Consagrado pelo talento musical, o maestro Clóvis Pereira deixou seu nome marcado na história das rádios, clubes, universidades e conservatórios de Pernambuco e de outros Estados do Nordeste. Nesta entrevista
à Revista Algomais ele lembra dos seus primeiros passos, quando ainda tocava gaita e revela bastidores do Movimento Armorial e do seu tempo de estudante na Berklee College of Music, na cidade de Boston.
O amor pela música vem da infância?
Eu sou natural de Caruaru. Meu pai era músico da Sociedade Musical Nova Euterpe, uma banda. E minha mãe era cantora de um bloco, nos anos 20, quando era jovem. Meu pai nessa época tocava violão. Depois que ele casou, ele melhorou o gosto pela música, se aproximou da banda musical e passou a tocar clarinete. Eu sempre o acompanhava desde que eu tinha uns 9 anos. Até que de uma hora para outra ele saiu da banda e conseguiu um trabalho muito bom no Cine Caruaru. Passou a ser operador dos projetores cinematográficos e também pintava os cartazes, pois ele também era pintor. A partir daí passei a acompanhá-lo no cinema.
Essa aproximação com a sétima arte aguçou seu interesse pela cultura?
Uns dois anos após a inauguração do cinema, eu já estava com uns 13 anos e passei a trabalhar com ele como ajudante de operador. Por força de obrigação assistia também aos filmes musicais naquela época, nos anos 40. Aí aumentei o meu gosto pela música.
Algum filme marcante da época?
Um dia apareceu o filme A noite sonhamos, que relatava a vida de Frederic Chopin, compositor polonês. Fiquei impressionado não só pela música, mas com o processo de aprendizado e o progresso dele. E menos de um mês depois disse: papai que quero tocar o piano. Mamãe, eu quero tocar o piano.
Foi aí que o senhor começou a tocar instrumentos musicais?
Não. Antes, quando eu tinha 12 anos, comecei a tocar gaita de boca. Comecei a tocar de ouvido aquelas marchinhas brasileiras… Mas quando decidi pelo piano meu pai disse: “Como você vai aprender se não temos piano em casa?” Eu disse: “Não tem problema, eu me viro”. Meus pais se entusiasmaram e me matricularam com uma senhora muito famosa na época, Djanira Barbalho. Ela achou que eu já tinha um talento musical, pelo que eu acompanhava meu pai desde a infância. Meu pai me levava aos consertos. Ainda hoje me lembro do maestro Severino Ramos reclamando com ele: “Luizinho, leva esse menino para casa não vês que ele está dormindo”. Mas meu pai me deixava quietinho no banco, dormindo.
Como foi a experiência de começar a tocar?
No mesmo ano em que comecei a estudar a professora achou que eu já poderia tocar na audição, que naquele semestre aconteceu no Clube Internacional de Caruaru. Com dois anos apenas de estudo eu já tocava algumas coisinhas de ouvido também no piano. A professora não gostava, mas eu tocava escondido nas casas de Caruaru. Em 1946, na sociedade musical da Nova Euterpe, onde meu pai trabalhou, eles queriam fazer uma orquestra de jazz, mas não era jazz, era uma orquestra popular. Me chamaram para tocar. Em junho daquele ano, a orquestra foi contratada para tocar no São João e São Pedro, num tempo que não tinham ainda descoberto o forró. Fomos tocar numa noite de São João como se fosse uma festa, não no estilo junino. Deu certo. O pessoal ficou satisfeito, pois não atrapalhei. Em 1947 houve em Caruaru a festa da Primavera. Eles, para mostrar a grandiosidade e luxo, contrataram o Bando Acadêmico do Recife, que era uma orquestra espetacular. Eu tinha acabado de sair de uma pneumonia, mas para ver esse bando insisti para meu pai deixar eu ir. Tinha 17 anos. Fui assistir ao baile. Quando o bando acadêmico fez o primeiro intervalo, passei a conversar com os músicos. Disse que estava começando. E perguntei: “Cadê o pianista?” Eles disseram que infelizmente não veio. Eu disse que estudava piano e eles perguntaram se eu não gostaria de acompanhá-los. Eu disse: posso dar um treininho, discreto. Eles concordaram. Conheci então os músicos dessa orquestra. Isso foi no mês de setembro. Ainda toquei com eles no Revéillon, em Caruaru. Em janeiro do ano seguinte, até o primeiro semestre toquei com essa orquestra. No segundo semestre meu pai veio trabalhar no Recife. Ele passou a ser projetista do cinema da Base Aérea, uma ótima colocação na época. Eu vim para aqui terminar o curso ginasial.
De um músico jovem de Caruaru, como o senhor conseguiu se destacar no circuito musical do Recife?
Eu estava sem fazer nada pelo Recife, sem muito a tocar. Até que a Rádio Clube anunciou o concurso musical chamado Céu ou Inferno. Me inscrevi para tocar gaita. Em paralelo ao piano, nunca tinha deixado de tocar a gaita. Levei para o programa, que era apresentado por Fernando Castelão a música Dança do Fogo, de Manuel de Falla, que era muito difícil. Quando acabei de tocar foi palma para todo lugar. A próxima candidata era uma menina chamada Creusa, tocando no cavaquinho o maior sucesso da época, um baião chamado Delicado. Quando acabou foram muitos aplausos também. Foi apertado, mas ela ganhou. Mas como Fernando Castelão estava torcendo por mim, ele me convidou para ser o mais novo artista do programa dele. Assim entrei na rádio. Em 1948 comecei a ouvir a Rádio Jornal do Comércio, que tinha inaugurado. Eles criaram o concurso “A hora da Gaita”, num patrocínio da Hering, que era um produtora de gaitas da época. Toquei a mesma peça. Nesse programa o julgamento era técnico e terminei como vencedor. Eles gostaram de mim na rádio e passaram a me chamar para tocar. O cachê já era melhor.
Quais seus passos para chegar a ser maestro na rádio?
Depois de uns três meses nesse novo ambiente, consegui autorização para treinar no piano da rádio. O diretor artistico me permitiu tocar na sala de ensaios. Foi ali onde conheci vários músicos que estavam entre os melhores do Brasil. Pessoa de Queiroz, ao fundar a rádio, trouxe os melhores músicos de violino, viola e violoncelo do Rio de Janeiro. E trouxe alguns também da Itália. A orquestra da Rádio Jornal do Commério era melhor que a da Rádio Nacional. Um dia o maestro Guerra Peixe foi para São Paulo. A rádio decidiu repetir um programa e fui convidado para reger a orquestra da rádio. Já tinha tido uma experiência anterior regendo a Jazz Band Acadêmica. Fui e agradei. A partir daí passei a ser maestro da Rádio Jornal do Commercio para todos os programas. Por conta disso arranjei todo o resto da minha vida. Cerca de 10 anos depois eu inaugurei a televisão como maestro, em 1960.
A rádio o levou para tocar nos Carnavais da época?
Eu não brincava, só tinha assistido ao Carnaval em Caruaru. Mas, após conhecer a festa no Naútico, fiquei vislumbrado. De repente o diretor da orquestra que tocava lá no Carnaval desistiu e a rádio me perguntou se eu gostaria de acumular. Deram um aumento besta e eu assinei o contrato. Depois dirigi orquestras ainda nos Carnavais do Sport, Clube Português e Clube Internacional.
Como foi sua experiência na academia, como professor universitário?
Em 1964, recebi um convite para ser professor na universidade de Natal. Eles sabiam que eu tinha estudado harmonia com Guerra Peixe. Depois passei a ensinar também em João Pessoa, onde também dirigi o Conservatório de Música. E de lá vim para o Recife, onde me aposentei pela TV Jornal, pela Rádio, pela Universidade e Orquestra Sinfônica.
Como aconteceu a oportunidade de estudar fora do País?
Em 89 eu já estava um pouco cansado de dar aulas nas universidades e me inscrevi para uma bolsa de mestrado pela Capes. Veja a graça de Deus. Eu não tinha o curso de bacharelado, mas como ensinava em escola de ensino superior, nunca me cobraram diploma. Eu dava aula sem formação acadêmica, só com o que aprendi na prática e nos estudos com Guerra Peixe. Entrei na Universidade do Rio Grande do Norte após indicação de dois músicos que trabalharam comigo nas rádios e me indicaram para o reitor, que me ofereceu um contrato.
Fui desconfiado para o Estados Univos, pois não tinha o título. E a universidade de Boston poderia pedir. Após os exames a diretora me disse: Congratulations. Depois ouvi o boato na escola que a melhor prova para entrar para o mestrado tinha sido a de um brasileiro.
Como foi sua experiência no Movimento Armorial?
Fui chamado em 1983. Ariano tinha a ideia de fazer na música o que ele vinha pesquisando de cultura nordestina. Como ele não conheia os músicos, chamou um professor da universidade que tocava viola e violino. Música não era o gênero dele. Esse rapaz era meu amigo desde os tempos de Guerra Peixe, muito conhecido aqui, o filósofo e compositor Jarbas Maciel. Ele disse: “Uma pessoa que não podemos esquecer é Clóvis Pereira, da TV”. Ariano concordou. Eu topei a princípio, depois disse que não poderia aceitar. Por fim, conciliei os horários com as universidades e retornei. Jarbas indicou também Cussy de Almeida, um dos maiores violinistas que teve no Recife. Em uma reunião Jarbas e Cussy estavam tocando a mesma coisa. Eu sugeri que a viola e o violino fizessem coisas diferentes. Um fazia uma coisa e a viola respondia. Peguei o lápis e a caneta, um papel de música. Dois compassos. Fiz na hora enquanto eles estavam discutindo. Muito bem. Quando começaram a tocar Ariano chega abriu a boca de alegria. A partir daí as reuniões eram feitas comigo e com eles dois. Depois de pronto, Ariano queria mostrar a Brennnand, no sítio dele. A primeira audição do Movimento Armorial aconteceu lá na residência de Francisco Brennand. Foi no alpendre da casa dele, oferecido à família.
E como terminou?
Parou quando Ariano passou a discordar de algumas coisas que Cussy fazia. Cussy padiu para fazer uma orquestração de uma música popular na época: Viola Enluarada e mais umas duas músicas populares. Ele começou a apresentar essas músicas populares quando terminava, o Armorial. Como um brinde ao público para ouvir algo diferente. Aí não deu certo, pois Ariano não aprovou. E pediu que não tocasse mais, para não misturar. Cussy concordou. Ariano ficou crente que não tinha mais isso. Com Ariano presente ele não fazia. A cisão aconteceu quando Cussy arranjou uma audição na redação do Jornal do Commércio, no Dia dos Jornalistas. E tocou essas músicas.Suassuna era um homem muito sério, muito honesto, mas muito vaidoso. O próprio Cussy disse que ele era tão vaidoso quanto Gilberto Freyre. Dois expoentes da cultura brasileira.
Como é a sua rotina hoje?
Estou aposentado de qualquer emprego. Depois disso ninguém me contratou para nada. E também estou com uma idade que não quero ter compromissos a não ser de compor música para mim e para ajudar meu filho, Clovis Pereira Filho, que é violinista principal da orquestra de João Pessoa. Ele foi o único dos meus quatro filhos que seguiu a carreira musical. Quando ele era pequeno e eu ia para rádio ficava me imitando no piano. Mas eu o incentivei a aprender violino.