"2026 Será O Ano Cultural Brasil-China E Uma ótima Oportunidade De Aproximação De Pernambuco Com Os Chineses" - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
"2026 será o Ano Cultural Brasil-China e uma ótima oportunidade de aproximação de Pernambuco com os chineses"

Berço da primeira República do Brasil e com uma forte cultura que remonta à sua história, Pernambuco, segundo o Evandro Carvalho, professor de Direito da FGV-Rio, apresenta caractrerísticas que facilitariam uma relação econômica mais próxima com a China. “Na filosofia do Tao há uma passagem que diz algo como 'você olha para a mãe, saberá como são os seus filhos', ou seja, conhecer o passado é se prevenir contra danos no presente. Isso está muito presente na cultura chinesa, essa valorização da origem das coisas.  Os chineses trabalham muito a questão da história”, constata.

Mas Pernambuco também tem um porto moderno e parques tecnológicos que interessam aos chineses. Porém, as relações comerciais com o Gigante Asiático ainda são tímidas e muitas vezes realizadas por intermédio de entidades de São Paulo. “Mas alguns estados nordestinos estabeleceram uma relação direta com os chineses", alerta o professor que está trazendo para o Estado em 2026 – o Ano Cultural Brasil-China – um evento da revista China Today, que visa promover essa aproximação.

Nesta entrevista a Cláudia Santos, Evandro Carvalho – que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense e da Cátedra Wutong do College of Sinology and Chinese Studies da Universidade de Língua e Cultura de Pequim – fala  da relação de Pernambuco com os chineses. Também  analisa o embate de Donald Trump com o Brasil e o país de Xi Jinping e defende uma institucionalização do Brics.

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Alguns analistas dizem que Trump decretou a maior tarifação para o Brasil para servir de exemplo, como um recado para a China. Você compartilha desta análise?

Diante da ascensão chinesa, Donald Trump quer fortalecer a economia dos EUA. É uma tentativa de conter a China para que ela não se torne a maior economia do mundo e isso possa gerar transformação nas relações de poder do sistema internacional e nos padrões de conduta, valores e visões. A China é o maior parceiro comercial de quase 140 países e tem uma política externa de investimento cada vez mais expansiva. Então, essa é a primeira preocupação de Trump. 

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Além disso, o método dele para que os países considerem os EUA como principal parceiro é agressivo e antipático. Ele prefere negociações bilaterais, que são sempre muito difíceis. Tem pavor ao multilateralismo e, ao invés de buscar a via diplomática, força uma negociação desejando que a outra parte já inicie de joelhos. 

Os países que resistem a isso tornam essa negociação mais dura e ele não tem paciência com esse “jogo de xadrez” mais complexo com figuras como Putin, Xi Jinping e Lula.  Já a Europa, teve um comportamento de submissão às condições estabelecidas por Trump. É um caminho errado porque ele respeita quem o desafia. A presença chinesa na América Latina é outro problema para os EUA por várias razões, incluindo, indiretamente, razões militares. Diante do risco de conflitos entre grandes potências mundiais e se os EUA conseguirem renovar a doutrina Monroe, de América para os americanos, terão recursos disponíveis para aguentar uma guerra, porque terão uma área com terras raras, minérios, petróleo e alimentos.  

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A presença chinesa gera desconforto e impõe limites aos EUA. Outro fator é o apoio de Trump à expansão da extrema-direita. Bolsonaro chegou a dizer que, se caísse a proibição da sua inelegibilidade e ele fosse novamente presidente, tiraria o Brasil do Brics. É como se dissesse: “Se eu for protegido, lhe entrego tudo que você quer”. Isso era música aos ouvidos do Trump, mas ninguém contava com a capacidade do Lula de lidar com essa situação. 

Nesse contexto, qual o papel do Brics? 

Com a expansão recente, incluindo Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito e Indonésia, o Brics amplia sua legitimidade, tanto do ponto de vista populacional, quanto econômico. O PIB global que esse grupo representa já era maior que o do G5 e agora é maior que o do G7. Mas não é apenas um grupo de países visando acordos econômicos. Há uma agenda reformista que distingue o Brics de qualquer outro acordo ou agrupamento de países mais voltados às questões de parcerias econômicas. 

Quando falamos em reformas como a da ONU, FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio e da Organização Mundial da Saúde, o Brics quer ter maior participação, maior poder de influência no mundo, para ampliar a força, a legitimidade dos países em desenvolvimento. É um grupo que precisa ser ouvido pela força que tem por “N” razões. A China gabarita todos os itens. A Rússia não é tão forte quanto o Brasil do ponto de vista econômico, mas é forte militarmente. A Indonésia tem uma grande força no mercado, e uma população que ultrapassou à do Brasil. 

Ter uma agenda reformista não significa que o grupo contesta a ordem internacional, pelo contrário, a China e a Rússia estão bem confortáveis no Conselho de Segurança da ONU. Não é uma questão de implodir a ordem, mas avaliar como as diferenças dos países podem ser manejadas. A segunda questão é que essa ampliação aumenta a complexidade do grupo e eu acho isso muito interessante, desafiador, mas a realidade desses países tão diversos é uma grande vantagem. No passado, com a ideia de globalização da década de 90, as diferenças eram vistas de forma negativa. Mas a globalização na perspectiva chinesa é baseada na noção de que a harmonia está nas diferenças. 

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Eu defendo a institucionalização do Brics, que seria transformá-lo numa organização internacional. Há críticas a essa proposta, como o risco de trazer custos aos estados, burocratizar o processo decisório etc. Porém, não vejo que a institucionalização precise necessariamente significar uma estrutura pesada. Uma secretaria administrativa internacional pode ter uma estrutura simples para coordenar as inúmeras iniciativas que estão sendo feitas ou que foram decididas para serem feitas, reunir as informações relativas ao Brics, ser responsável pela preparação do ano seguinte e tornar todas essas informações mais transparentes. 

Hoje não é possível encontrar informações oficiais sobre o grupo todo, não tem sequer um site oficial. Cada país sedia a cúpula do ano respectivo, faz o site, coloca as informações que achar pertinentes, compõe a agenda e, quando acaba o ano, acaba aquela cúpula, o país seguinte vai fazer tudo novamente ao seu molde. No governo Bolsonaro, por exemplo, quando houve uma cúpula em Brasília, não era dada atenção devida ao Brics, havia dificuldades de acesso à informação. Ou seja, o ideal seria haver uma secretaria própria do Brics, com funcionários trabalhando online em países diferentes para minorar o déficit de informações e a dificuldade de obter respostas sobre iniciativas do grupo. 

Quais as consequências da conexão bioceânica para o Brasil?

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A Ferrovia Bioceânica é um projeto que o Brasil deve levar adiante. É um projeto complexo, que exige, por parte do Governo Federal, negociações com governadores e prefeitos. Do ponto de vista econômico, considerando que a China é o maior parceiro comercial do Brasil, ter acesso à Ásia via Pacífico, reduzirá o tempo de transporte e os custos, tornando, portanto, os produtos brasileiros mais competitivos no mercado internacional. 

A China deve ser tomada como exemplo quanto a projetos ferroviários. Ela usa trens para transporte de mercadorias, atendendo a um projeto de desenvolvimento da sua interiorização e, por meio da sua malha ferroviária, conseguiu ampliar o desenvolvimento para o oeste, mais para o interior. A malha ferroviária tem esse componente de promover o desenvolvimento e, por onde passa, não é só transportar mercadoria de um ponto a outro cruzando o país como se nada houvesse no trajeto. Ela foi pensada para promover a relação da zona rural com a zona urbana e o desenvolvimento de cidades. 

Essa questão deve ser bem apresentada na discussão da Bioceânica do Brasil. Não se deve pensar apenas na redução de custos das commodities. É preciso pensar para além do transporte de produtos, abordando, por exemplo, a possibilidade de transportar pessoas dentro de uma lógica de integração cada vez maior do País. Na China, os trens de alta velocidade tiveram esse componente de integração nacional. Ela deve ser tomada como exemplo por ser um governo pensado para servir o povo com centralidade da população nas políticas públicas. Por isso, nessa reflexão sobre a malha ferroviária, é preciso pensar como uma ferrovia beneficia a população. Ou seja, como promover o desenvolvimento por meio dessa ferrovia, não só na construção dela, que vai gerar emprego. Mas, uma vez construída, ela vai ajudar no processo de interiorização do país, desconcentração populacional, desenvolvimento de cidades pequenas. 

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Pernambuco está fora da conexão com o traçado planejado da bioceânica. Como você vê a relação da China com Pernambuco acerca desses projetos? 

É uma relação ainda deficiente. De um tempo para cá, já há uma compreensão de que é preciso estabelecer uma relação melhor com a China. O Nordeste como um todo tem potencial para melhorar essa relação. A China é o maior parceiro comercial do Brasil e o Brasil, por sua vez, é o maior receptor de investimento chineses na América Latina. Do total que o Brasil recebe, quase metade vai para o Estado de São Paulo, que ocupa uma centralidade na relação com a China em todos os sentidos. Isso não só em função da economia de São Paulo mas, também, da presença significativa de chineses, sobretudo na capital paulista. Entretanto, é possível criar um caminho de diálogo mais frutífero e promissor para a região Nordeste. 

A visão que os chineses tinham do Brasil está mudando. Era uma visão reduzida que recebiam de alguns paulistas. Acho que o Nordeste deve parar de fazer negócios com a China, passando por uma conexão com São Paulo. Não precisa procurar entidades paulistas para abrir portas com os chineses, eles já estão interessados nessas relações. Alguns estados nordestinos estabeleceram essa relação direta. 

Uma certa elite cultural e econômica pernambucana ainda tem uma visão estereotipada, limitada da China, muito voltada para repressão e, às vezes, essa visão acaba atrapalhando. O Porto Digital, por exemplo, poderia estabelecer uma relação com a China. Como essa relação não acontece, a China tem que procurar outros interlocutores, “um outro porto digital”, talvez em outra cidade, para desenvolver outros projetos. Pernambuco deve aproveitar suas capacidades, incluindo as universidades, a fim de criar outros centros de desenvolvimento tecnológico. 

Os poderes públicos têm que destravar isso e aproveitar que há um ecossistema dinâmico, complexo, interessante no Recife, para se utilizar dessa onda que a China está querendo surfar. No Rio de Janeiro, Eduardo Paes está aberto às possibilidades com os chineses na criação de um centro de desenvolvimento da BYD para carros autônomos. O Ceará está negociando data centers e a China também têm interesse em outros projetos por lá. Pernambuco está perdendo o passo nessa possibilidade de construção de uma relação com a China muito mais dinâmica. 

A China é muito grande, possui empresas querendo vir para o Brasil mas não sabem como. Precisamos agir com mais autonomia. Acho que procurar entidades paulistas para saber quais são os caminhos é um erro estratégico, porque essas entidades vislumbram primeiro o interesse delas. A agenda deveria ter sido construída em conjunto, sobretudo com entidades chinesas. E temos um consulado da China no Recife.

Pernambuco deixa muito a desejar na construção de uma relação madura que aproveite esse incremento que tem havido em relação com a China para beneficiar o próprio Estado e os pernambucanos. 

Qual o objetivo do evento que você está trazendo para o Recife?

O Grupo de Comunicações Internacionais da China (CICG) publica a revista China Today. E eu fui responsável por trazer essa edição para o Brasil, continuo até hoje como um editor executivo chefe da revista, que realiza, anualmente, um evento, voltado para temas das relações bilaterais, mas de maneira mais ampla, incluindo a parte cultural, arte, cinema, mídia e os centros de pesquisa. 

Em 2026, que será o Ano Cultural Brasil-China, esse evento será realizado em Pernambuco, será uma ótima oportunidade de aproximação com os chineses. O Brasil não é só o Sudeste.  Pernambuco tem um dever, considerando o peso da China no mundo, de dizer: "O Brasil não é só São Paulo e Rio", é Nordeste, é Pernambuco, que é um um Estado que tem uma cidade onde nasceu a República Brasileira, uma cultura bonita que poderia dialogar também com uma história como a da China. Quando termina a dinastia Qing, no começo do século 20, tem início a era republicana com Partido Nacionalista que funda a República da China, depois os comunistas em 1949, a República Popular da China. Então, a diferença dos governos desses partidos da era das dinastias é a dimensão republicana, que preconiza que o governo deve servir ao povo.

No livro China: o Nordeste que deu certo, Heloneida Studart fala sobre sua ida à China em 1976. Ela via muita conexão com a realidade nordestina da época. A China mostrou que é possível crescer, mas o mais importante é contar com todo o povo. 

livro China Tradicao e Modernidade na Governanca do Pais

Além da questão republicana, o que mais haveria em comum entre pernambucanos e chineses que pode ser aproveitado nas relações econômicas?

Os nordestinos, assim como os chineses, são receptivos, não negam trabalho. Precisamos de vontade política para avançar numa relação estratégica privilegiada. Havendo sinalização, o governo chinês responderia de maneira positiva.  Os chineses trabalham muito a questão da história. Nos discursos do Xi Jinping, percebe-se o quanto eles contam as histórias da filosofia chinesa. 

Eu inclusive abordo isso no meu livro China: Tradição e Modernidade na Governança do País. Eu explico que a China se define como sistema socialista com características chinesas. Só que desde o Congresso Nacional do Partido Comunista, em 2022, eles deixaram muito claro que para conhecer o sistema político chinês é preciso não só conhecer o marxismo, o leninismo, o pensamento das principais lideranças chinesas mas, também, a fina tradição da cultura chinesa. Então, cada vez mais estão trazendo o confucionismo, a sabedoria chinesa para dentro da governança do país. 

Na filosofia do Tao tem uma passagem que diz algo como “você olha para a mãe, saberá como são os seus filhos”, ou seja, conhecer o passado é se prevenir contra danos no presente. Isso está muito presente na cultura chinesa, essa valorização da origem das coisas.  Em visitas técnicas, percebi a preocupação deles em contextualizar algo do ponto de vista histórico, ressaltando a história de superação das pessoas. Isso é um ponto importante para as nossas autoridades entenderem como devem ser “vendidas” também nossas regiões. 

No caso de Pernambuco, não é apenas mostrar o frevo. É preciso saber contar e o que contar. O que vai ser interessante para os chineses? Talvez seja interessante contar outras histórias que mostram o nascimento da República no Brasil, na cidade de Olinda, ou exemplos de superação da população. Mostrar o Polo de Confecções do Agreste, com pessoas que vieram da agricultura sem conhecimentos de indústria.  Mostrar o movimento armorial que tem essa conexão com a raiz, a história e ao mesmo tempo uma espécie de releitura sofisticada disso tudo. É uma construção do ponto de vista da cultura de pontos de identificação interessantes. Ou seja, Pernambuco tem esse potencial inteiro, tem história, cultura forte, vibrante, viva. Tem um porto gigantesco, um polo tecnológico, está faltando uma visão mais articulada com diálogo direto com os chineses. Não precisa passar por São Paulo, nem por nenhum outro estado.

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