1824: uma confederação contra o autoritarismo e por uma alternativa política – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

1824: uma confederação contra o autoritarismo e por uma alternativa política

"Junta de Pernambuco", com líderes da revolução, ilustrada por Johann Moritz Rugendas.

*Por Rafael Dantas

No dia 2 de julho de 1824, Pernambuco proclamava pela segunda vez a independência do restante do País. Apenas sete anos após a Revolução de 1817, o Estado mais uma vez se insurgiu. Não se tratava de um simples movimento separatista. Era uma revolução que defendia um modelo republicano com maior autonomia para as províncias. Além de alcançar uma parcela significativa do Nordeste, abrangendo Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e até o Ceará, a Confederação do Equador convidava as demais regiões do Brasil para aderirem a esse projeto alternativo.

A revolta que gerou a separação do Nordeste oriental tem motivações claras e pautas políticas ainda não resolvidas pelo País, 200 anos depois. O estopim do movimento acontece por um conjunto de medidas autoritárias e centralizadoras de Dom Pedro I, que sufocam a autonomia das províncias e os outros modelos de País que estavam em construção.

DOIS POLOS, DOIS PROJETOS DE PODER

Se o Brasil no Século 21 fala-se tanto em polarização, no País em construção ainda no Século 19, havia uma divisão de ideais. Pouco tempo após a proclamação da independência de Portugal, havia um modelo em desenvolvimento que atendia mais o interesse do imperador Dom Pedro I, centralizado e mais conservador. Por outro lado, um grupo mais liberal defendia a República, a instituição de uma confederação – o que conferia mais autonomia às províncias – e possuía um caráter nacionalista.

”Na própria Independência do Brasil existiam projetos distintos de nação e o vencedor foi o da Corte do Rio de Janeiro, que as províncias tiveram que aceitar. É o projeto das elites pernambucanas, alinhadas à Corte. Esse é o grande problema dessas rupturas e em 1824 aconteceu a mesma coisa. Um projeto conseguiu sufocar o outro que estava sendo gestado”, afirmou Bruno Câmara, historiador e professor da UPE.

Em Pernambuco, a liderança intelectual que endossa o pensamento republicano e confederativo é de Joaquim da Silva Rabelo, o Frei Caneca. Havia naquele início de século a circulação da literatura europeia e dos ideais políticos de superação da monarquia em Pernambuco, que tinha forte conexão com o mundo a partir do seu porto. Muitos filhos da elite pernambucana estudaram na Europa e foram influenciados pelas ideias liberais, o que não foi o caso de Frei Caneca. Mas é do religioso que virão as palavras que influenciam as lideranças da época a tomar posições contrárias ao império em direção a um outro modelo de País.

“Era um projeto radical de República, com uma Constituição e que deveria ser federalista. Isso é muito importante, porque era liberal, contra governos despóticos, enfatizava a sociedade civil e menos o estado, que deveria ser mínimo”, explicou a historiadora Socorro Ferraz, professora emérita da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Para a Corte, o estado deveria ser “máximo”, com o imperador com bastante poder. “Essa é uma grande diferença entre esses dois modelos de nação, dos liberais radicais de Pernambuco e dos liberais do Sudeste, que queriam um estado mais forte. A Revolução de 1824 é uma resistência ao processo de formação do Estado Nacional, como Pedro I e os liberais conservadores sugeriam como projeto de nação para o País”, analisa a professora. Além de federalista, a revolução tinha um perfil nacionalista. Isso também a diferenciava da ala conservadora, pois Pedro I era herdeiro do trono português e ainda propôs, na época, uma aliança com os militares de Portugal.

Entre os líderes da revolução, Frei Caneca, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, presidente da Província de Pernambuco na época, e outros integrantes já tinham participado da Revolução Pernambucana de 1817. O Estado havia assinado três anos antes, inclusive, a Convenção de Beberibe, que expulsara o último governador português garantindo a ascensão de Gervásio Pires. Pernambuco era, portanto, um caldeirão de ideias que polarizaram com a Corte do Rio de Janeiro, onde estava Dom Pedro I.

AUTORITARISMO À PROVA

Outra palavra muito associada ao sistema político brasileiro nos últimos anos foi o autoritarismo, também presente nos primeiros anos da Independência do Brasil. O País começava a escrever a sua Constituição quando Dom Pedro I, insatisfeito com as discussões, destituiu o parlamento constituinte. Pouco tempo depois, ele apresenta às províncias a Constituição de 1824, que seria outorgada, isto é, imposta pelo monarca sem a participação dos parlamentares, muito menos da população. Esse movimento de D. Pedro era uma afronta, que não passou sem resistência pelos pernambucanos.

“São vários motivos que levam à Confederação do Equador, mas podemos colocar como principal o fechamento da Assembleia Constituinte e logo em seguida a outorga da Constituição de 1884. Ela é extremamente centralizadora e traz ali o Poder Moderador”, afirmou o historiador Bruno Câmara. Ameaças de fechar o parlamento e a escalada de tensão entre os poderes, são outras características perceptíveis na conjuntura atual.

Contrariando os ideais de maior autonomia das províncias, o Poder Moderador introduzido por Dom Pedro I na primeira Constituição conferia a ele mesmo uma autoridade superior aos três poderes tradicionais (Executivo, Legislativo e Judiciário). Além da capacidade de intervir e arbitrar conflitos entre esses poderes, Bruno Câmara lembra que o próprio imperador também era quem dava as cartas no Poder Executivo.

O debate da centralização e do Poder Moderador, aliás, são elos das pautas políticas de 1824 e 2024. O almejado Pacto Federativo, com uma distribuição mais equilibrada do orçamento e das atribuições da União, estados e municípios até hoje não se realizou e a disputa pela autonomia, que originou a revolução, permanece como um problema não resolvido. O próprio slogan “mais Brasil, menos Brasília” tem relação com essa reivindicação dos revolucionários.

A concentração de recursos e poderes no ente federal é uma crítica recorrente em cada pleito eleitoral. O movimento municipalista, enquanto esforço das entidades representativas das cidades para fortalecer a autonomia, a capacidade financeira e administrativa dos governos locais, e o Consórcio Nordeste, que reúne os governadores dos nove estados da região, por exemplo, se relacionam com essa pauta de dois séculos atrás. Não necessariamente de ruptura, mas de um fortalecimento dos governos locais.

Por outro lado, o Poder Moderador, revestido inicialmente pela figura do imperador e, posteriormente, pelos militares que proclamam a República, em 1889, é outro fantasma que permanece presente no País. É mais uma palavra que irrompeu nos últimos anos no cenário político nacional em meio aos pedidos de intervenção militar no Brasil contra o processo eleitoral.

“O que há de mais grave nessa Constituição, para quem defendia um sistema constitucional de verdade, é o fato de ter criado um quarto poder (Moderador). O moderador tem a capacidade de desequilibrar completamente o que é o mais fino, o mais delicado do sistema constitucional, que é o sistema de freios e contrapesos. Como os três poderes nunca funcionaram realmente, nunca tiveram equilíbrio e independência de verdade, ficou sempre esse fantasma do Moderador”, afirmou o historiador George Cabral. Ele acrescenta que os militares, no último século, mantêm viva essa ideia. “Ao longo de toda a República, vai ter sempre essa intenção, mais ou menos declarada, de que as Forças Armadas são um poder moderador. No entanto, elas não são. São servidores de estado, como qualquer outro servidor público”, afirmou Cabral.

CONFRONTO LOCAL

Se o fechamento da Assembleia Nacional Constituinte, a outorga da Constituição de 1824 e a criação do Poder Moderador já eram motivos suficientes para a revolta, há dois elementos bem locais que aumentam as tensões. Dom Pedro I tentou impor o nome de Francisco Paes Barreto, conhecido como o Morgado do Cabo, como presidente da província de Pernambuco.

Acontece que o então presidente da província era Manoel de Carvalho Paes de Andrade. Ele, sim, havia sido escolhido pelos pernambucanos, inclusive participou ativamente da Revolução Pernambucana de 1817, sendo um dos poucos sobreviventes entre os líderes daquele conflito anterior, que também tinha separado o Estado do restante do País.

Além da trajetória política, de ter participado de muitos confrontos, ele era rico, integrante da Maçonaria e filho de uma das tradicionais famílias pernambucanas. De acordo com Paulo Santos de Oliveira, no seu livro Pernambuco – Histórias e Personagens, para Manoel de Carvalho “o Brasil deveria constituir-se como nação seguindo as novas ideias do século, não copiando o modelo aristocrático europeu”. A inspiração eram as 13 colônias americanas que construíram os Estados Unidos.

Já Francisco Paes Barreto não era aceito pelas elites locais de Pernambuco principalmente por causa de sua ligação com o governo central. Ele também participou da Revolução de 1817, mas mudou de lado, apoiando os monarquistas. Paes Barreto havia sido o presidente da província anteriormente, com um governo instável e autoritário.

“A incompetência e inércia do Presidente da Junta [em referência a Paes Barreto] resultaram em um clima de anarquia na capital da província. O clima de convulsão vai levá-lo à renúncia”, escreveu Teobaldo Machado, em seu livro As Insurreições Liberais em Goiana, acerca do liberal que se uniu aos conservadores e foi escolhido por Dom Pedro I para retornar ao poder.

Para garantir o retorno de Morgado do Cabo à Presidência da Província em Pernambuco e remover o republicano Manoel de Carvalho do poder, Dom Pedro envia uma força naval para o Recife. Ele desejava também que os pernambucanos aceitassem a Constituição de 1824. Porém, a missão naval retorna ao Rio de Janeiro antes de garantir seus interesses. O motivo do retorno não se tratava do fato de o imperador ter mudado de ideia. Mas pelo risco de o Brasil ser invadido por Portugal, segundo uma informação que circulou na época. Para garantir a segurança do Rio de Janeiro, Dom Pedro I desprotegeu Pernambuco que, provavelmente, seria o primeiro ponto de enfrentamento. O ataque português nunca aconteceu. Mas a retirada dos navios aumentou a insatisfação.

“Dom Pedro I mandou uma esquadra a Pernambuco para forçar a aceitação do Presidente da Província e também a Constituição. Eram três barcos somente, mas o suficiente para fechar o porto do Recife. Mas em junho de 1824 correu o boato de que Portugal ia atacar o Brasil. Então, ele avisa a frota para que volte correndo. O imperador já tinha traído a autonomia da província e o juramento constitucional e, assim, traiu também o juramento de ser defensor perpétuo do Brasil. Porque se esse ataque estivesse mesmo sendo realizado, o primeiro ponto que seria atacado era o Recife, por uma questão geográfica”, afirmou George Cabral.

É na sequência dessas traições que expõe um pensamento de “mais Rio de Janeiro, menos províncias” que acontece a proclamação da Confederação do Equador. “Os interesses locais foram o que nortearam esse desejo de autonomia. Mas isso não deslegitima a revolução, porque cada parte do País tem realmente suas peculiaridades. A monarquia é abertamente centralista, mas quando vem a República, não consegue equalizar a Federação. Até hoje temos uma série de problemas em relação ao Pacto Federativo. A Constituição de 1988 avançou bastante nisso, descentralizou e municipalizou muita coisa, mas é um aspecto ainda inconcluso”, avalia George Cabral.

ENTRE 1817 E 1824

A Confederação do Equador é mais um episódio daquele início do Século 19, de forte efervescência política em Pernambuco. A ruptura com o Rio de Janeiro agrega mais quatro províncias, o que dá uma abrangência maior que a Revolução Pernambucana de 1817, com a adesão da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e do Ceará. Pernambuco, nessa época, por sinal, tinha um território bem mais extenso. Foram as derrotas nesses movimentos que reduziram o mapa do Estado ao tamanho que conhecemos hoje. Antes de 1824, pertenciam à província uma parcela significativa do oeste da Bahia, a Comarca do São Francisco.

A professora Socorro Ferraz lembra que uma das distinções entre 1817 e 1824 é o fato de que no primeiro movimento, a elite agrária integra as forças revolucionárias. Na Confederação, ela se posiciona ao lado do imperador. Morgado do Cabo era o exemplo maior dessa mudança de lado. Entre a ruptura do regime e a retomada da região pelo Império, foram menos de cinco meses de governo. Os ideais constitucionais e de federalismo, que tinham sido sufocados em 1822, na Independência, foram mais uma vez freados após a breve experiência em 1824.

A trajetória dos revolucionários e a ideologia que os guiava, pela voz potente de Frei Caneca, serão alvo da segunda reportagem da série, que volta 200 anos para recontar o segundo momento de independência de Pernambuco.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais

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