Diante das dificuldades de criar espetáculos operísticos no Recife – como a falta de patrocínio e de espaços para exibir as apresentações – o maestro Wendell Kettle, que coordena a Academia de Ópera e Repertório, persiste no trabalho de tornar essa arte mais conhecida em Pernambuco. Ele fala sobre as produções que montou, como O Menino Maluquinho com elenco só de crianças.
O maestro Wendell Kettle, uma das figuras centrais da cena operística atual em Pernambuco, compartilha sua visão sobre o panorama atual da ópera no Estado. Doutor em Regência Sinfônica e Operística pelo Conservatório Estatal Rimsky-Korsakov, de São Petersburgo (Rússia), ele atua como professor da UFPE e coordena a Academia de Ópera e Repertório e a Sinfonieta UFPE. Ele é o idealizador do Festival de Ópera de Pernambuco que chegou à sua quinta edição, um evento que desempenha um papel fundamental na promoção e valorização da ópera local.
Ao longo da entrevista, o maestro aborda os desafios enfrentados para manter viva a tradição operística em Pernambuco, como a recuperação de obras históricas do compositor Euclides Fonseca. Ele destaca o sucesso do festival que, não apenas promove óperas clássicas mas, também, abriu espaço para produções protagonizadas por crianças, como a inédita montagem de O Menino Maluquinho. Para Wendell, a melhoria dos instrumentos de financiamento, o desenvolvimento de novos espaços para recepcionar os espetáculos e a formação de público são essenciais para garantir a sustentabilidade e o crescimento da ópera no Estado.
Como você descreveria o panorama da ópera em Pernambuco?
Há uma história das realizações operísticas em Pernambuco que podemos verificar, inclusive, no livro A Ópera no Recife, apoiado pela Funcultura. A partir desse livro, percebemos que já havia uma atividade operística no Estado. Em agosto de 2016, eu comecei minhas atividades como professor da UFPE e, de lá para cá, tenho desenvolvido uma linha de trabalho na universidade, reunindo cantores extensionistas entre alunos das instituições musicais da Região Metropolitana do Recife. São pessoas formadas, outras que já estudaram canto lírico, enfim, iniciamos um projeto de educação por meio dessa linha de trabalho e, há oito anos, desenvolvemos esse grupo.
Em 2019, criamos o Festival de Ópera de Pernambuco. Além das óperas tradicionais do repertório internacional – essenciais para a formação dos cantores – nossa filosofia de trabalho tem um foco especial também na ópera Pernambucana, nordestina, brasileira. Então, seguimos nesse sentido, conforme demonstramos por meio da recuperação das obras de Euclides Fonseca, da montagem da ópera A Compadecida, que foi uma das nossas maiores realizações até o momento. Agora, também com esse viés da ópera infanto-juvenil. Deve haver outras manifestações lírico-musicais permeando a vida operística de Pernambuco e toda confluência é muito bem-vinda para que essa linguagem possa, cada vez mais, florescer e se solidificar como uma manifestação artística genuína do nosso Estado.
Além dos artistas locais, essa cena da ópera pernambucana tem atraído pessoas de outros Estados?
Este ano, além de alunos das nossas universidades irmãs do Nordeste, das Universidades Federais do Rio Grande do Norte (UFRN), da Paraíba (UFPB), de Campina Grande (UFCG) e de Alagoas (UFAL), tivemos uma participação também de alunos de outras regiões. Vieram estudantes das Universidades Federais do Rio de Janeiro (UFRJ), de Goiás (UFG) e de Minas Gerais (UFMG). Foi um congresso muito rico, uma troca de informações, um intercâmbio entre os nossos alunos extensionistas da UFPE, do Recife, com todo esse pessoal que veio para o festival.
O que você destaca do 5º Festival de Ópera de Pernambuco deste ano? Quais foram as inovações?
O 5º Fope (Festival de Ópera de Pernambuco) teve, entre os pontos interessantes, a estreia de uma ópera infanto-juvenil, na faixa etária entre 8 e 13 anos, sobre O Menino Maluquinho, de Ziraldo. Era um sonho antigo trazer o mundo da ópera para as crianças.
Há outras referências de óperas sobre O Menino Maluquinho mas nosso diferencial é fazer uma ópera só com crianças cantando. A temática foi um pouco diferente das outras óperas também pois retratou as sensações e as emoções que perpassam a vida da criança, principalmente quando ele descobre uma das mais nobres sensações humanas que é o amor.
Vocês seguiram apresentando obras de Euclides Fonseca no festival?
A segunda montagem do festival deste ano seguiu nossa linha de recuperação musicológica de todas as obras de Euclides Fonseca, que é nosso grande compositor de óperas pernambucanas. Recifense, ele atuou entre a segunda metade do Século 19 e início do Século 20. Em festivais anteriores, já havíamos recuperado Leonor, que é a primeira ópera pernambucana, e Il Maledetto, um drama bíblico baseado na história de Caim e Abel. Agora, recuperamos A Princesa do Catete.
Essa é uma ópera com uma parceria de valor cultural inestimável para Pernambuco porque o libretista é Carneiro Vilela, um dos cofundadores da Academia Pernambucana de Letras. Então, ficamos felizes de trazer à tona essa ópera, há muito esquecida, não se sabe nem se já havia sido, de fato, apresentada em Pernambuco.
Finalizamos, então, o Fope deste ano com uma ópera muito conhecida e apresentada, uma das grandes obras do repertório internacional operístico que é O Elixir do Amor, de Gaetano Donizetti.
Como foi a resposta do público ao festival?
Foi um evento fantástico, ficamos muito satisfeitos com o resultado e concluímos, mais uma vez, que o público pernambucano é, sim, afeito à ópera. Ele busca por esse tipo de espetáculo e estamos tentando, com todos os esforços, que a realização do festival mantenha viva a chama da ópera no nosso Estado.
O Menino Maluquinho foi a primeira ópera cantada apenas por crianças num festival. Quantas crianças participaram do espetáculo?
Este ano, conseguimos colocar O Menino Maluquinho na programação e ficamos curiosos para saber como isso ia acontecer, pois era a primeira vez que uma ópera cantada só por crianças, se acoplava à programação de um festival operístico e foi um sucesso retumbante.
Ficamos muito satisfeitos com a receptividade da sociedade como um todo, o teatro ficou lotado todos os dias. Emplacamos essa linguagem nessa faixa etária e também entre os pais dessas crianças, que ficaram encantados com o trabalho, com o projeto.
Para O Menino Maluquinho, inicialmente abrimos e divulgamos uma audição. Então, vieram crianças que já fazem estudos em teatro musical nas escolas tradicionais desse tema no Recife e de instituições de ensino musical da Região Metropolitana e também algumas que apenas queriam cantar. Participaram 22 crianças, um número considerável, pois são muitos personagens, entre os amigos do Menino Maluquinho e o coro. Fizemos dois elencos que se alternavam para que a maioria das crianças pudesse ter essa experiência, tanto de atuar como solista e também estar no coro. É a mesma sistemática que usamos num projeto dos adultos.
O projeto vai permanecer?
Depois do espetáculo, fizemos uma avaliação dos resultados e decidimos continuar com o projeto, abrimos uma outra audição e mais algumas crianças se acoplaram. Hoje, estamos com 26 crianças, é um grupo bastante significativo.
Assim, criamos a Academia de Ópera e Repertório Infanto-juvenil para continuar cultivando esse tipo de produção. As crianças chegam novas e vamos trabalhando com elas, no sentido musical, a atuação cênica, a movimentação corporal, para que possam participar. Esperamos que este período seja uma fase importante na formação delas como cidadãs, pois a arte, a música, permeando a vida dessas crianças, vai fazer com que sejam cidadãs melhores. Assim, prosseguimos com as crianças.
Há algum novo espetáculo no horizonte desse trabalho infanto-juvenil?
Estamos com uma nova produção chamada A Fantástica Fábrica de Brinquedos, que esperamos apresentar no fim deste ano ou no início do ano que vem. Mas, com certeza, no 6º Festival de Ópera de Pernambuco, teremos novamente uma ópera infanto-juvenil.
A recuperação da obra de Euclides Fonseca é reconhecida do ponto de vista histórico. Como tem sido a receptividade desse projeto?
Acabamos de fazer a terceira ópera, então já temos um viés de comparação. A Leonor tem um estilo mais tradicional, casa mais com o que o público tem em mente sobre o que é ópera. Tem momentos de inovação também, como o coro dos pescadores, que se aproxima mais do esquema popular de Pernambuco, da época que Euclides compôs, em 1883. Então A Leonor entrou num bojo de uma identificação comum do que é ópera e tem uma receptividade muito boa.
Essa obra está na biblioteca do Instituto Ricardo Brennand e tem apenas a parte de piano e canto. Então, além de recuperar essa parte de piano e canto, fizemos todo o trabalho de orquestração, auxiliados pela professora Melina Peixoto, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que tem uma tese de doutorado sobre esta ópera.
O Il Maledetto também entra nesse sentido, as melodias e os momentos de ária, com tantos personagens, são ainda mais elaborados. Fico feliz quando converso com as pessoas e elas percebem isso, pois mostra a genialidade, a sensibilidade, a técnica do nosso compositor pernambucano, especialmente numa época quando Carlos Gomes, com toda razão, era tido como nosso grande operista.
Já A Princesa do Catete é uma obra de cunho mais popular, mais similar ao teatro de revista, que estava em voga no Rio de Janeiro nessa época. Em termos de números musicais, apresenta maior facilidade de identificação entre pessoas mais leigas ao repertório operístico. É complicado mensurar porque a obra de arte tem as suas especificidades mas, de modo geral, a receptividade tem sido excelente. Foi muito prazeroso trazer A Princesa do Catete à tona.
Pernambuco e o Recife são referências em muitas linguagens culturais. Qual o espaço da ópera nessa cena local, especialmente do trabalho do Euclides Fonseca?
A ópera não é uma linguagem artística que está em primeiro plano, em voga atualmente na nossa cultura, então há todo um trabalho de formação de público, de despertar o interesse das pessoas e mostrar que existe uma ópera pernambucana, inclusive histórica. Considerando essas variantes, podemos afirmar que a receptividade aqui tem sido muito boa para as obras do Euclides Fonseca.
E como é o cenário para financiamento da ópera em Pernambuco?
Por meio do Funcultura e outras leis de fomento. A ópera já está estabelecida junto à Secretaria de Cultura do Estado e à Secretaria Municipal do Recife também. Entretanto, a dificuldade é que ela é uma manifestação artística que integra diversas linguagens: música, com o canto lírico e orquestra; artes visuais, indispensáveis nos cenários, figurinos, iluminação cênica e até efeitos especiais necessários à atuação dos cantores-atores. É uma produção que requer um aporte financeiro significativo.
O suporte que temos do Funcultura, por exemplo, tem-se mantido o mesmo ao longo de vários anos. Então, temos que nos adequar para que o público pernambucano possa receber a ópera de fato, sem simplificar, da mesma forma como uma determinada obra é apresentada em grandes centros operísticos do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde talvez nem se pense em simplificar.
Precisamos ter esse cuidado nas montagens para que o pernambucano, que está recebendo um produto artístico com auxílio de uma verba pública, possa ter aquilo que é genuinamente ópera. Portanto, temos apoio financeiro, mas ele precisa ser redimensionado, viabilizando um mercado mais propício, com pagamentos melhores aos cantores, músicos de orquestra, técnicos, profissionais das artes visuais e iluminadores. É muita gente envolvida. O poder público precisa estar um pouco mais sensível a isso para prover possibilidades financeiras mais adequadas à realização da ópera.
Além da questão financeira, que outros desafios a sustentabilidade e o crescimento da ópera enfrentam no Estado?
A falta de espaços adequados. No momento, temos apenas o Teatro Santa Isabel, que tem fosso de orquestra funcionando. Precisamos de outros teatros com um fosso de orquestra, cuja música é inerente à manifestação operística. É possível fazer algo com um grupo instrumental reduzido, mas seria uma manifestação lírico-musical e não ópera.
Já fizemos adaptações, apresentamos a opereta O Professor de Música, no teatro Luiz Mendonça, apenas com orquestra de cordas, sem instrumentos de sopro, metais ou percussão. No Teatro do Parque, nunca fiz.
O Teatro Guararapes, por exemplo, é grande, se assemelha a outros espaços brasileiros voltados à ópera e à música de concerto. Ele tem um fosso que comporta orquestras de grandes dimensões, mas esse fosso está quebrado há 24 anos. Seria muito importante que o Governo do Estado tivesse consertado. Agora que o Centro de Convenções está cedido à iniciativa privada, será que, no contrato, foi estabelecido que a empresa que administra deve fazer a manutenção, incluindo o conserto do fosso do teatro?
Pela sua pujança regional, Pernambuco precisaria ter uma casa maior para receber produções operísticas, ser ponto de parada de produções operísticas internacionais com grandes orquestras. Precisaria ter um equipamento mais atualizado, maior. Poderia ser o Teatro Guararapes se for devidamente recuperado, adaptado acusticamente.
Quais são seus próximos projetos no circuito da ópera?
Já estamos voltados para o 6º Festival de Ópera de Pernambuco, previsto para agosto de 2025, no Teatro de Santa Isabel. Pretendemos dar seguimento a nossos projetos aprovados no Funcultura, que são duas óperas temáticas muito importantes: O Vestido de Noiva, composição nossa em homenagem a Nelson Rodrigues, e As Donzelas D’Honor, última obra que estamos recuperando do Euclides Fonseca, a quarta ópera dele.
Vejo nela Euclides como um visionário, pois, no início do Século 20, compôs uma ópera cantada só por mulheres. Isso é audacioso, inovador. Pretendemos também incluir uma obra infanto-juvenil na programação do nosso projeto, que é artístico e acadêmico também. A UFPE, através do nosso projeto de extensão, está à frente dessas realizações do Festival de Ópera e queremos potencializar ainda mais a participação de estudantes de outras universidades.