Passa a valer, a partir deste mês de janeiro, a edição mais recente da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) – elaborada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – e que traz como principal novidade a inclusão da síndrome de burnout como fenômeno ocupacional. A CID-11, versão mais recente do documento, foi divulgada em maio de 2019, mas só agora entra em vigor.
O reconhecimento da síndrome como doença ocupacional é um passo fundamental para a prevenção, tratamento e acesso, aos direitos trabalhistas, pelas pessoas afetadas pelo burnout. Essa inclusão ganha ainda mais relevância num cenário em que o número de casos cresce, turbinado por fatores como a pandemia da Covid-19 e as pressões adicionais que as mudanças na sociedade, incluindo tecnológicas, vêm trazendo para as relações de trabalho.
No Brasil, do ponto de vista jurídico, a definição de burnout como doença ocupacional proporciona amparo legal para quem enfrenta o distúrbio. Mas, como a doença só foi descoberta nos anos 1970 e a sua classificação é recente, é natural que ainda haja muitas dúvidas. Por isso, conversamos com a psicóloga recifense Christianne Müller, especialista em psicopatologias e doenças psicossomáticas, além de bacharel em Direito, para entender a síndrome e o impacto da decisão da OMS.
O que é a síndrome de burnout?
A origem do nome da doença vem de burn (queimar) e out (exterior). De acordo com a definição da OMS, a síndrome de burnout ou síndrome do esgotamento profissional é um um distúrbio emocional, caracterizado por sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico.
“É um quadro resultante de situações de trabalho desgastante, que envolvem muita competitividade ou responsabilidade, num nível que o trabalhador sente estar acima da sua capacidade física e mental de atendimento”, explica Christianne.
“A sobrecarga de trabalho é a principal causa do distúrbio, que afeta atualmente muitos profissionais da área de saúde, como médicos e enfermeiros que atuam na linha de frente da pandemia, e atividades que envolvem muita pressão, como a de policiais, professores e jornalistas, entre outras”, detalha.
Quais os principais sintomas da doença?
Os sintomas mais frequentes da síndrome são falta de energia e sentimento de exaustão generalizada, atitude cínica ou negativa em relação ao trabalho, distanciamento mental das atividades e queda na produtividade no serviço. A insônia recorrente também é muito comum.
“Esse quadro pode resultar em um estado de depressão profunda e por isso é essencial procurar apoio profissional imediato no surgimento dos primeiros sintomas, para que a situação não evolua e se agrave”, ressalta a psicóloga.
O que fazer em caso de suspeita da síndrome?
Se houver suspeita de burnout, é necessário que o trabalhador busque uma avaliação por médicos e um psicólogo para que o quadro seja investigado e se possa identificar se o mal-estar emocional caracteriza a síndrome ou outra doença.
Também é importante que o profissional que sofre desse estresse crônico no trabalho informe isso à empresa, para que possam ser negociadas alterações na rotina e até melhorias de processos internos, visando a produtividade do time e a saúde mental dos profissionais. Em casos que envolvem assédio moral, é fundamental que essa situação específica também seja comunicada.
Outro ponto crucial é que, em caso de suspeita ou de laudo confirmando o distúrbio, o paciente siga as recomendações e o tratamento definidos pelo profissional ou profissionais responsáveis.
Como é feito o diagnóstico?
Christianne Müller explica que o diagnóstico não apresenta grandes dificuldades, mas precisa ser criterioso, para que não haja equívocos. “Na minha experiência clínica, só emito um laudo de burnout após várias sessões de terapia com o paciente e o número varia de caso a caso. É preciso esse cuidado para que não haja uma confusão com outras doenças, como o transtorno generalizado de ansiedade ou a depressão”, adverte.
“O quadro é bem característico, pois o cliente, no set terapêutico, só fala de trabalho e de forma extremamente negativa, apresentando um mal-estar generalizado sempre associado às suas rotinas no serviço, ao excesso de responsabilidades, ao cumprimento de metas e às relações interpessoais na empresa ou equipe e que muitas vezes envolvem assédio moral”, reforça.
Qual a relação entre a síndrome e a pandemia?
A aceleração na mudança do modelo de trabalho de presencial para remoto ou híbrido, trazida pela covid-19, contribuiu para o aumento do número de casos de burnout, como explica a psicóloga.
“Nessa transição, muitos profissionais passaram a ficar conectados praticamente 24 horas ao trabalho, perdendo-se o limite entre vida profissional e pessoal e muitas vezes num quadro de precariedade de condições para as rotinas no home office”, analisa.
Essa situação agravou o estresse gerado pela insegurança de se conviver com uma ameaça biológica e pelo medo de perder o emprego em meio a uma crise econômica global decorrente do coronavírus.
Qual o impacto da inclusão do burnout na CID-11 para o trabalhador?
No Brasil, uma pessoa com o diagnóstico de burnout confirmado tem a possibilidade de afastamento de até 15 dias por licença médica, sem sofrer prejuízo financeiro por causa disso, devendo o empregador pagar a remuneração como se o funcionário estivesse trabalhando normalmente.
Se for necessário um período maior do que 15 dias, o profissional pode solicitar o afastamento, por via administrativa ou judicial, anexando documentos que comprovem a sua situação de saúde.
Quando isso acontece, o trabalhador recebe os benefícios provenientes do desenvolvimento de uma doença ocupacional, a exemplo de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), auxílio-doença, estabilidade garantida por 12 meses após retorno ao serviço e indenização.
O que muda para as empresas?
“No aspecto da saúde mental, um impacto importantíssimo é que essa decisão da OMS vai incentivar as empresas a incluírem o distúrbio nas suas ações de gestão de pessoas, trazendo um avanço na prevenção e enfrentamento da doença. Também se espera que estimule políticas públicas de conscientização”, defende a terapeuta.