Décadas atrás, quando as famílias eram maiores, havia um convívio mais intenso entre parentes de diferentes faixas etárias e quase sempre contava-se com a presença de um bebê. Hoje, com os núcleos familiares menores, a primeira criança que muitas jovens mães pegam no colo é o seu filho. Sem referência, elas recorrem à ciência, livros de autoajuda, psicólogos e até à internet para encontrar uma receita sobre como cuidar dos pequenos. Neste mês em que se comemora o Dia das Mães, Cláudia Santos e Rafael Dantas, conversaram com a psicanalista Ana Rocha, do CPPL (Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem) para analisar essas mudanças. Ela também comenta a crescente participação dos pais nos cuidados com os filhos e a dificuldade dos adolescentes em vivenciar uma frustração.
Hoje a mulher tem a opção de ser ou não mãe, ter filho mais jovem ou com mais idade. A escolha dessas opções traz angústia para ela?
Penso que sim. Conquistamos a possibilidade de escolha, que é uma coisa muito importante. Há algumas gerações, a única razão de ser da vida de uma mulher era a maternidade e o casamento. Hoje você pode escolher a sua realização pessoal com ou sem a maternidade. Avalio que nisso há um gerador de ansiedade que não está restrito às mulheres. Em um curto espaço de tempo fizemos uma desconstrução vertiginosa de como era a vida há 100 anos. Era o tempo da família patriarcal, que se sustentava num mundo também extremamente hierarquizado, respaldado do ponto de vista da política dos Estados totalitários. As relações do mundo profissional eram muito hierarquizadas também. Tudo isso dava respaldo a essas famílias. Com os avanços dos princípios democráticos, como a igualdade de direitos, a inclusão e legitimação das diferentes formas de pensar e de existir, há uma transformação das relações que se tornaram mais horizontalizadas. Um mundo onde tem, potencialmente, lugar para todos. Estamos lutando por isso, que não está acabado. Mas, essa mudança teve desdobramentos para o núcleo familiar. A mãe naquele modelo antigo não perguntava o que ela precisava fazer com o filho. Isso se passava de geração em geração pela tradição. Quando desconstruímos isso, quem vai dizer o que é uma boa mãe ou um bom pai? Os livros de autoajuda? Os especialistas? A ciência? Os psicólogos? Os educadores? Isso provoca muita angústia. Esse é o nosso desafio, não só das mulheres. É saber como a gente vai criar um outro jeito de ser pai e mãe sem ficar no saudosismo de antigamente.
Ainda não existe um novo modelo?
Não. O que cada um precisa compreender, não só as mulheres, é que nós precisamos forjar o nosso jeito de ser pai e mãe dos nossos filhos. As pessoas não têm nos procurado para fazer uma terapia pessoal ou por achar que seus filhos precisam. Mas por insegurança. Por não saber como devem agir com os seus filhos nas mais diferentes idades. Os pais ficam muito preocupados, por quê? Apesar de tudo o que conquistamos, fica no imaginário de que aquela forma de criar do passado era a melhor do mundo. Mãe dentro de casa, totalmente dedicada aos filhos. Ora, é só a gente lembrar como eram as famílias no passado. Havia muito sofrimento também. Todas as grandes famílias que a gente conhece têm pessoas com muitos distúrbios. Aquele modelo não assegurava felicidade. As mulheres eram muitos infelizes. Por outro lado, é verdade que em determinadas etapas da vida da criança é necessário o cuidado dos pais presencialmente. Pelo menos nos dois ou três primeiros anos de vida, na primeira infância. Você não pode sair de manhã e retornar à noite quando o filho já estiver dormindo. A criança muito pequena precisa se realimentar da presença dos pais.
Como tem sido a transformação do papel dos homens no cuidado dos filhos?
As conquistas das mulheres têm favorecido aos homens para que se aproximem também dessa experiência do cuidar. Poder se envolver com seu filho, colocar para dormir, dar uma mamadeira, poder brincar. É uma experiência para além de chegar a criança pronta, tomada banho e o pai cheirá-la e entregá-la de volta para a mãe. Isso tem dado a chance para as crianças desenvolverem com os pais uma aproximação que nunca tiveram antes. Alguns homens têm tomado isso como oportunidade de enriquecimento pessoal muito grande. Enquanto outros se sentem extremamente humilhados por isso.
As mulheres lidam bem com isso?
Quando ficamos repetindo essa fala da dupla jornada é como se, de alguma maneira, houvesse a resistência de algumas mulheres de sair desse lugar de rainha do lar. Existe uma certa ambivalência. Ao mesmo tempo que há um orgulho enorme do que consegue fazer e dar conta, muitas vezes a mulher reclama do cansaço. Mas muitas delas não suportam ver os filhos se aproximarem muito do pai. Há um desalojamento que todos estamos fazendo. Se queremos olhar pelo lado negativo, podemos. Mas eu prefiro olhar pelo lado positivo. Todos ganham.
Que tipo de transformações estão acontecendo nas crianças com a participação maior dos seus pais, em relação às outras gerações?
Há um ganho enorme. Como isso pode ser mensurado? Há alguns anos era impensável um pai ter a guarda compartilhada. A não ser quem queria infernizar a esposa. Antigamente quando um homem se separava da mulher, via seus filhos a cada 15 dias. Todo processo de acompanhar, educar, protagonizar como figura paterna estava impedido. A maioria dos pais não fazia muita questão disso também. Não era uma coisa sofrida. Hoje, cada vez mais, o que vemos são os pais desejando compartilhar. Pegar o filho na escola alguns dias, levar para dormir em casa, algumas vezes na semana participando das atividades escolares. E o efeito que tem para a criança é de uma vinculação extremamente diferenciada quando os pais se ocupam dos cuidados com eles. As vezes se tem a ideia de que brincar com os filhos é o que eles querem. Ora, brincar é ótimo. Mas o que eles preferem mesmo é brincar com outras crianças. O que se perde de vista é sobre os cuidados. Isso torna pai e criança mais íntimos. Poder contar o que viu durante o dia espontaneamente, ajudá-lo na refeição, sentar à mesa. Os cuidados são uma forma prioritária de vínculo na primeira infância. Isso favorece aos pais construírem uma relação mais próxima com os filhos.
Qual a importância das avós na primeira infância dos netos?
É muito interessante, porque no modelo anterior as mães ocupavam muito esse lugar de estar com as filhas nesse momento. É como se elas tivessem que aprender a partir das experiências das avós sobre como cuidar daquele bebê. Não é que hoje as mulheres não sintam necessidade, muito pelo contrário. As avós, quando são pessoas de bom senso, podem dar um respaldo. Mas hoje em dia muitas jovens mães se guiam pelo Google. Há um certo conflito, pois as avós não se veem mais naquele espaço.
As mães procuram uma fórmula, um “manual de instruções” para conhecer e cuidar dos seus bebês?
O que eu percebo é um despreparo dos pais para a chegada dos filhos. É como se os jovens desconhecessem o que é uma criança. Antes as famílias eram maiores, convivíamos com diferentes faixas etárias e havia sempre um bebê sendo cuidado pela tia, pela avó, pela mãe. Hoje, muitas vezes, o primeiro bebê que a jovem mãe pega no colo é o seu filho. E aí ela participa de cursos preparatórios para pais que enveredam por um caminho muito científico. É como se os saberes científicos desautorizassem os pais a experimentarem. Muitos também vão buscar no Google as respostas para suas dúvidas. Outro dia atendi a uma jovem mãe que queria saber como dar um banho num bebê e foi pesquisar na internet. Antigamente havia uma tradição da avó materna dar o primeiro banho na criança. Era uma honra, um verdadeiro ritual. Acontece que um bebê é uma pessoa a ser conhecida. Ele vai mostrando o que gosta. Tem uns que gostam de ser ninados, outros não. Se a mãe não estiver tão impregnada dessa padronização do que deve ser, as coisas vão fluir. Os bebês não são como garrafas de refrigerantes, tudo igual… somos pessoas diferentes. Até a mesma mãe para cada filho vai agir diferente, pois cada um reage diferente. A mãe precisará construir com seu bebê essa relação.
Que tipo de suporte as sociedade poderia dar as famílias para ajudar na criação dos seus filhos?
Muitas vezes as mães têm seus filhos porque estão muito sozinhas por “n” motivos. Tive a oportunidade de ver um acompanhamento de uma rede de profissionais do Canadá a uma jovem mãe. Três dias após ela ter saído do hospital, chegou uma agente de saúde, que tinha um certo preparo com enfermagem. Mas ela não orientava só sobre amamentação. Ela via o entorno. Queria saber quem estava junto com a mãe, se morava sozinha. Eles montam uma rede de proteção maior para aquelas situações em que encontram maior fragilidade. Outra coisa que a gente não pode desconsiderar é que os pais e mães das crianças muito pequenas não podem trabalhar a mesma carga horária. No Canadá estabeleceu-se um ano de licença maternidade. Os seis primeiros meses integral, os demais meio período. E a mãe pode, inclusive, dividir a licença com o pai. Cada vez mais as pessoas estão evitando ter filhos porque é difícil. É justo assegurar, consolidar e ampliar esse tipo de ajuda, de flexibilização em relação a horários de trabalho, em relação à disponibilização de creches de qualidade onde os pais possam deixar seus filhos com tranquilidade.
As mães hoje estão mais superprotetoras?
Acho que hoje é como se tivesse uma vigilância e não um acompanhamento. Se o pai ou a mãe estão próximos ao filho não precisarão colocar uma câmera na sua casa. É essa disponibilidade para estar com eles que acho ser um desafio, que demanda dos pais administração do tempo.
Adolescentes e jovens, hoje, têm mais dificuldade de lidar com a frustração? Isso é um reflexo da educação dos pais?
Não se constrói, hoje, em muitas famílias a possibilidade de distinção do que é seu desejo e do que é realidade. Não se constrói um estofo interno para suportar a frustração. A criança entra nas fases posteriores da vida totalmente despreparada para a frustração. Existem adolescentes se matando porque acabaram o namoro. É muito triste isso. É absolutamente necessário dar à criança a possibilidade de viver a frustração, o interdito, o não. Essa experiência na família é o protótipo do que ela vai enfrentar na vida. Se você não dá à criança a possibilidade de experienciar a frustração é como se a estivessem aleijando. Ela é impedida de amadurecer. É justo construir novas maneiras de lidar com as frustrações.