*Por Rafael Dantas
Há 35 anos o País colocava um ponto final na ditadura que assombrou o Brasil por mais de duas décadas com a promulgação da Constituição Federal no dia 5 de outubro de 1988. Pela ampla participação social na formulação da Carta e pelo seu caráter de ampliar as liberdades civis e os direitos individuais, ela ganhou o apelido de Constituição Cidadã. Mesmo com muitas emendas e ainda com muitas leis complementares a serem legisladas, é esse texto que tem conduzido a sociedade brasileira ao seu mais longevo período democrático. A sua implantação plena e a urgência em defendê-la permanecem como desafios ao País, em especial após os ataques do 8 de Janeiro.
Além da participação direta dos deputados constituintes na construção da Constituição Federal, o texto recebeu contribuições de todo o País. Numa época em que ainda não existia a internet, elas vinham pelos Correios, chegavam aos gabinetes dos parlamentares ou em debates das mais diversificadas organizações da sociedade civil. De acordo com dados do Senado Federal, foram recebidas mais de 72 mil sugestões de cidadãos de todo o País, além de outras 12 mil dos constituintes e de entidades representativas. Há quem fale de muito mais proposições.
Tal mobilização veio a reboque de todo o movimento que enfrentou o autoritarismo no País, na análise do sociólogo José Arlindo Soares, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro. “Pelo que observei e participei, foi uma continuidade da grande mobilização das Diretas Já”, afirmou o pesquisador, que era professor da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) na época.
Apesar da ampla participação, o sociólogo lembra que havia uma cobrança pela sociedade de que deveria ser convocada uma constituinte exclusiva para a elaboração do texto da Constituição Federal. “Em que pese as divergências da convocação, que foi uma Constituinte Congressual, mesmo assim, houve um engajamento muito forte, com muitos grupos temáticos se formando, principalmente oriundos de setores da sociedade civil”, recorda José Arlindo. Ele destaca a atuação de organizações de profissionais liberais (como dos engenheiros e médicos sanitaristas) e de instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, da Sudene, da Ação Católica Operária e do próprio Centro Josué de Castro.
Na outra ponta estavam os parlamentares, divididos em comissões e subcomissões, recebendo as contribuições de todos os lados, sistematizando e organizando o texto que seria votado ao final no plenário. Artigo a artigo, inciso a inciso. Milhares de mãos da sociedade e do parlamento se mobilizaram para escrever o documento que nortearia o País dali para frente e que orientou já nove eleições presidenciais desde então.
“Foi um grande momento vivido pela nação brasileira. Saindo de um regime ditatorial até 1985, tendo, em 1986, eleição para a Constituinte e, em 1988, a promulgação dessa nova Constituição que produziu o período mais longo de plenitude democrática na história da República. Nenhum período foi tão longo, ininterrupto e sem retrocesso. Tentativas de retroceder existiram, sim, como recentemente no Governo Bolsonaro, mas não ocorreram”, comemora Roberto Freire, que foi deputado constituinte por Pernambuco, no então PCB (Partido Comunista Brasileiro).
MEMÓRIAS DE QUEM PARTICIPOU
Como líder de uma pequena bancada, Roberto Freire participou de várias comissões. Ele lembra que o partido preparou um livro de discussão interna antes dos debates no Congresso para subsidiar as proposições. “Participei de tudo que é debate e discussão. Muito foi aproveitado, algumas sugestões foram vitoriosas, outras derrotadas”, rememora Roberto Freire.
Ele considera que especialmente no aspecto do reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal representou um grande avanço para a sociedade brasileira. Um dos destaques de Freire é para o tratamento às causas ambientais. “Hoje há toda uma preocupação do mundo com a sustentabilidade. A Constituição de 1988 trouxe questões dessa agenda atual, como um bom capítulo sobre o meio ambiente. Tratou também dos povos originários. Muitos aspectos que continuam importantes hoje já estavam nela, embora haja lacunas e muitas questões que também foram superadas pelo detalhismo que o texto tem. Esse é um dos condicionantes para termos uma constituição muito emendada atualmente”.
Apesar de comemorar muitas contribuições ao texto constitucional, Freire também aponta que várias sugestões ficaram de fora. Uma delas era de que o País não deveria ter um Supremo Tribunal Federal, mas um Supremo Tribunal Constitucional. “Usávamos esse termo – Supremo Tribunal Constitucional – apenas para a função de ser guardião e última palavra sobre constitucionalidade das leis. Infelizmente virou uma corte em que chega até recurso de pequeno furto. Agora, devido ao foro privilegiado, o Supremo tem o poder de tribunal criminal penal, isso é uma distorção evidente”. Ele propôs também que não houvesse custas processuais, mas também foi vencido.
Gonzaga Patriota, na época como deputado constituinte do PMDB, conta que o trabalho foi intenso, de virar noites, junto com a meia dúzia de “menudos”, apelido dado por Ulysses Guimarães aos mais jovens do parlamento. Eles contribuíram na sistematização dos milhares de pedidos que chegavam ao Congresso.“- Tínhamos que ir juntando aqueles pedidos. Verificávamos onde colocar cada uma daquelas contribuições. Indicamos onde estava cada proposta. Foi um trabalho muito bom”, relembrou o ex-deputado.
O deputado constituinte Harlan Gadelha, na época também deputado pelo PMDB, fez muitos elogios ao espírito participativo da construção da Constituição. “Na essência da palavra democracia, tivemos todos os segmentos sociais ouvidos em 17 subcomissões e nove comissões, além de uma comissão de sistematização e o plenário no final. Andamos muito por esse País, pois muitas representações não tinham como chegar até Brasília. Tínhamos que ir ao contato físico. Foi uma oportunidade que o Brasil teve de ser discutido”. Ele citou que os constituintes ouviram desde os povos indígenas até os representantes da Febraban (Federação Brasileira de Bancos).
Sobre a polêmica extensão da Constituição, em razão das críticas dela ser muito detalhista, Harlan considera que ela era uma resposta ao momento do País, pós-ditadura. “Ulysses Guimarães, em seu grande discurso, disse que não era a Constituição perfeita, mas para aquele momento era a mais adequada. Nós vínhamos de mais de 20 anos de ditadura e existia uma aspiração social por liberdade. Ah, ficou grande? Ficou grande. Mas muito maior do que a Constituição foi o período da ditadura e precisávamos garantir as proteções”, destacou Harlan.
UM OLHAR PARA O POVO RURAL
Nascido no campo, foi para a população rural que Gonzaga Patriota direcionou sua maior contribuição na elaboração da Constituição Federal. “Minha participação teve um destaque, porque o Dr. Ulysses inventou os menudos, que eram os deputados mais jovens na época, como o Aécio Neves, Cássio Cunha Lima e ele me colocou no meio. Tivemos o direito de escrever um artigo. O meu foi o da aposentadoria de homens e mulheres no campo”, relembra.
O ex-deputado, que teve 10 mandatos, disse que recebe o reconhecimento dos prefeitos do interior pela importância da efetivação desse artigo para a economia. “É um dinheiro muito bem distribuído porque circula. Uma das coisas importantíssimas que marquei na Constituição foi colocar esse dispositivo de direito para os aposentados. O trabalhador rural ajuda muito na distribuição de renda”.
REGULAMENTAÇÕES AINDA PENDENTES NA CONSTITUIÇÃO
Gonzaga Patriota considera que um dos grandes desafios é avançar na aplicação do que foi definido para o País em 1988. “Muita coisa está na Constituição e não é aplicada. Muitas coisas faltam ser institucionalizadas. Falta um movimento das pessoas para isso. Só no final do ano passado decidimos pelo piso aos enfermeiros, por exemplo. Pouca gente sabe a importância de um enfermeiro. A conversa é que não tem como a prefeitura pagar, o estado pagar… o negócio é fazer a distribuição da receita, que fica em grande parte para União. Há muitas coisas boas na Constituição, que não são aplicadas por não serem regulamentadas. Tem hora que o STF está criando lei, porque o parlamento não o faz”.
Enquanto o País teve avanços inquestionáveis, como a instalação do Sistema Único de Saúde (SUS), o princípio da educação como dever do Estado e a elaboração do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, há muitos outros direitos que ainda aguardam amparo de leis complementares.
“A aplicação da Constituição evidentemente é um processo desigual. O mais importante foi o reconhecimento de direitos fundamentais. Alguns deles foram regulamentados e colocados em prática. A Constituição é muito reivindicativa, mas isso não significava que fossem regulamentados. O direito à moradia, por exemplo, ainda não é universal. O que existe são programas de governo que fazem moradias, mas não é universal como o SUS”, explica José Arlindo Soares.
O sociólogo exemplifica também a universalização do acesso à educação para as crianças de 0 a 3 anos como um dos desafios do País. Diferentemente do ensino infantil, fundamental e médio, a atenção à primeira infância ainda não alcançou todos os brasileiros.
Harlan Gadelha conta que existem ainda em torno de 40 artigos da Constituição Federal aguardando a regulamentação. “O Congresso não regulamenta e fica apenas emendando. É preciso fazer emendas, sim. A própria Constituinte em 1988 fez a previsão nas disposições transitórias que, após cinco anos, elas seriam revisadas. E o Congresso cinco anos após a promulgação da Constituição não revisou. Pecou gravemente porque era oportunidade de ter revisado”.
DESAFIO PARA O FUTURO DA CONSTITUIÇÃO
Além de avançar nas regulamentações, o também deputado constituinte Harlan Gadelha, na época eleito pelo PMDB, destaca que existem algumas distorções que precisam ser revistas, como as Reformas Trabalhista e Previdenciária aprovadas no Governo Temer. “A Reforma Trabalhista realizada recentemente foi um retrocesso em relação aos avanços conquistados com a Constituição de 1988, enfraquecendo os direitos dos trabalhadores. A terceirização da mão de obra, por exemplo, fragiliza o vínculo trabalhista, que era uma conquista que foi consolidada com muito esforço, porque o Centrão era contra. A gente enfrentou o centro de forma muito, muito, muito dura. A Reforma Trabalhista precisa ser revista, como a Reforma Previdenciária”, sugere Harlan Gadelha.
Além disso, ele destaca que a Constituição Federal e esse esforço da sociedade em construí-la após longos anos de ditadura precisam ser mais conhecidos pela população brasileira. “A Constituição de 1988 deve ser mais amplamente divulgada e compreendida pela sociedade, para que as pessoas saibam quais são seus direitos e como podem cobrar a implementação das políticas públicas previstas na Constituição.” Ele sugere que haja um esforço nos sistemas educacionais, inclusive superiores, de tornar o texto constitucional mais conhecido.
O sociólogo José Arlindo defende ser necessário um avanço da participação da sociedade, tão presente na formulação do texto, para fazer valer a Constituição. “O desafio fundamental hoje para a Constituição Federal, no meu entender, é o controle social para fazer com que as normas constitucionais sejam efetivamente cumpridas. É preciso haver um funcionamento adequado dos conselhos, o acompanhamento efetivo das prestações de contas”, avalia José Arlindo.
Elogiada pelo mundo, participativa em sua fundação e ampla na concessão de direitos, a Constituição Federal Brasileira guarda complexidades e desafios para além das “quatro linhas”, tão mencionadas nos últimos anos. A desigualdade do País, 35 anos após, é uma prova de que há muito a avançar. A resistência aos atentados democráticos e o funcionamento de tantos serviços ausentes antes de 1988, por outro lado, são também os legados desse esforço nacional que não pode ser esquecido.
*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)