A psicanalista Ana Elizabeth Cavalcanti, integrante do CPPL (Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem) traz alguns questionamentos preocupantes sobre as crianças atuais que têm contato precoce com tablet e smartphone, vivem longe do espaço público e com a ausência dos pais. Nesta conversa com Cláudia Santos e Rafael Dantas, ela também questiona o diagnóstico de transtornos mentais baseados numa visão menos humanista e “mais medicalizante”.
Os pais atuais culpam-se pelo pouco tempo que passam com os filhos. Como você vê essa realidade?
As pessoas estão demandadas de uma forma excessiva, você precisa ter sucesso a qualquer custo, e para isso começa assumir compromissos com um ônus de muito trabalho. Por isso, os pais têm mesmo pouco tempo com os filhos, mas há uma certa idealização do que seria estar com eles. As mães da minha geração nem trabalhavam, mas elas não brincavam com os filhos, eles brincavam com outras crianças nas ruas, com os próprios irmãos, porque as famílias eram numerosas. Criança gosta muito de brincar com criança. Hoje há essa exigência de ter que brincar com os filhos, acho isso um complicador que quebra um pouco a espontaneidade da relação. Mas, ter pouco tempo é uma realidade, então vamos ver quais os arranjos que se têm que fazer para estar com os filhos.
É mais importante a qualidade do tempo do que a quantidade?
Veja, crianças precisam de tempo com os pais. Hoje é comum as mães terem seis meses de licença maternidade, depois vão trabalhar. Saem de casa às 7h e chegam às 10h da noite. Isso não pode, uma criança de 6 meses não tem memória suficiente para reter a presença da mãe ou do pai durante tanto tempo. As consequências disso são inúmeras, desde as mais tristes, como crianças com sintomas graves, mais depressivas e que se isolam, até os mais leves como a pouca segurança. Mas as consequências não são algo que possamos determinar precisamente. Porém, não faz bem ao filho ter pais sem tempo para ele. Quanto menor uma criança, mais tempo você tem que ter disponível para estar com ela. Então, dentro dessa loucura que está a vida de todo mundo, tem-se que arranjar um tempo que deve ter, obviamente, qualidade.
Quais as consequências causadas pelas novas tecnologias nas crianças?
Temos observado efeitos indesejáveis. Mas, a tecnologia não é boa, nem ruim. Em relação aos valores, ela é neutra. Mas está havendo a inserção de tablets e smartphones na vida das crianças muito pequenas e eles têm substituído, muitas vezes, o contato com gente, o que é prejudicial. Como hoje em dia não se pode mais ter uma cozinheira e uma babá, muitos pais, quando chegam em casa, vindos do trabalho, têm várias tarefas para executar. Por isso, colocam o tablet, o computador ou a TV para distrair o bebê. Essa troca com os aparelhos não permite que nós nos subjetivemos, ou seja, nos tornemos gente. As trocas iniciais do ser humano devem ser entre pessoas e ocorrem por mediação da linguagem, porque nós, humanos, falamos. A criança chama, demanda do outro, o outro responde para ela de uma forma muito singular. Uma criança que faz o processo de desenvolvimento com longa exposição à tela desenvolve determinados padrões frente ao outro. É uma relação de muito mais passividade, em que não existe interação. Como consequência, elas ficam mais passivas, mais isoladas, dependentes da tela, em algumas situações preferem esse tipo de contato ao contato humano. Elas estão numa condição diferente e óbvio que vão se comportar de forma diferente, mas hoje são diagnosticadas como se tivessem uma patologia. Esse surto de autismo é consequência disso. Mas não é só isso, há também uma forma diferente de fazer o diagnóstico em que existe uma lista de sintomas relacionados ao transtorno. Se a criança tiver três ou quatro desses sintomas, já estaria incluída no espectro do autismo, o que nós do CPPL discordamos.
E o que você acha do aumento dos casos diagnosticados de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)?
Também está relacionado à forma de se fazer o diagnóstico. Até meados do século passado, a visão sobre o funcionamento psíquico do humano era atrelada aos saberes da época: psicanálise, fenomenologia, filosofia, que eram muito valorizados. Era uma visão relacionada às questões culturais, ambientais. Pouco depois dos anos 70, começa a haver uma mudança em razão do desenvolvimento da tecnologia no campo da ciência, do diagnóstico por imagem e, com isso, das possibilidades de pesquisas na área da psicofarmacologia. Cria-se um ambiente em que essa visão mais humanista é substituída por outra mais medicalizante, mais científica. Os diagnósticos da saúde mental eram feitos a partir da compreensão do sintoma e levavam em conta a experiência da pessoa, como aquilo era vivido pelo sujeito adoecido. Mas, foi havendo um distanciamento disso e agora se trata muito da doença. Então vamos descrever bem a doença, para ser mais científico e objetivo possível e, como se transforma tudo em doença, tem-se também um avanço do uso da medicação. Quando falo de uma visão medicalizante, não me refiro só aos medicamentos, mas de uma visão médica do comportamento humano. Assim, a criança desobediente, que antes víamos como falta de educação, hoje é descrita como sintoma de um determinado transtorno, caracterizado por determinados sintomas, que não são mais sintomas do sujeito, mas da doença que precisa ser tratada e, para toda doença sempre tem um remedinho, não é? Isso serve a muitos interesses: do indivíduo que hoje é imediatista e quer resolver logo os problemas, não quer ter muito trabalho pensando nas suas questões subjetivas, porque ele tem muita coisa para fazer. Então, ele se sujeita a tomar um remédio e levar uma vida péssima. Há também os interesses da indústria farmacêutica. Comportamentos humanos, que antes eram simples comportamentos, hoje são sintomas de doenças. A criança que antes era trelosa, que tinha a cabeça no mundo da lua, hoje é diagnosticada com TDAH. Para isso existe medicação e hoje até coordenadora de escola encaminha crianças para o psiquiatra e já sabe qual é a medicação.
Não seria uma forma também de padronizar as pessoas? Indivíduos criativos costumam ser dispersos, pensam "fora da caixa"?
Costuma-se dizer o que seria de um grande artista como, por exemplo, Gláuber Rocha, se ele tivesse tomado remédio. Acho que ele seria encaixado no chamado transtorno opositor, aquela criança que gosta de refutar. Tem até remédio para isso. Existem muitos transtornos diagnosticados hoje em dia, o responsável por classificá-los são os manuais de psiquiatria norte-americanos que são atualizados constantemente: o DSM e o CID. No DSM 1 existiam pouco mais de 70 transtornos descritos. O DSM 5 tem 500. Ou seja, estão transformando em transtornos os comportamentos humanos. A mesma coisa tem acontecido com a medicina. Por exemplo, meus filhos golfavam, hoje as crianças têm refluxo e fazem muitos exames de imagem e existem muitas soluções medicamentosas. Claro que vamos resistir ao que não acharmos adequado e integrar as coisas que são maravilhosas. Em alguns casos, a medicação é bem-vinda, como a que propiciou a reforma psiquiátrica, que permite às pessoas não ficarem mais em asilos.
Como você analisa o número crescente de crianças depressivas?
Elas estão sendo muito exigidas. Exigência é ruim? Não, mas qual é o tipo de exigência que provoca angústia? Aquela muito invasiva e que impõe um padrão. Existem padrões que são socialmente valorizados e há uma imposição para que as pessoas em geral, crianças, adolescentes e também os velhos se encaixem neles. Morro de pena dos velhinhos, o padrão de exigência hoje é que eles estejam sempre sarados, animados, alegres, dançando, muitas vezes até trabalhando, fazendo maratonas. Boa idade? Você vai tentando ser o melhor possível, mas a velhice é uma fase difícil da vida. Não é verdade que tendo condições iguais, todas as pessoas vão prosperar, porque existe uma diversidade. Esta é uma visão neoliberal, que impõe a ideia de que todo indivíduo vai empreender sozinho e ter sucesso.
Hoje crianças vivem muito em ambientes fechados. Qual a consequência dessa falta de convivência no espaço público?
Percebemos que as crianças estão sendo privadas do espaço público, que é onde se encontram as mais diversas pessoas, que possibilita o contato com o mundo, com o diferente. Qual era a criança que antigamente não convivia com o louco da cidade ou com aqueles que apresentavam deficiência? Com crianças de outras classes sociais? Hoje em dia as crianças estão reduzidas a conviver com os iguais, nos condomínios fechados. Não se tem mais uma ida a pé para as escolas, estão todos apavorados com assaltos. Isso traz consequências para todos nós, porque o espaço público é que dá a possibilidade de você encontrar com o outro, de se responsabilizar pelo outro, pelo mundo, por sua cidade. O que vemos hoje são pessoas dizendo: aqui nada presta, quero é ir-me embora. É um retrato da “desresponsabilização”, da despolitização e sinal do isolamento das pessoas. É como se dissessem: eu não tenho nada a ver nem com o outro, nem com o meu mundo. É diferente daqueles que imigram porque têm outros projetos, ou porque foram obrigados por guerras. Mas tem um tipo imigração hoje no Brasil relacionada à ausência de contato com o público. É como se você não se sentisse pertencendo àquele espaço. O sentimento de pertencimento se dá com a convivência, que tínhamos na rua. Para mim é algo muito nefasto que faz com que o outro seja visto em princípio como uma ameaça. Daí a importância da igualdade social, ou pelo menos, da redução de uma desigualdade tão grande. Há toda uma construção social, cultural e subjetiva do outro. Uma criança de 5 anos já está achando que o outro que está passando na sua frente é uma ameaça e daí para ela demonizá-lo e desumanizá-lo é um passo. Esse outro você não se preocupa com ele, não o protege. E aí vem todas essas coisas terríveis que estamos vivendo: bandido bom é bandido morto, o extermínio é a solução. Recebi uma mensagem genial no WhatsApp. O menino diz: “pai se a gente matar todos os ladrões, só vão ficar pessoas de bem, não é?” O pai responde: “não meu filho, vão ficar assassinos”.