É o fim do emprego? – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

É o fim do emprego?

Rafael Dantas

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A desigualdade social promete ser um dos temas decisivos no debate político em 2020. Em contraponto aos indicadores econômicos que sinalizam a melhora da economia – como a baixa inflação, a redução da taxa de juros e os suaves avanços do PIB -, o Índice de Gini (que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos) cresceu por 17 trimestres consecutivos, de acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Um cenário que foi acompanhado nos últimos dois anos por uma sutil retomada do emprego, mas em condições mais precárias. Para compreender esse cenário e discutir alternativas de geração de renda para a população excluída das vagas formais, conversamos com especialistas e ouvimos quem ousou construir seu caminho diante das ameaças do mercado.

“Tudo o que precisa ser feito do ponto de vista de ajuste fiscal no Brasil tem que considerar que somos um país pobre e dos mais desiguais do mundo. Cerca de dois terços das famílias brasileiras são muito pobres. Isso começa a ficar mais claro inclusive para os técnicos de orientação mais liberal”. Essa análise do consultor Francisco Cunha, feita na sua palestra da Agenda TGI 2020, fazia referência ao economista Armínio Fraga.

O ex-presidente do Banco Central, durante o Governo FHC, defendeu recentemente que a redução da desigualdade é essencial para destravar a economia. O próprio Fernando Henrique Cardoso considerou plausível a ideia de instituir uma renda universal frente ao novo cenário do modo de produção, que cresce sem necessariamente criar emprego ou distribuir renda.
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A recuperação do mercado de trabalho enfrenta, por um lado, a automação tecnológica, que reduz a demanda por mão de obra e aumenta a necessidade de qualificação profissional. Por outro, está ancorada hoje na informalidade e na precarização das condições de trabalho. Em meio à crise do emprego, os aplicativos, como Uber, iFood e Rappi, se tornaram grandes “empregadores”. Solução por um lado, pois contribuíram para geração de renda de uma multidão de profissionais desempregados. Problema por outro, pois expõem os trabalhadores a uma condição de assumirem todo o risco da atividade e não terem nenhum outro benefício ou proteção social.

O retrato do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) sobre o mercado de trabalho no Brasil e no Estado aponta sinais de alerta. A taxa de desocupação em Pernambuco que chegou a 8,2% em 2014, foi subindo até atingir o patamar de 17,7% em 2017. A partir daí, começa a reduzir suavemente até o terceiro trimestre de 2019, com 15,8%. Os dados são da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua), elaborada pelo IBGE.

“Há uma melhora percentual, mas não se recupera o patamar de desempenho do mercado de trabalho que tínhamos antes da crise. Em 2014 tínhamos em média 321 mil desempregados. Hoje temos mais que o dobro, com 658 mil pessoas desocupadas. E quando a gente olha o nosso mercado do ponto de vista da qualidade, percebemos o crescimento de empregos à margem da proteção social. São estratégias de sobrevivência da população. Ocupações desprotegidas, com jornadas maiores e rendimento menores”, afirma a economista e supervisora técnica do Dieese Jaqueline Natal.

Um dado que exemplifica esse cenário de precariedade traçado pela economista é o rendimento médio por hora dos trabalhadores. No terceiro trimestre de 2014, a remuneração média de um profissional em Pernambuco era de R$ 12,09. Cinco anos depois, no terceiro trimestre de 2019, a média era de R$ 10,65. No Brasil, esses dados permaneceram praticamente inalterados, com uma leve subida de R$ 13,81 para R$ 13,87 no mesmo período.

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Um movimento positivo que contrasta com a informalidade é o crescimento dos microempreendedores individuais (MEIs) em Pernambuco. De acordo com pesquisa realizada pelo Governo do Estado, o avanço da quantidade de profissionais que empreendem por conta própria de maneira formal tem sido de 16,8% ao ano. Se seguir no ritmo atual, irá dobrar em seis anos. “A existência do MEI acaba sendo um fator positivo. Ele traz algumas garantias às pessoas que perderam seus postos de trabalho e tiveram que recorrer ao empreendedorismo como forma de gerar renda”, analisa a secretária executiva de Políticas de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, Maíra Fischer.

O estudo, que foi realizado com dados até outubro de 2019, apontou que o Estado possui 289.668 profissionais autônomos. Esse volume de MEIs já equivale a mais de 8% da população ocupada em Pernambuco. Na Região Metropolitana do Recife, a promoção de vendas, os serviços de entrega rápida e dos restaurantes são as atividades que tiveram maior crescimento de formalização. A área de vendas é forte em todas as microrregiões do Estado, enquanto as demais atividades em destaque variam de acordo com as características de cada município.

 

Para o cientista político Flavius Falcão, o cenário de desemprego elevado e de acirramento da desigualdade social deve ser encarado como prioridade pelo poder público. Ele considera o crescimento do empreendedorismo como positivo, mas defende um papel mais forte estatal para apoiar a transição dos trabalhadores diante das novas tendências do mercado. “O avanço da tecnologia, que moderniza o mercado, é um fenômeno que não pode ser parado. Mas a readaptação das pessoas precisa ser assegurada pelo Estado. É preciso dar assistência aos trabalhadores, criar políticas públicas para amparar esses profissionais. Na essência é preciso criar um diálogo com quem está construindo o empreendedorismo”.

Ele defende que tanto o poder público como o terceiro setor têm um papel relevante de formação das pessoas para o empreendedorismo ou para ocupação nos novos postos de trabalho que surgirão no mundo cada vez mais tecnológico. Flavius tem atuado no coletivo Vendaval Catalisadora de Impacto Social para potencializar projetos e organizações que visem a reduzir a desigualdade social. “Estimular o empreendedorismo faz sentido quando se tem um impacto positivo na sociedade, não apenas o lucro pelo lucro do empreendedor”. É o chamado setor 2.5, relacionado aos negócios sociais, que é o meio entre o segundo setor (formado por empresas com fins lucrativos) e o terceiro (constituídos por organizações sem fins lucrativos).

ECONOMIA SOLIDÁRIA

Além da capacitação técnica, o professor aposentado da UFRPE, Paulo de Jesus, destaca que para empreender há outras necessidades que são barreiras para a população, como o investimento inicial para os negócios e o capital de giro. Doutor em Ciências da Educação pela Université de Paris VIII, ele dedicou anos a estudar alternativas econômicas geradoras de emprego e renda. Para enfrentar o atual cenário, ele defende investimentos em novos modelos de trabalho ligados à economia solidária, cooperativismo, associativismo, entre outras alternativas que estão em construção no mundo.

Paulo de Jesus: “Para empreender é necessário, além de capacitação, investimento inicial para os negócios e capital de giro”. Pesquisador defendeu modelos mais participativos de gestão, como as cooperativas e a economia solidária. Foto: Tom Cabral/Algomais

Em comum com o empreendedorismo, essas alternativas têm nos trabalhadores o protagonista dos negócios. Um diferencial é que a atuação deles não é individual, mas coletiva, nos investimentos e na repartição dos resultados (no cooperativismo eles não falam de lucros). “Na base da doutrina cooperativista, por exemplo, está a autogestão, a participação, a distribuição das sobras, sendo uma parte reinvestida e a outra, dividida entre os membros da organização. O seu maior princípio é ‘cada pessoa um voto’. Isso é a democracia na prática dessas organizações”.

Por vários anos, Paulo de Jesus trabalhou na Incubacoop, a incubadora de cooperativas populares da UFRPE, que se segmentou em apoiar trabalhadores do setor rural e da coleta de resíduos sólidos. Um dos destaques dos quase 15 anos dessa incubadora foi a Cooperativa de Catadores de Materiais Reciclados Erick Soares, que funciona em Abreu e Lima (Coocares).

Catadores que atuavam no antigo lixão da cidade juntaram forças em 2003 iniciando uma associação. Anos depois se formalizaram como cooperativa. Com apoio técnico da universidade, aprenderam a trabalhar juntos, lutaram em busca de infraestrutura e hoje vendem mensalmente 60 toneladas de resíduos sólidos. Nessa trajetória conseguiram um caminhão, equipamentos para armazenar e processar o material coletado, como empilhadeira, prensas, carroças automáticas e balanças. Desde 2015 eles têm inclusive o contrato de coleta seletiva de Abreu e Lima. Todo material segue diretamente para indústrias no Estado e da Paraíba.

Hoje 21 trabalhadores tiram seu sustento dessa atividade. A remuneração do grupo varia entre um salário mínimo e R$ 1,1 mil. As expectativas para 2020 são melhores, pois o grupo vai trabalhar em uma nova unidade de triagem, onde não precisarão pagar o aluguel. O terreno foi cedido pelo município e o investimento de construção é do Governo Federal.
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Com apoio da UFRPE, catadores em Abreu e Lima se unem em cooperativa, conquistam equipamentos, sustentabilidade financeira e até autoestima. Foto: Tom Cabral/Algomais

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A presidente da Coocares, Lindaci Gonçalves, trabalhou 10 anos no lixão de Inhamã, após perder o emprego de camareira. Além da maior segurança da renda mensal, ela revela a principal mudança com a vida em cooperativa. “No lixão não se tem autoestima. Quando se está lá, o catador é confundido com o próprio lixo e os animais que vivem lá. Na cooperativa somos reconhecidos como profissionais. Somos tratados como pessoa, como trabalhador”, afirma.

No mundo inteiro e em Pernambuco há experiências de cooperativas e de economias solidárias em diversos segmentos. A Unimed, no setor médico, e o Sicredi, no setor financeiro, são dois grandes cases no Estado. Na área de educação, uma grande experiência regional é da Cooperativa de Trabalhadores em Educação 3º Milênio, em Limoeiro. Formada em 1998 por um grupo de 20 docentes que pediram demissão dos seus empregos para empreender conjuntamente.

“Juntamos os nossos recursos e investimos na estruturação da escola. A princípio funcionou como um cursinho. No ano 2000 nasceu o colégio com 133 alunos. Atualmente temos 1.100 alunos, desde a educação infantil ao ensino médio, além de preparatórios pré-vestibulares e para cursos militares”, conta o presidente da cooperativa Luís Augusto Amorim, que comemora o crescimento médio de 36% do número de alunos nos últimos anos. Hoje 35 profissionais cooperados conduzem a escola.

O presidente da 3º Milênio acredita no cooperativismo como uma alternativa com grande potencial de crescimento no País. “Hoje observamos o fortalecimento do cooperativismo, entrando nas brechas causadas pelo aumento da desigualdade. É um dos caminhos que fará diferença nesse novo cenário econômico em que o Brasil se encontra”, prenuncia Luís Augusto.

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Formada por 20 docentes que pediram demissão, a Cooperativa 3° Milêno, de Limoeiro, conta com 1.100 alunos. Foto: Divulgação

 

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Mencionando as experiências da França e do Canadá, que possuem grandes massas de profissionais e de circulação financeira por meio dessas organizações mais horizontais, Paulo de Jesus defende que elas sejam vistas como estratégicas para o momento atual da dificuldade de geração de postos de trabalho. “O cooperativismo popular e a economia solidária têm um grande potencial para fazer face a essa onda de desemprego. Esses movimentos se intensificaram nos governos passados, atingindo números consideráveis de geração de capital e de envolvimento de trabalhadores”.

Outra experiência em andamento no mundo e com alguns cases em Pernambuco é a economia de comunhão (EdC). As empresas que aderem a esse conceito, criado nos anos 90, promovem a partilha dos lucros investindo na própria empresa e aportando recursos financeiros e participação em projetos de erradicação da pobreza e de promoção do bem comum.
O analista de sistemas Jailson Carvalho ao ser dispensado da empresa em que trabalhava, num momento de crise econômica do País, teve a ideia de montar um negócio com os princípios da EdC. Nasceu a JAD Informática. “Não é uma organização filantrópica. Tem que dar lucro. Mas com um olhar social na casa e ao redor dela. O lucro é reinvestido na empresa, mas também em causas sociais em que acreditamos”, explica.

Instalada na Boa Vista, a JAD tem uma preocupação social interna e externa. Dentro da casa, há um cuidado com a equipe, não apenas visando ao trabalho, mas para apoiar os funcionários e integrá-los nas causas sociais que a empresa abraça. Parte do faturamento é direcionado para uma organização de apoio social a crianças em situação de vulnerabilidade social. Mais que recursos, há um engajamento pessoal do quadro, em acompanhar as ações da instituição. “Nós praticamos e conscientizamos as pessoas a ter essa atitude de apoio”, conta.

Em Pernambuco não são muitos empresários que seguem a filosofia da economia de comunhão, mas há empresas dos setores de varejo, móveis, informática e gastronômico. A maior força desse movimento se deu no município de Igarassu.

Na comunidade de Monjope estão as instalações do Polo Ginetta, uma estrutura montada para ser um condomínio de empresas de comunhão. Mas dificuldades logísticas do local e a própria crise econômica do País esvaziaram o espaço. O polo está em um período de encerramento das atividades e o foco agora será em reorganizar a força dos representantes locais nas ações conjuntas da Anpecom (Associação Nacional por uma Economia de Comunhão). “Nosso trabalho tem sido de estimular a geração de renda e ajudar pessoas que mais precisam. E instigar mais empresas a aderirem a EdC”, afirma Raul Pereira Neto, presidente do Polo Ginetta.

Um braço mais conhecido da economia solidária em Pernambuco está na articulação das feirinhas de artesanato. A aposentada Virgínia Menezes encontrou na Rede de Mulheres Tecendo Economia Popular e Solidária uma alternativa para gerar uma renda complementar. Ela aprendeu a produzir mosaicos e bijuterias que comercializa nas feiras promovidas pela Secretaria da Mulher, da Prefeitura do Recife, além da Fenearte.

“Esses locais são uma oportunidade para mostrar o trabalho no espaço público e de conhecer outros trabalhos. Aprendemos as tendências e técnicas de produção umas com as outras participando das feiras e também em cursos promovidos pela secretaria”, conta a artesã, que participa da gestão da Feirinha da Torre.

O estímulo ao empreendedorismo individual por um lado e o fomento aos mais diversos tipos de negócios solidários por outro são alguns caminhos que têm sido trilhados pelos brasileiros em busca de novas alternativas de trabalho. Se essas veredas darão conta da massa de trabalhadores substituídos pela automação e com a mesma qualidade dos antigos empregos formais são perguntas que ainda não têm uma resposta conclusiva.

*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)

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