfim pode caminhar para ser o palco de mudança desse cenário que afeta todo o País.

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