Terceira reportagem da série Memórias do Golpe em Pernambuco destaca os esforços para relembrar os fatos ocorridos nos anos da ditadura e de promover justiça e educação social para evitar novos períodos sem democracia.
*Por Rafael Dantas
“Purgar os erros / lembrar os mortos / fecundar os sonhos / festejar as vitórias. / Se não fizermos isto / pela nossa história / quem o fará?” Os versos do ex-preso político Marcelo Mário de Melo resumem o sentimento das vozes que lutaram para desvendar as verdades do período da ditadura civil militar brasileira. Esforços que tiveram objetivo também de gerar algum tipo de reparação para as vítimas dos crimes que aconteceram entre 1964 e 1985. Pernambuco tem algumas contribuições relevantes nesse momento pós-redemocratização do País. Embora muitas perguntas e muitos reparos ainda estejam por ser feitos, uma caminhada pela memória já foi realizada nessas duas décadas de democracia.
Em Pernambuco, por exemplo, foi instalado na Rua da Aurora o que é considerado o primeiro monumento do País em memória aos mortos, desaparecidos e torturados pela ditadura militar. O Tortura Nunca Mais, é fruto de um concurso de arquitetura realizado na gestão de Jarbas Vasconcelos na Prefeitura do Recife, ainda em 1988. Ele foi erguido apenas em 1993, trazendo a representação de um homem em posição fetal, pendurado em uma haste de ferro. A imagem é uma referência à tortura dos presos no pau de arara.
A construção do Memorial da Democracia, a criação de comissões da Verdade e de Anistia, a publicação de robustos relatórios desses grupos e o apoio a diferentes pesquisas vão costurando uma rede de ações no Estado para não deixar a ditadura no esquecimento. A presença de nomes de relevância na redemocratização nos espaços de poder em Pernambuco nos primeiros anos após o golpe, contribui para essa sensibilização. Além da pressão da sociedade civil, sempre presente.
“Um dos principais nomes nesse período é o Miguel Arraes, que volta a Pernambuco para consolidar a democracia, para retornar às eleições diretas. Podemos chamar atenção também para Jarbas Vasconcelos, que assume a prefeitura e chega no final dos anos 90 ao Governo do Estado. Foram nomes que efetivamente lutaram por um processo democrático”, destacou o historiador e professor da Universidade de Pernambuco, Carlos André Silva de Moura.
Essa peculiaridade do Estado ter eleito em 1994 o governador Miguel Arraes, um dos presos e mais famosos exilados políticos, deposto pelos militares em 1964, trouxe alguns marcos importantes para a preservação da memória. “Pernambuco tem uma característica interessante, no pós-ditadura, por termos o Governo Arraes. Ele é um dos pioneiros ao retirar da Polícia Civil a documentação do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social)”, afirmou Tásso Brito, historiador, pesquisador colaborador da Fundaj e doutorando na Universidade Federal do Ceará.
Esse movimento foi importante pois, após a criação da comissão de mortos e desaparecidos, houve experiências e tentativas de queima desses arquivos em lugares que permaneciam em posse de grupos militares. “Aqui em Pernambuco, essas documentações foram levadas para o Arquivo Público. Arraes também financiou o lançamento do livro que é um dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos nacional, publicado pela Cepe”, conta o Tásso. “Houve uma chance aqui de elaborar essas memórias, antes mesmo de se criar a Comissão da Verdade. A gente sempre esteve muito ligado a essas políticas de memória”.
EIXOS DAS POLÍTICAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
Os processos conhecidos como justiça de transição, que aconteceram em lugares que superaram ditaduras ou golpes, atuam em frentes como a restauração da memória e da verdade, a busca por restituições financeiras e morais, além de ações para evitar a repetição das rupturas democráticas.
Na experiência brasileira, segundo Tásso Brito, houve um intervalo grande de 10 anos para essas ações ganharem corpo. Um dos marcos para a memória e justiça foi a Lei 9.140 (1995), que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas. É esse instrumento que promoveu a indenização para os familiares, de R$ 100 mil, além dos esforços para serem encontrados os restos mortais.
Um segundo momento de destaque dessas reparações é a criação do Estatuto do Anistiado, pela Lei 10.559 (2002), que criava também a Comissão de Anistia, para reparar financeiramente e moralmente as vítimas desse processo. Desse esforço foram financiadas muitas políticas públicas, incluindo suporte a pesquisas, publicação de livros e atividades culturais, como o projeto Marcas da Memória. Essa iniciativa financiava produções artísticas e intelectuais da sociedade civil que tinha como objetivo ajudar na elaboração de memória, com filmes, documentários e projetos universitários.
Em Pernambuco, houve iniciativas locais em paralelo ao que acontecia no cenário nacional. Além da criação de uma comissão estadual de anistia, houve também uma indenização às famílias dos mortos e desaparecidos políticos. Além da reparação econômica, esse esforço reconhecia os crimes do Estado e essas pessoas como vítimas. “Aqui as pessoas ganhavam até R$ 32 mil. Mas existia uma política de memória e as indenizações eram às vezes o que menos importava nesse processo. Era mais importante o reconhecimento estatal e a elaboração de projetos relacionados a essas memórias. Isso acontece aqui em Pernambuco mesmo antes da Comissão da Verdade”, explicou Tásso Brito.
O passo seguinte foi a Comissão da Verdade, a partir da Lei Nº 12.528. Essa nova estrutura do Estado não estava mais focada nas restituições financeiras e morais, mas passava a direcionar sua atenção aos esclarecimentos da memória e à verdade. Pernambuco criou a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara. Foram editados dois volumes de uma publicação histórica, que fizeram um levantamento dos mortos e desaparecidos no Estado e da atuação da ditadura em áreas temáticas. Foi explicitada a incidência do regime no campo, no movimento estudantil, nos meios de comunicação.
“Esse documento é o que existe de mais atual sobre os impactos da ditadura em Pernambuco. Mas nós pernambucanos ainda não conhecemos esse relatório. Apesar de ter sido lançado em 2017, é ainda de grande desconhecimento da população”, avalia Manoel Moraes, que é professor de direito da Unicap e titular da Cátedra Unesco/Unicap de Direitos Humanos Dom Helder Camara. Na sua trajetória de pesquisas, ele produziu uma tese de doutorado sobre justiça de transição.
Os documentos explicitaram o fato de o Estado ser o terceiro do País com maior número de desaparecidos políticos, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Além disso, Manoel Moraes aponta que essa pesquisa revelou que a repressão em Pernambuco é muito maior inclusive do que se conhecia e mesmo do que chegou a ser registrado no livro.
O pesquisador da Unicap explica que a atuação das pesquisas e da Comissão de Anistia criaram a possibilidade de reconhecer a contribuição de muitos pernambucanos nas lutas pela redemocratização. “Dedicamos as nossas homenagens a todas as pessoas que colocaram suas vidas, seus corpos, suas carreiras em risco. Portanto, depois, quando houve o processo de redemocratização do Brasil, essas pessoas foram anistiadas e puderam ser reparadas ou reintegradas e até receberem a justa homenagem do estado brasileiro, com um pedido de desculpas, por tudo o que ele praticou contra elas, segundo o que foi revelado na comissão da anistia”, afirmou Manoel Moraes.
Apesar dos robustos achados e relatos alcançados nesses documentos, com um recorte estadual, o historiador Carlos André Silva de Moura lembra que há uma longa memória de atrocidades ainda a ser reconhecida pelo Estado. “O relatório da Comissão da Verdade avança no reconhecimento dos presos políticos, dos mortos, como o Padre Henrique, e em pontuar a importância da luta do campo, por exemplo. Mas deixa ainda de tocar em questões sensíveis como a violência sexual contra as mulheres, contra travestis, contra homossexuais, que foram extremamente grande. Há diversos outros setores em que houve ainda silenciamentos”.
Outra ausência sentida pelo ex-preso político Marcelo Mário de Melo foi a de avançar nas informações relacionadas ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas). “A Comissão da Verdade Nacional que Dilma criou foi um avanço, mas ela atuou nos limites da anistia ampla e geral. A daqui de Pernambuco foi inclusive pioneira e revelou coisas muito interessantes como, por exemplo, os atestados de óbito falsos, as falsas versões dos mortos e presos políticos. Mas, a coisa mais importante da repressão política era o CCC que não avançou um milímetro”, questionou Marcelo. Apesar disso, ele ressalta a relevância desses espaços para desvendar as memórias do golpe.
Um dos desdobramentos do trabalho dessa comissão em Pernambuco foi a instituição do Memorial da Democracia, no Sítio da Trindade, no Recife. “É um órgão de continuidade da Comissão da Verdade. É importante que ele seja reconhecido pela população. A sociedade pode conhecer nesse espaço o legado da resistência democrática e do espírito pernambucano. Ele não trata só da resistência da ditadura, mas apresenta um fio condutor da nossa alma, da nossa condição de pernambucanos. Somos um Estado que já foi um País. A repressão à nossa compreensão de mundo sempre foi muito forte e nós sempre resistimos. Não é à toa que na ditadura a nossa atuação, enquanto pernambucanos, não poderia ser diferente”, afirmou Manoel Moraes.
Os esforços em todo o País em revelar os porões da ditadura sofreram um forte golpe a partir da queda de Dilma Rousseff, em 2016, segundo Tásso Brito. Ele conta que após esvaziamento das comissões nas gestões de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, vivemos hoje um momento ainda tímido de retomada das ações para revelar essa página obscura da história brasileira. “Hoje estamos voltando aos poucos os trabalhos dessas comissões, mas de forma ainda muito acanhada”, aponta o pesquisador.
Uma das contradições do nosso período democrático, por exemplo, foi a omissão do Governo Federal de rememorar os 60 anos do golpe militar, que aconteceu em abril deste ano. Diante do cenário intenso de polarização do País e pouco mais de um ano após o atentado contra a democracia do dia 8 de janeiro de 2022, o presidente Lula cancelou os atos que relembrariam os perseguidos do golpe de 64. Ato considerado um erro grave para o ex-preso político Marcelo Mário de Melo.
“Acho inadequada a condição que Lula assumiu. Admito que a prioridade são os golpistas do momento. Esse fortalecimento dessa extrema direita no Brasil a ponto de termos quase um golpe é porque não houve um trato adequado ao militarismo. O poder civil no Brasil não tem nenhum poder sobre as Forças Armadas. Ainda hoje se diz nesse meio a Revolução Democrática de 1964 no Brasil. É um poder paralelo”, afirma o ex-preso político.
TUTELA MILITAR NA MEMÓRIA DA DITADURA
Apesar dos esforços locais e nacionais, Tásso considera que a forma de tratar esse passado, dos anos de 1964 até 1985, é muito ainda mediada pelos próprios militares e nas corporações não houve uma elaboração dessa memória. Um processo que gera incompreensões, como as manifestações em prol de intervenção militar.
O pesquisador explicita essa percepção em dois momentos principais. O primeiro foi na votação para aprovação da lei 9.140 (1995) que reconheceu os mortos e desaparecidos políticos do período militar. Tásso relata que na ocasião da sua promulgação, o então deputado Artur Virgílio disse que ela não era boa, mas era a lei possível. Em outro momento, na aprovação da Lei nº 10.559 (2002), que criou a Comissão de Anistia, o pesquisador faz a mesma observação. Ele relata que o jurista Luiz Eduardo Greenhalgh, deputado na época, fez o mesmo discurso, de que se tratava da lei possível de ser aprovada na ocasião.
“Essas declarações são porque tudo foi mediado nos bastidores pelos militares. Muitos políticos de esquerda e direita votaram contra projetos que defendiam. Ao entrevistar os deputados da época, eles dizem que criaram emendas importantes mas, no dia antes da votação, chegaram ordens para não mudar, para não ter as Forças Armadas agindo contra o governo. A presença dos militares na antessala das votações mostra que a Nova República é ainda refém deles”, explica Tásso Brito.
A transição lenta e gradual pela qual passou o País, o longo tempo para transição e a tutela dos militares a reelaboração da memória desse período não são os únicos motivos que explicam as motivações de muitos brasileiros ainda defenderem intervenção militar. Tásso considera que toda a história brasileira é costurada por longos períodos de autoritarismo e de rupturas institucionais.
Antes de 1964, ele lembra que a própria criação da República foi a partir de um golpe. O fim da República do Café com Leite, nos anos 30, aconteceu com um golpe que abriu caminho para a Ditadura de Vargas, também encerrada com forte atuação militar. “Temos uma tradição dos militares na nossa cultura, temos uma sociedade que foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Isso deixa um ranço do autoritarismo. Temos uma construção social do imperativo no Brasil, com uma cultura militar, do autoritarismo e de um passado não elaborado, que acaba criando um apoio ainda a esse período da ditadura”.
ATUAÇÃO SOCIAL EM PROL DA MEMÓRIA E JUSTIÇA EM PERNAMBUCO
Além do trabalho das comissões, da construção de leis e das ações públicas, sejam de reparação econômica ou simbólicas, há muitos esforços da sociedade para não deixar no esquecimento os crimes da ditadura. Seja em publicações, depoimentos ou mesmo na construção e manutenção de espaços de memória, vítimas do Estado de exceção ou seus descendentes mantêm essa luta viva.
Em Vitória de Santo Antão, um dos espaços simbólicos da perseguição no período militar foi o Engenho Galileia. Ícone das desapropriações de terra em benefício dos trabalhadores rurais, a propriedade foi invadida pelos militares logo após o golpe de 1964. Décadas após a prisão dos líderes da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, o neto do primeiro presidente voltou para criar uma biblioteca e atuar em memória desse movimento rural.
Zito da Galileia, bem jovem em 1964, precisou deixar Vitória e depois sair de Pernambuco para não ser preso. Nesse retorno ao Estado, já na terceira idade, ele escreveu o livro A História das Ligas Camponesas: Testemunho de Quem a Viveu, e mantém a Biblioteca Zezé da Galileia que preserva a história do lugar. Nesta semana, inclusive, foi lançado também o documentário A Liga da Galiléia, dirigido por Lázaro Santos, baseado no livro.
Quem também retornou para Pernambuco para juntar os fragmentos da memória foi Anacleto Julião. Ele preservou um vasto material sobre seu pai e sua mãe, Alexina Crespo. Apesar da estatura de ambos nas lutas políticas pré e pós-golpe, suas trajetórias são pouco conhecidas ainda pela maioria dos pernambucanos.
Anacleto aprendeu em casa e sabe da importância do papel educativo na conscientização popular sobre a história e dos direitos da população, a partir da inspiração dos pais. “Alexina era uma educadora no campo para conscientizar os camponeses dos direitos que eles tinham e implantar os direitos trabalhistas nas propriedade e fazer a reforma agrária. Para conscientizar o campesinato, Francisco Julião usava o Código Civil, as leis trabalhistas e a Bíblia, mas também usava a literatura de cordel”. Ele revela o desejo de erguer em Vitória de Santo Antão a consolidação de um Memorial das Ligas Camponesas do Brasil.
Anacleto voltou em 1980 ao Brasil, com a anistia. Após passar em Cuba, no Chile e na Suécia, durante os anos de exílio, seu retorno tem essa missão de preservar a memória. “Estou organizando todo o material, não só meu. Juntei muito material durante todos esses anos de volta ao Brasil. Tenho tudo de mim, de Alexina, de Francisco Julião e de cada um dos meus irmãos, antes, durante e depois da volta. Estamos lutando com unhas e dentes para ter todo esse material digitalizado. Por isso podemos contribuir com fotografias e mesmo com arquivos de voz. Aos trancos e barrancos chegamos para contar essa história, fundamentalmente das ligas camponesas. Apesar da minha idade e da resistência física, continuo à disposição de quem pretende divulgar toda essa história de luta do nosso povo”.
No Recife, Marcelo Mário de Melo entrega nos versos e em saraus as suas memórias, inquietações e percepções da ditadura. Ele não se esquiva de entrevistas e contribuiu com as comissões quando foi chamado. Apesar de ser uma dos torturados da ditadura, ele tem uma interpretação diferente sobre os grandes prejudicados pelo autoritarismo dos anos de chumbo. O poeta considera que a grande vítima da ditadura foi a sociedade brasileira: o País que perdeu décadas de lutas democráticas por muitos direitos que ainda não foram conquistados.
Pernambuco teve, portanto, um espaço de protagonista nos diversos momentos que marcaram a ditadura militar brasileira. As lutas e memórias que formam um quebra-cabeças desse período ficam escritas nas paredes, nos livros e nas vidas que ainda lutam para não deixar ser apagada essa trajetória de resistências.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Gente & Negócios e Pernambuco Antigamente (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)