Para os que pensam que paisagem é apenas uma bela vista e que a natureza é o oposto do mundo urbano, a presidente da ABAP (Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas) Luciana Schenk apresenta um pensamento que faz reconsiderar esses conceitos. Na palestra realizada durante o lançamento da coleção de livros Recife 500 Anos, no último dia 15 de julho, na capital pernambucana, Luciana afirmou que a paisagem urbana é uma construção cultural que expressa a relação entre a humanidade e a natureza.
Nesta entrevista a Rafael Dantas, a arquiteta defende que as alterações que realizamos no meio ambiente podem ser mitigadas por meio de um sistema de ruas arborizadas, praças verdejadas e parques que permitiria às áreas urbanas se adaptarem às mudanças: “se chover pouco, ou se chover muito, esses espaços verdes nos ajudam a umidificar ou drenar a cidade”. Ela também observa que as injustiças ambiental e social são interligadas e elogia os projetos de cidades parques, como o Parque Capibaribe, no Recife, e do Guaíba, em Porto Alegre.
O que é planejar as cidades com a paisagem e porque a senhora defende essa abordagem no planejamento público?
A paisagem é comumente compreendida como o que se vê e, mais, com aquilo que o senso comum chama de bela paisagem mas o termo, e seu significado, tem uma dimensão bem mais complexa. Muitos são os campos profissionais e disciplinares que têm a paisagem como tema ou pauta: geógrafos, biólogos, ecólogos tomam a paisagem como parte de suas investigações, bem como artistas, literatos, historiadores, sociólogos e filósofos, todos esses campos do conhecimento podem ter na paisagem importante referência ou questão. O mais importante de reter aqui é que a paisagem não é apenas o que se vê, mas um meio, uma construção cultural que expressa a relação entre a humanidade e a natureza.
Por isso normalmente pensamos em paisagem como aquilo que se vê mas essa relação que se expressa de diversas formas – nas descrições literárias de Guimarães Rosa ou Euclides da Cunha, nas telas de Van Gogh ou nas fotografias de Sebastião Salgado – pode também ser um trecho do território sobre o qual se empreende uma pesquisa ou investigação. A paisagem se presta a diversas abordagens porque sua natureza é complexa, ela reúne dimensões físicas e metafísicas: dela participa a natureza física, relevo, vegetação, corpos de água, mas também o uso e as alterações que a humanidade realizou e todos os significados que nascem dessa alteração.
No processo de crescimento urbano, as cidades deram às costas para seus ativos ambientais, como rios e florestas urbanas, e até ao patrimônio arquitetônico. Essa tendência se inverteu ou pelo menos está se transformando?
A história do desenvolvimento humano parece guardar essa contradição: alteramos o meio físico, promovemos a adaptação dele, suprimimos a vegetação e nos esquecemos de questões básicas que não podem ser suprimidas como, por exemplo, o ciclo da água que não deve ser interrompido porque a água limpa é fundamental para a sobrevivência. Menciono a água porque ela costuma ser lembrada quando falta ou se apresenta em excesso nas enchentes, e isso se liga ao ciclo que mencionei.
As civilizações ancestrais mantiveram sabedoria em relação ao uso e armazenamento da água, ou não sobreviveriam para serem chamadas ancestrais.
Nossa fé na técnica nos levou a uma falsa crença de que tudo é possível resolver e são muitos os autores que fazem esse tipo de crítica que, aliás, é possível referendar olhando as cidades brasileiras. Canalizamos, poluímos e tamponamos nossos córregos e rios. Contemporaneamente, uma ciência atenta à ideia de sistema vem desenvolvendo técnicas e tecnologias que não apenas procuram observar o ciclo da água, mas o relacionam com outros ciclos, da flora e fauna, de modo que uma nova paisagem possa nascer desse esforço sistêmico.
Qual a importância da preservação ou mesmo reconstrução dos espaços verdes para a qualidade de vida urbana?
A principal questão que tratei em minha palestra foi a de que os impactos causados pelas alterações que realizamos no meio ambiente físico podem ser mitigados por meio de um planejamento que pense em um sistema de espaços livres (SEL), que diminua, atenue, os danos causados. Em outras palavras, o sistema de ruas arborizadas, praças verdejadas e parques são, acima de tudo, um poderoso meio criador de resiliência, cuja tradução seria: capacidade de se adaptar às mudanças: se chover pouco, ou se chover muito, esses espaços verdes nos ajudam a umidificar ou drenar a cidade.
Essa função, que sem dúvida é de infraestrutura urbana, vem sendo chamada desde o final do século passado de infraestrutura verde. O que eu também procurei mostrar em minha apresentação é que essa perspectiva sempre esteve presente dentro do campo disciplinar do qual participo, a arquitetura da paisagem. Essas funções, ou objetivos, estão presentes desde sua fundação no Século 19, mas não apenas elas: à infraestrutura sempre foi associada uma dimensão social e cultural.
Já em finais do Século 19, planos e projetos foram realizados e defendidos não como luxo, mas como necessidade: uma cidade precisa de um sistema de espaços livres, verdejados, pensados sistemicamente, essa perspectiva associa infraestrutura, lazer, descanso, saúde e educação.
Na palestra de lançamento dos livros do Recife 500 Anos a senhora mencionou algumas experiências de cidades que mantêm um cinturão de produção de alimentos nas proximidades. Isso já é uma demanda da sociedade?
Essa perspectiva aparece no urbanismo como parte do planejamento de cidades ou rede de cidades desde a virada do Século 19 para o 20. Como exemplo seria possível mencionar a experiência e os escritos que tratam do modelo cidade-jardim formulado por Ebenezer Howard e que teve muitos desdobramentos a partir de suas primeiras ideias. O que antes aparecia naturalmente, plantar o que se come nas franjas das cidades, passou a ser compreendido como uma necessidade que merecia planejamento, em especial porque, depois da Revolução Industrial, o fenômeno urbano se qualificou com novas informações. Cidades densas e insalubres serão objeto de debates e proposições, e o abastecimento seria uma dimensão desse debate.
Atualmente esse debate se qualifica, seja porque ganha essa perspectiva da sustentabilidade, o deslocamento da produção gera poluição e gasto de energia e dinheiro, seja porque aquilo que se produz em determinado território dialoga com a tradição alimentar daquela população e com a geografia na qual é produzido. Perceba como estamos falando aqui de paisagem, uma paisagem produtiva que gera emprego e renda, serve à mesa e constrói uma cultura alimentar.
Leia a entrevista completa com Luciana Schenk na edição 196.5 da Algomais: assine.algomais.com