O primeiro “serviço de extinção de incêndios” do Brasil surgiu aqui, no Recife. O do Rio de Janeiro foi inaugurado por Pedro II mais de 100 anos depois. Lembrei-me desse fato sem muita, ou nenhuma, importância – veja você como são as coisas do pensamento – porque me lembrei do poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira:
(…)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Eram os sinos das igrejas que chamavam os bombeiros e informavam ao povo o bairro que o fogo queimava. Sinos de São Pedro dos Clérigos, do Carmo e do Livramento? Incêndio em São José.
Esse poema foi encomendado a Bandeira por Gilberto Freyre. “Encomendado como quem encomenda um pudim” – diria Gilberto em tom jocoso anos depois.
Mas, pudim de quê? Ah! aí é que tá. Quem encomendou tinha outras receitas do Recife, mas não aquela. Pudim da infância cada um tem a sua. Única. E a de Bandeira, ainda menino, já era de poesia pura. Poesia nos nomes das pessoas e ruas (Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância”); poesia nas casas; no Capibaribe; nos banheiros de palha de Caxangá. “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho / Fiquei parado o coração batendo / Ela se riu / Foi o meu primeiro alumbramento.”
Gilberto, por sua vez, planejava escrever um grande livro (já o imaginava grande) sobre a “História da Vida de Menino no Brasil” ou “À procura de um menino perdido”, esses os títulos provisórios escolhidos. Chegou a investir todas as suas economias na compra de livros para pesquisar a vida de crianças sob as mais diferentes culturas.
Escreveu para Bandeira revelando o seu projeto e pedindo ajuda. Queria que o poeta investigasse o que havia sobre crianças no acervo da Biblioteca Nacional, o que havia de peças e brinquedos infantis no Museu Nacional, além de recorrer à sua cultura e memória musical: cantigas de ninar, de danças e de roda. “Esse estudo teria de começar pela vida de menino entre nossos índios. (…) Depois, sobre o background da criança dos colonizadores (brancos e negros) e os primeiros contatos das crianças de origem europeia com os bichos do Brasil, os papões e os mal-assombrados, os frutos, os pássaros etc…”
Bandeira tinha ido de mudança com a família para o Rio aos 2 anos de idade. Voltou com 6 e aqui ficou até os 10 na casa do avô, na Rua da União. “Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia” – disse ele em sua última longa entrevista, em ‘64.
Veja só, amigo leitor. Do “Meninos do Brasil”, de Gilberto, cresceu e tomou corpo Casa Grande e Senzala; da encomenda atendida por Bandeira, com sua memória infantil e afetiva, nasceu Evocação do Recife. Obras-primas.
Manu e Giba. Ah, esses meninos do Recife!