Dá para o Recife se prevenir de eventos extremos?
*Por Rafael Dantas
A situação dramática do Rio Grande do Sul liga um sinal de alerta em todo o País. No Recife, capital brasileira mais vulnerável ao aquecimento global e a 16ª em todo o mundo, há uma corrida contra o tempo. Segundo relatório inédito produzido pelo IRRD (Instituto para Redução de Riscos e Desastres), iLIKA (Instituto Keizo Asami) e pela APC (Academia Pernambucana de Ciências), 44% do território recifense tem um risco alto para inundações.
Jones Albuquerque,professor da UFRPE e pesquisador do IRRD, iLika e da APCE, faz uma comparação entre o período da Covid-19 e os eventos extremos. Ele afirma que enquanto as cidades brasileiras conseguiram reagir ao período da crise sanitária, a adaptação às catástrofes provocadas pelas mudanças climáticas não têm tido a mesma resposta. Ele lembra que muitos municípios brasileiros, inclusive, guardam nomes que explicam a origem desses lugares, ligados a regiões alagadiças. Avanços do passado sobre a região das águas, com inúmeros aterros, que hoje reivindicam de volta o seu espaço.
“Este episódio no Rio Grande do Sul nos alerta para estarmos preparados. Lembremos que o Brasil é cheio de cidades e bairros com nomes sabiamente batizados por nossos antecessores como Canoas ou Porto Alegre. No Recife, não é diferente. Basta averiguarmos a origem dos nomes Várzea e Afogados, além do mais famoso de todos que batiza nossa capital, a Veneza Brasileira”, salienta.
Segundo Jones, os modelos matemáticos para analisar as transformações climáticas mudaram em 2021, mas os sistemas de monitoramento de riscos de desastres do País não se adaptaram a essa mudança. Essa nova modelagem foi apresentada pelos cientistas Syukuro Manabe, Klaus Hasselmann e Giorgio Paris, há três anos, o que lhes rendeu a conquista do Prêmio Nobel de Física, que reconheceu o trabalho deles para compreender os sistemas físicos complexos. O modelo ajuda na compreensão dos componentes que explicam o clima da Terra. O trabalho se propunha a quantificar a variabilidade desses eventos e a entender os efeitos do aquecimento global.
A fenomenologia dos dados climáticos, segundo Jones mudou muito e já não é mais possível fazer projeções a partir do modelo antigo.” Ela não parece ser mais linear. É muito inconstante e gera projeções errôneas por muito tempo, até que a gente tenha dados suficientes para entender essa fenomenologia”, informou Jones Albuquerque.
Entre os variados indicadores que se relacionam com esses episódios extremos, o pesquisador destaca o índice de CO2 na atmosfera e a temperatura dos oceanos. Ambos muito acima das médias históricas. O derretimento das geleiras e a morte dos corais são alguns dos sintomas dessas mudanças.
Ao olhar como esses eventos intensificam as vulnerabilidades para a capital pernambucana, Jones afirma que 52% do Recife está sob risco de ocorrência de inundações – somando o alto risco (44,05%), médio risco (6,8%) e baixo risco (1,3%). Os cálculos são feitos a partir de dados de satélites, comparando a altimetria (medição de alturas ou de elevações) dos terrenos e do nível do mar. “Isso foi comprovado em 2022, cruzando os pontos de alagamentos já marcados pela Defesa Civil de Pernambuco e pelo órgão de monitoramento do trânsito. Alguns desses pontos precisaram de resgates especializados, dentro das áreas de risco vermelho”, explica Jones Albuquerque.
Embora os eventos mais traumáticos do Recife estejam relacionados às cheias dos anos 1970 a cidade viveu uma situação dramática em 2022. Nesse episódio mais recente, as comunidades vizinhas à Bacia do Rio Tejipió foram as mais afetadas. Os milhares de desabrigados e mais de 100 mortes deixaram uma marca. Olinda e Jaboatão também computaram baixas e muitas áreas críticas de alagamento.
Fora da região metropolitana, Pernambuco assistiu a uma grave cheia no ano de 2010, na Bacia do Rio Una. Cidades como Barreiros, Palmares e Água Preta tiveram um vasto rastro de destruição. Prédios públicos, igrejas, comércios e muitas casas ficaram submersos. Parte do município precisou ser reconstruído numa área mais elevada.
As catástrofes na capital e no interior indicam, há alguns anos, a necessidade de intensificar a adaptação do Estado aos efeitos do aquecimento global. “Precisamos atuar preventivamente para reduzir os impactos dos eventos extremos. Temos que focar na resiliência. Isso vai envolver aspectos de engenharia, sociais e, com certeza, ecológicos. No episódio que aconteceu no Rio Grande do Sul, por exemplo, nenhuma cidade aguentaria esse volume de chuva, mas existiram falhas na preparação para esses eventos. Podemos pensar: será que o Recife é vulnerável a algum evento desse? Com certeza. O nível do mar está subindo, com a tendência de termos dias piores pela frente”, considera o engenheiro e professor da UPE e da UFPE, Jaime Cabral.
O pesquisador, que tem larga experiência em recursos hídricos (água subterrânea e drenagem urbana) avalia que houve um choque de realidade nas instituições ligadas ao monitoramento e prevenção desses eventos extremos no Recife, após 2022. O Estado, também, após os traumas das cheias da década de 1970 respondeu com infraestrutura. As barragens ao longo do Capibaribe contribuem com esse papel de proteger a capital da descida veloz das águas pelo curso do rio.
PROMORAR E AS RESPOSTAS DO RECIFE AOS RISCOS
Uma das reações da capital pernambucana aos traumas deixados em 2022 é o Promorar (Programa de Requalificação e Resiliência Urbana em Áreas de Vulnerabilidade Socioambiental). O poder municipal conseguiu um aporte do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) de R$ 2 bilhões para proteção de encostas, urbanização integrada em comunidades vulneráveis e a macrodrenagem da Bacia do Rio Tejipió.
“O sistema de macrodrenagem da cidade está extremamente sobrecarregado. O Rio Tejipió costumava ter em alguns locais 70 metros de largura e hoje tem locais com 10 a 15 metros”, exemplificou a secretária executiva do Promorar Recife, Beatriz Carneiro Menezes. O programa prevê a retirada de pelo menos três mil imóveis de áreas de maior vulnerabilidade, para o direcionamento dessa população para lugares próximos às mesmas comunidades, mas em regiões sem riscos.
Sobre o desafio de executar essa macrodrenagem do Rio Tejipió, a secretária conta que foi concluído um modelo hidrológico e hidrodinâmico, que contribuirá para a compreensão de toda a dinâmica dessa bacia. “Isso nada mais é do que colocar todos os rios e canais da bacia no computador. Agora conseguimos efetivamente identificar como ela se comporta, com cada obra, e estamos publicando a licitação em maio do primeiro parque alagável, feito pelo Promorar, no Campo do Barro, assim como os primeiros 800 metros de dragagem também no Barro”, conta Beatriz. “Um problema dessa magnitude tão antiga não conseguimos resolver em um ano. A cada ano virão mais e mais obras”.
Apenas em infraestrutura de proteção de encostas, outra frente de trabalho, a Prefeitura do Recife informa já ter investido mais de R$ 100 milhões. A previsão é de manter esse mesmo volume de investimento por ano até 2029. Desde 2021, foram 96 encostas já entregues pelo poder municipal.
Na frente de urbanização, o programa está atuando neste momento em 17 comunidades. Beatriz afirma que as quatro primeiras que receberam obras têm data de início para junho. A Comunidade do Bem, na Imbiribeira, receberá sistemas de esgotamento sanitário, abastecimento e diques para contenção de cheias na Bacia do Pina.
“Os projetos do Promorar preveem urbanização integrada em comunidades vulneráveis, abertura de espaços para parques alagáveis. São estruturas de lazer, pensadas com as comunidades, como quadras, academias da cidade, que em momentos de inundação podem funcionar como uma bacia para as águas. Quando os rios baixam, fazemos o processo de limpeza dessas áreas”, informou Beatriz.
O conceito de parque alagável engloba a criação de uma área adicional para o armazenamento das águas, complementada por vegetação projetada para absorver o volume hídrico e promover a biodiversidade local. No contexto do rio Tejipió, a intervenção visa também mitigar o antigo problema de drenagem no espaço, por meio da ampliação da calha.
Além do Promorar, a capital colocou em operação desde o ano passado o Centro de Operações do Recife e criou o Plano Local de Ação Climática do Recife. O primeiro conta com um robusto monitoramento de informações captadas por câmeras de vídeo, sensores, pluviômetros, drones e satélites. Já o plano, desenvolvido com o Iclei (a rede global Governos Locais pela Sustentabilidade), é um estudo que integra um conjunto de ações nos setores de mobilidade, saneamento, energia para fortalecer a resiliência e a inclusão urbana da cidade.
MONITORAMENTO E OBRAS NAS BARRAGENS NO ESTADO
Em 2010, o Governo do Estado prometeu um conjunto de obras de contenção no Rio Una, após as enchentes que destruíram a região. Um relatório do Tribunal de Contas do Estado, de 2023, informou que as obras do "cinturão de barragens" na Mata Sul mostram ainda sinais de paralisação.
De um total de cinco barragens prometidas há quase 15 anos, apenas a de Serro Azul foi inaugurada. Estão como obras inacabadas as barragens de Panelas II (em Cupira), de Gatos (em Lagoa dos Gatos), de Igarapeba (em São Benedito do Sul) e de Barra de Guabiraba (Barra de Guabiraba).
Em nota, o Governo do Estado informou, por meio da SRHS- -PE (Secretaria de Recursos Hídricos e Saneamento), que está desenvolvendo ações para retomar e concluir as barragens para controle de enchentes, sendo prioritários os projetos da Mata Sul, cujas obras foram interrompidas em 2014. “O Governo de Pernambuco segue um rigoroso cronograma de atividades para a retomada das obras e conclusão destas barragens, incluindo a contratação da revisão e atualização dos projetos e orçamentos, necessários para a licitação e contratação das obras, compensações ambientais, planos de segurança e demais exigências legais. Também tem buscado parcerias com o Governo Federal para obtenção dos recursos necessários à finalização das obras.
A Barragem Panelas II (com 50% de suas obras concluídas) teve sua execução retomada em fevereiro, devendo estar concluída antes do período chuvoso de 2025. A obra recebeu recursos do Novo PAC e do Estado que somam R$ 77 milhões. Em maio deve ser concluída a licitação das obras para conclusão da Barragem Gatos (20% de suas obras concluídas). A previsão de retomada da execução é no mês de agosto. O prazo de execução da obra é de 12 meses. O aporte para tirá-la do papel é de R$ 67 milhões, também com investimento do Novo PAC e do Governo do Estado.
O Governo de Pernambuco promete, neste mês de maio ainda, concluir a revisão e atualização do projeto da Barragem Igarapeba (38% das obras). O valor orçado para conclusão é de R$ 272 milhões. Já a revisão e atualização do projeto da Barragem Barra de Guabiraba deverá ter início em junho, com expectativa de que a licitação das obras ocorra no início de 2025. O valor previsto para conclusão desta barragem é de R$ 183 milhões. Os aportes necessários para ambas estão sendo negociados com o Governo Federal.
Sobre a manutenção das barragens já em operação, outra preocupação desses períodos de chuvas intensas, a SRHS-PE informa que em Pernambuco há mais de 500 barragens cadastradas, sejam as que são operadas pelo poder estadual (sob a gestão de diferentes secretarias ou órgãos), pelo poder federal, municipal, ou de entes privados. “O serviço de conservação em barragens foi colocado como prioridade dos investimentos hoje na SRHS-PE, que realiza o monitoramento regular de 63 desses equipamentos considerados prioritários”, informou.
A secretaria informa que há um monitoramento constante nesses equipamentos. O serviço é feito com uma rede de radares e satélites meteorológicos, plataformas de coleta de dados, réguas linimétricas (instrumentos utilizados com o objetivo de monitorar a variação do volume de água dos reservatórios dos rios) e inspeções presenciais. Esse sistema indicou a necessidade de obras de recuperação na Barragem Rio Nilo (em Terra Nova), Barragem Poço Grande (em Serrita), Barragem Jazigo (em Serra Talhada) e na Barragem Inhumas (em Garanhuns). Confira no site algomais. com o cronograma previsto para cada uma delas.
NOVAS PERSPECTIVAS PARA AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Além da intensificação do monitoramento e ações básicas para prevenção, como a desocupação de áreas de iminente subida das águas, há um conjunto de iniciativas no mundo para preparar as cidades para os eventos extremos das mudanças climáticas. Os grandes deslocamentos da população estão nesse leque de ações, mas também medidas de adaptação dos municípios à vinda de volumes maiores de água.
“Precisamos pensar no deslocamentos de populações em regiões de vulnerabilidade. Isso envolve todo um aspecto social. Não sabemos a frequência desses eventos. Existe uma questão de política habitacional para resolver o déficit de moradias, em lugares seguros. Além disso, também há a necessidade do controle urbano, para que espaços desocupados por serem áreas de risco, não sejam reocupados", afirmou o professor Jaime Cabral.
A arquiteta e pesquisadora pernambucana Mila Montezuma defende a necessidade das cidades projetarem a vinda desses eventos extremos. Inclusive, inspirando-se em outros cases globais, visto que as calamidades provocadas por intempéries são compartilhadas por outras regiões do planeta.
A ideia das cidades-esponja é crucial para lidar com os desafios crescentes relacionados às mudanças climáticas e à urbanização. Em muitas áreas urbanas, a infraestrutura foi projetada para drenar rapidamente as águas pluviais, o que pode levar a inundações, erosão do solo e poluição dos corpos d'água. Em contrapartida, as cidades-esponja são projetadas para reter, absorver e reutilizar a água da chuva, ajudando a recarregar os aquíferos, proteger contra inundações e reduzir a poluição. Isso é feito por meio de técnicas como telhados verdes, pavimentos permeáveis, áreas arborizadas e sistemas de drenagem natural.
“As cidades esponjas visam absorver nas cidades 70% da carga de chuva anual. Os chineses têm um plano ambicioso de que em 2030 todas as cidades piloto dos planos de ‘Sponge Cities’, atinjam em mais de 80% da sua área as metas de absorção máxima”, exemplificou.
São múltiplos os estudos para a adaptação das cidades no mundo para receber esses eventos extremos. Os investimentos vultuosos e mesmo os entraves sociais para essa transição são barreiras que dificultam a adaptação ao novo momento climático do mundo que atravessamos. Um fato os municípios e Estados brasileiros não podem negar: a incidência desses episódios não é mais apenas uma surpresa da natureza.
*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)