“10% da renda das classes C, D e E está comprometida com apostas online” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“10% da renda das classes C, D e E está comprometida com apostas online”

Sócia de auditoria da PwC, Helena Rocha analisa a pesquisa feita pela empresa e o Instituto Locomotiva que revela um consumidor de baixa renda que valoriza preço, mas também a qualidade do produto. O dado surpreendente foi o apelo que as apostas esportivas exercem nessa parcela da população. (Foto: Bosco Lacerda)

Depois de anos de crise econômica, agravada pela pandemia, os consumidores das classes C, D e E estão controlando mais seus gastos, porém, se tivessem acesso ao crédito, consumiriam mais, principalmente eletrônicos e eletrodomésticos. Mas, apesar disso, eles não valorizam apenas o preço na hora da compra mas, também, a qualidade e a marca do produto, e estão muito antenados com as questões sociais e sustentáveis. A ponto de estarem dispostos a pagar um pouco mais por marcas e produtos que apoiem a diversidade e a priorizar aquelas que são sustentáveis. Além disso, já abandonaram ou deixaram de comprar determinada marca por falta de responsabilidade ou porque desrespeitaram o meio ambiente. Esse novo perfil dos consumidores das classes C, D e E foi revelado na recente pesquisa realizada pela PwC e Instituto Locomotiva denominada Mercado da Maioria já que eles representam 76% da população, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2022, e respondem por quase metade do consumo no País. Nesta entrevista, Helena Rocha, sócia de auditoria, líder da indústria de consumo e varejo para o assurance da PWC, analisa os resultados do estudo. Helena chamou a atenção para o apelo cada vez maior que as apostas online têm exercido sobre essa parcela de consumidores. “Em 2024, a estimativa é que gastos com jogos e apostas podem representar quase 5% do valor destinados a despesas com alimentação”, alerta.

Qual o perfil do consumidor que representa esse mercado da maioria?

A pesquisa entrevistou 2.400 pessoas, das quais 1.600 da classe C, D e E, além de 800 das classes, A e B, a partir de 18 anos. Dos entrevistados, 44% são região Sudeste, 28% Nordeste e 10% entre Sul, Centro- Oeste e Norte. E temos alguns dados importantes: do total de entrevistados das classes C, D e E, 62% declaram- -se pretos e pardos, 74% já afirmaram ter sofrido algum tipo de preconceito, 56% não concluíram o ensino médio e 50% deles trabalham sem carteira assinada ou por conta própria. Então, existe muita informalidade. A pesquisa destacou também um protagonismo feminino: 52% dos lares das classes C, D e E são chefiados por mulheres, o que também foi constatado nas classes A e B cujo percentual é de 43%.

Uma das características identificadas na pesquisa é a de que esse público encara o consumo como uma questão de conquista e esforço individual. Você poderia analisar essa questão?

A pesquisa revela o que significa consumo para consumidores das classes C, D e E: 61% dizem que se esforçaram para comprar itens que nunca tiveram condições financeiras de adquirir quando eram mais jovens e 71% afirmaram que se sentem realizados quando economizam para comprar um produto e conseguem. Eles também informaram que nos últimos 10 anos passaram a comprar mais, principalmente em supermercados e hipermercados, e artigos de higiene e beleza e, em torno de 45%, afirmaram adquirir mais na última década produtos para animais de estimação, vestuário e eletrônicos.

Mas 48% dos entrevistados das classes C, D e E disseram que se sentem excluídos, ou já se sentiram excluídos ou passaram por situações de constrangimento por não terem condições de consumir algum produto ou marca. Além disso, 30% desses consumidores também disseram que já foram constrangidos por não terem um produto e não usarem uma determinada marca e 42% já se sentiram também excluídos por não terem condições financeiras para consumir um produto que estava na moda.

Quando a gente analisa quais as causas das dificuldades de aquisição, para 70% dos entrevistados das classes D e E e 56% da classe C, a principal é a dificuldade de acesso ao crédito. Esse percentual é bem menor nas classes A e B, mas ainda é um percentual importante, 40%.

Quais os produtos que eles desejariam comprar?

De um modo geral, eles dizem que comprariam mais caso eles tivessem maior acesso ao crédito. Os itens mais desejados são eletrônicos (citados por 36% dos entrevistados das classes C, D e E) e eletrodomésticos (35%), que também são desejo de consumo importante nas classes classe A e B, com percentual de 30%.

Houve uma época, há uns 12 anos, em que acreditávamos que para as classes A e B, isso não era mais tão relevante porque essas pessoas já teriam acesso a eletrodomésticos de um modo geral. Mas, novas tecnologias são criadas e surge o desejo de adquiri-las. Então, o que aparece muito são casas automatizadas, produtos mais robustos do ponto de vista tecnológico, de última tendência. Esse é um desejo muito grande que permeia todas as classes sociais. Para as das classes C, D e E também aparecem imóveis e automóveis com percentual de 27%.

Um aspecto que chama a atenção é que quando perguntado “o que você gostaria de adquirir nos próximos 12 meses?”, o curso de idiomas e outros cursos aparecem de maneira bem relevante, com percentual de 30%. Foi uma surpresa para nós. Embora a gente não perceba muito, mas é um desejo latente das classes C, D e E, que pode ser de ascensão social. Em seguida, surgem itens mais de consumo, como móveis, eletrodomésticos, materiais de construção, eletrônicos.

Todos esses desejos reprimidos esbarram na falta de crédito, cujo acesso é dificultado em razão da taxa de juros muito alta e porque grande parte dessas classes já está muito endividada. Um fato que chama a atenção da pesquisa é o apelo que as apostas esportivas exercem sobre as classes C, D e E.

O que mostrou a pesquisa sobre esse assunto?

As apostas esportivas estão consumindo uma fatia importante da renda, principalmente das classes C, D e E. Quando a gente faz a análise do perfil desses jogadores, em termos de idade, grande parte realmente são jovens, entre 30 e 40 anos. No Sudeste, eles representam quase 50% dos entrevistados. Mas no Nordeste é 30%, um percentual expressivo também. No Sul, Centro-Oeste e Norte está ali em torno de 8% a 10%.

Quando a gente faz análise por classe social chama muito a atenção porque, na classe da A e B, o percentual de apostadores é de apenas 16%. Mas na classe C é de 45% e nas classes D e E é de 40%. Então, temos um percentual extremamente expressivo de consumo de apostas esportivas, principalmente nas classes mais frágeis do ponto de vista social e econômico.

E aí percebemos claramente o impacto dessa situação no mercado. A análise da Strategy& (braço de consultoria em estratégia da PwC) sobre o tema revela que as despesas com apostas esportivas representam o dobro dos gastos com streaming de vídeo e mais de 40 vezes os recursos destinados à compra de ingressos para jogos de futebol. Projeta-se um crescimento anual sete vezes maior das apostas esportivas até 2026, em comparação com as indústrias de mídia e entretenimento.

Em 2024, a estimativa é que gastos com jogos e apostas podem representar quase 5% do valor destinados a despesas do brasileiro com alimentação. Os possíveis impactos no mercado podem ser a substituição de gastos com outros tipos de entretenimento por apostas, então poderá haver uma redução de gastos com cinemas e com games. Outro movimento é a substituição de marcas e busca por promoções em produtos de alimentação para compensar despesas com apostas.

A gente percebeu que em torno de 10% da renda está sendo comprometida com apostas online. É muita coisa para quem tem o dinheiro da cesta básica contadinho. Fizemos uma análise em relação ao número de empresas no Brasil de apostas esportivas online que aumentou de 51 em 2020 para 308 em 2023.

Vivemos nos últimos anos uma crise econômica que foi acirrada com a pandemia. Como esses consumidores tem-se adaptado a essa conjuntura, levando em conta que a pesquisa revelou que 66% deles valorizam produtos de qualidade por um preço justo?

A gente até chama esse trecho na pesquisa de uma nova matemática de consumo. Eles foram se adaptando. Com todo o cenário pós-pandemia, a gente percebe um consumidor cada vez mais consciente e exigente, devido ao acesso fácil a uma vasta quantidade de informações e uma ampla variedade de marcas e canais de compra.

Eles não consideram apenas o preço, percebemos que os consumidores também valorizam a qualidade do produto porque isso lhes dá a sensação de ter feito uma compra inteligente, não apenas por economia. Mas a situação econômica trouxe muita volatilidade, muita insegurança. O endividamento é muito alto, e muitos deles estão muito mais conscientes e afirmam que controlam atualmente muito mais os gastos do que eles controlavam no passado. E que a marca, de fato, tem muita influência nas decisões de compra, pois serve como indicador de qualidade e minimiza os riscos de insatisfação e gastos adicionais.

A pesquisa mostrou que 86% dos consumidores estão dispostos a priorizar marcas e lojas com propósito e 53% já deixaram de comprar marcas por falta de responsabilidade social. A população de baixa renda está mais antenada com questões como a diversidade? É um mito a ideia de que essa parcela da população não se importa com a sustentabilidade?

Sim, é um mito. Independentemente de classe social, a gente percebe um consumidor cada vez mais com propósito, com engajamento e preocupado com o consumo consciente e sustentável. A pesquisa mostrou que 86% estão dispostos a priorizar marcas e lojas sustentáveis, 60% estão preocupados com suas ações no meio ambiente, 55% declaram que hoje se alimentam de forma mais saudável em comparação com 10 anos atrás e que prestam mais atenção nas causas que uma marca apoia.

É um consumidor que também está mais disposto a pagar mais por marcas que apoiem causas ambientais (70%) e causas sociais. E, como você mencionou, 52% dos consumidores das classes C, D e E já abandonaram marcas que desrespeitam o meio ambiente (na classe A e B esse percentual é 60%) e 53% abandonaram marcas por falta de responsabilidade social (mesmo percentual das classes A e B).

Mas é um consumidor que busca conexões autênticas, ou seja, há uma demanda por consumir marcas e lojas que, de fato, estejam engajadas, fomentando e promovendo essa questão da diversidade, por exemplo.

O e-commerce, que já vinha crescendo, deu um salto na pandemia e se mantém. Como esses consumidores utilizam as compras online?

A pesquisa nossa não entrou muito no detalhe da relação com e-commerce, ela aponta muitas tendências de um modo geral no consumo. Por exemplo, na última década, o percentual de consumidores da classe C com acesso a internet saltou de 55% para 88% e nas classes D e E, de 20% para 75%. Mas esses percentuais são menores aos comparados aos da classe A, que atualmente é de 95% e B (94%).

Todo esse mercado de consumo foi muito impactado pelo advento do Pix: quase 70% dos consumidores utilizaram essa forma de pagamento, enquanto 60% usam cartão de crédito. A pesquisa mostrou que 70% dos consumidores das classes C, D e E dependem mais da internet para comprar produtos e utilizar serviços do que há 10 anos e 42% afirmaram que as plataformas digitais oferecem facilidade para pesquisar e comparar preços.

Mas a loja física mantém a sua relevância, por isso denominamos esse perfil de policonsumidor, que é imersão no mundo digital e físico e que está presente em todas as classes. A pesquisa mostrou que 63% já compraram online e fizeram a retirada em loja física. Mas também foi detectado que 65% se preocupam mais com o uso de seus dados pessoais pelas empresas do que se preocupavam no passado.

Eles querem priorizar marcas e lojas que oferecem praticidade na hora de receber ou levar o produto e aceitam pagar mais por isso, inclusive 38% dos entrevistados das classes C, D e E querem priorizar as marcas e lojas que tenham uma experiência de compra agradável e isso permeia todas as classes sociais.

As classes C, D e E preferem as lojas brasileiras do que as estrangeiras, gostam de estabelecimentos com vitrines chamativas, coloridas, que tenham muitos produtos e que toquem música. A gente concluiu que a loja do futuro é uma loja muito cativante, digitalizada, inovadora, imersiva, mas extremamente personalizada e que traga alegria, que traga, de fato, uma relação com o consumidor que cada vez mais prioriza marcas e lojas sustentáveis.

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